2012-07-29

Wolfgang Amadeus Mozart: Andantino, do Concerto para flauta e harpa

Photo by 

J'aime l'art et la nature Flora (Josiane Cuppens)

Ninfetas que a tarde primaveril de Salzburgo
entrega e não entrega, como ondas
de uma praia que subiram e desceram o areal
para maior desejo e maior luz. Faunos


no bosque aureolados, como árvores
que a sombra incendiasse e o sol
em contra-luz fizesse desaparecer. Desejo ainda
de ver unida a terra com o céu


em arterial fulgor como se fosse
uma ideia de fogo sobre o ar
além de sonhos que tangíveis sejam.


E tudo isto a música cingindo.
Não fosse a metamorfose e estaríamos
obscuramente tristes e vencidos.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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ADOLESCENTE

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


Eu – adolescente?
Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim,
saudá-la-ia como pessoa que me é próxima,
embora seja, para mim, estranha e distante?

Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa
pela simples razão de termos
a mesma data de nascimento?

Tão poucas semelhanças entre nós,
quiçá, apenas os ossos são os mesmos,
a caixa craniana, as órbitas.

Já que os olhos dela parecem maiores,
as pestanas mais compridas, ela mais alta
e todo o seu corpo revestido
com uma pele lisa, sem mácula.

Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos,
no mundo dela, porém, quase todos estão vivos,
enquanto no meu já não há quase ninguém
deste círculo que tínhamos comum.

Somos tão diferentes uma da outra,
pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes.
Ela pouco sabe –
mas com uma teimosia digna de melhores causas.
Eu sei muito mais –
mas sem nada saber ao certo.

Mostra-me uns poemas,
escritos com letra clara e cuidada,
como já há muito eu não escrevo.

Leio esses poemas e leio.
Bem, talvez este daqui,
se o reduzirmos
e corrigirmos aqui e ali.
O resto nada de bom augura.

A conversa está difícil.
No seu pobre relógio,
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, já é muito mais caro e preciso.

Na despedida nada, um breve sorriso
e nenhuma comoção.

Somente quando se afasta
e, apressada, se esquece do cachecol.

Um cachecol de pura lã,
às riscas coloridas
feito em croché para ela
pela nossa mãe.

Ainda hoje o tenho.

De Wislawa Szymborska
Traduzido por Teresa Swiatkiewicz.


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ATÉ AO ENTARDECER ARREFECE O DIA

Photo by Resim & Fotoğraf

I


Até ao entardecer arrefece o dia...
Bebe o calor da minha mão,
a minha mão tem o mesmo sangue que a primavera.
Toma a minha mão, toma o meu braço branco,
toma a nostalgia dos meus ombros magros...
Seria maravilhoso sentir,
uma única noite, numa noite como esta,
o peso da tua cabeça no meu peito.




II


Atiraste a rosa vermelha do teu amor
no meu branco regaço -
tenho nas minhas mãos ardentes
a rosa vermelha que não tardará a murchar...
Oh, soberano de olhos frios,
aceito a coroa que me entregas,
a coroa que dobra a minha cabeça para o meu coração.




III


Vi hoje pela primeira vez o meu senhor,
tremendo o reconheci imediatamente.
Agora sinto a sua pesado mão sobre o meu leve braço...
Onde está o meu cantante sorriso virginal,
a minha liberdade de mulher com a cabeça alta?
Agora sinto o seu firme abraço ao meu corpo palpitante,
oiço agora o duro som da realidade
contra os meus frágeis, frágeis sonhos.




IV


Procuravas uma flor
e encontraste um fruto.
Procuravas uma fonte
e encontraste um mar.
Procuravas uma mulher
e encontraste uma alma -
estás decepcionado.

Edith Södergran
Dikter, 1916

Tradução de Amadeu Baptista

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VIERGE MODERNE


Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf


Não sou uma mulher. Sou um ser neutro.
Sou uma criança, um pagem e uma audaz decisão,
sou um raio ridente de um som escarlate...
Sou uma rede para todos os peixes glutões,
sou um brinde em honra de todas as mulheres,
sou um passo para a casualidade e a perdição,
sou um salto na liberdade e no eu...
Sou o murmúrio do sangue no ouvido do homem,
sou o arrepio da alma, nostalgia e negação da carne,
sou um letreiro que anuncia a entrada para novos paraísos.
Sou uma chama, inquisitiva e intrépida,
sou uma água, profundo até aos joelhos mas audaz,
sou fogo e água em união sincera sem condições...

Edith Södergran
Dikter, 1916

Tradução de Amadeu Baptista

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A ÚLTIMA FLOR DO OUTONO

Photo by  Emira for Resim & Fotoğraf.


Sou a última flor do outono.
Embalaram-me no berço do verão,
puseram-me de sentinela ao vento do norte,
chamas vermelhas floresceram
na minha face branca.
Sou a última flor do outono.
Sou a mais jovem semente da primavera morta,
é tão fácil ser a última a morrer:
vi o mar tão fabuloso e azul,
ouvi palpitar o coração do verão morto,
o meu cálice contém apenas a semente da morte.
Sou a última flor do outono.
Vi as profundas galáxias do outono,
contemplei a luz de cálidas casas longínquas,
é tão fácil percorrer o mesmo caminho,
vou fechar as portas da morte.
Sou a última flor do outono.

Edith Södergran
Dikter, 1916

Tradução de Amadeu Baptista

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NÓS, AS MULHERES

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


Nós, as mulheres, estamos muito próximo da obscura terra.
Perguntamos à lâmina o que espera da primavera,
acolhemos nos nossos braços o pinheiro nu,
procuramos no pôr-do-sol signos e conselhos.
Uma vez amei um homem, ele não o acreditava...
Chegou num dia frio com os olhos vazios,
partiu num dia pesado com o esquecimento no rosto.
Se o meu filho não vive, é sua...

Edith Södergran
Dikter, 1916

Tradução de Amadeu Baptista

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2012-07-28

AMOR

Photo by Clive Sheiley for Project Noah




A minha alma era um vestido azul pálido da cor do céu;
deixei-o sobre uma rocha, na borda do mar,
e nua me aproximei de ti e parecia uma mulher.
E como mulher me sentei à tua mesa
e brindei com um copo de vinho e respirei o aroma das rosas.
Encontraste-me bela e parecida com alguém que tinhas visto
em sonhos,
esqueci tudo, esqueci a minha infância e a minha pátria,
sabia apenas que as tuas carícias me faziam cativa.
E tu, sorrindo, tomas-te um espelho e pediste que me olhasse.
Vi que os meus ombros eram de pó e se desmoronavam,
vi que minha beleza estava doente e só desejava desaparecer.
Oh, abraça-me, abraça-me com tal força que eu não precise de mais nada.

Edith Södergran
Dikter, 1916

Tradução de Amadeu Baptista

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A IRMÃ DA VIDA

Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf.


A vida a quem mais se parece é à morte, sua irmã.
A morte não é diferente,
podes acaricia-la e tomá-la na mão e pentear os seus cabelos,
ela entregar-te-á uma flor e sorrirá.
Podes poisar o rosto no seu peito
e ouvi-la dizer: é hora de partir.
Ela não te dirá que é outra.
A morte não jaz verde e branca com o rosto no chão
nem de costas sobre uma camilha branca:
a morte passeia-se com faces rosadas e fala com todos.
A morte tem expressões delicadas e faces pias,
sobre o teu coração coloca a sua mão suave.
O que sentiu essa mão suave mão no coração,
a esse não o aquece o sol,
é frio como o gelo e não ama ninguém.

Edith Södergran
Dikter, 1916

Tradução de Amadeu Baptista

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A VIDA

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


Eu, minha própria prisioneira, digo-vos:
a vida não é a primavera, vestida de veludo verde claro,
nem uma carícia, que raras vezes se recebe,
a vida não é uma decisão de partir
nem dois braços brancos que nos retêm.
A vida é o estreito anel que nos mantém cativos,
o círculo invisível que jamais atravessamos,
a vida é a felicidade próxima que nos passa de longe,
e os mil passos que não nos decidimos a dar.
A vida é alguém desprezar-se a si mesmo
e permanecer imóvel no fundo do poço
e saber que o sol brilha no alto
e que pássaros dourados cruzam voando o ar
e que os dias passam como rápidas flechas.
A vida é agitar a mão num breve adeus e ir dormir a casa...
A vida é um ser estranho para si mesma
e uma nova máscara para qualquer outro que venha.
A vida é manejar imprudentemente a felicidade
e repelir o instante único,
a vida é crer-se frágil e sem atrevimento.



Edith Södergran
Dikter, 1916

Tradução de Amadeu Baptista

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DECISÃO

Photo by Carlos Vaz Marques

Sou uma pessoa muito madura,
mas ninguém me conhece.
Os meus amigos têm uma falsa imagem de mim.
Eu sopesei a docilidade nas minhas garras de águia e conheço-a
bem.
Oh, águia. Que doçura no voo das tuas asas!
Vais ficar em silêncio como tudo?
Queres talvez escrever? Mas não escreverás mais.
Cada poema será a perversão de um poema,
não poema, mas garras de águia.

Edith Södergran
Framtidens skugga, 1920

Tradução de Amadeu Baptista

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CATIVEIRO

photo by I dream of Lebanon


Cativa, cativa... quero fazer em pedaços as minhas cadeias.
Com lábios dolorosamente raivosos passo pela vida.
Meus abismos, por que pergunto por vós, vós não mereceis
esse nome.
O bronze funde-se com o bronze e faz-se homem,
e o homem tem ferro no seu coração.
Mas acaso o bronze recebeu esse brilho aterrador na seu rosto
do deus dos raios?
Arrasto o meu coração pelo caminho, que o repartam os abutres -
a lua cheia ilumina-me um novo.

Edith Södergran
Landet som icke ar, 1925

Tradução de Amadeu Baptista

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REGRESSO

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)


As árvores da minha infância erguem-se jubilosas à minha volta:
oh, humanidade!
e a erva dá-me as boas-vindas no regresso dos países longínquos.
Agora volto as costas a tudo o que deixei para trás:
o bosque e a praia e o lago serão os meus únicos companheiros.
Agora bebo sabedoria da sumarenta copa dos abetos,
agora bebo verdade do tronco seco da bétula,
agora bebo poder da mais pequena e fina fibra da erva:
um poderoso protector estende-me misericordioso a mão.

Edith Södergran
Landet som icke ar, 1925

Tradução de Amadeu Baptista

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A LUA

Photo by Be Silva


Que maravilhoso é todo o morto,
e que indescritível:
uma folha morta e um homem morto
e o disco da lua.
E todas as flores sabem um segredo
e o bosque guarda-o,
e a órbita da lua em torno da terra
é a rota da morte.
E a lua tece a sua maravilhosa teia,
a que as flores amam,
e a lua tece a sua fantástica rede
em torno de tudo o que vive.
E a lâmina da lua sega flores
nas últimas noites do outono,
e todas as flores esperam o beijo da lua
com infinita ânsia.

Edith Södergran
Landet som icke ar, 1925

Tradução: Amadeu Baptista

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O PAÍS QUE NÃO EXISTE

Photo by Valentino Love

Anseio chegar ao país que não existe,
porque estou cansada de desejar tudo o que não existe.
A lua fala-me do país que não existe
em prateadas runas.
O país onde todos os nossos desejos serão prodigiosamente
satisfeitos,
o país no qual cairão as nossas cadeias,
o país onde refrescaremos o nosso rosto ferido
no orvalho da lua.
A minha vida foi uma ardente ilusão.
Mas uma coisa encontrei e uma coisa logrei -
o caminho para o país que não existe.
No país que não existe
está o meu amado com uma coroa resplandecente.
Quem é o meu amado? A noite é negra
e é tremura a resposta das estrelas.
Quem é o meu amado? Qual o seu nome?
Os céus abobodam-se, mais alto, sempre mais alto,
e um filho do homem afoga-se nas brumas infinitas
e não sabe a resposta.
Mas um filho do homem não é outra coisa senão certeza,
e levanta os seus braços mais acima de que todos os céus.
E ouve-se uma resposta: Eu sou o que tu amas e sempre amarás.


Landet som icke ar, 1925



Versão de - © Amadeu Baptista












Edith Södergran (1892-1923). Nasceu em São Petersburgo. Viveu grande parte da infância na Carélia, zona de confluência russo-finlandesa. Estudou num colégio alemão e os seus primeiros poemas foram escritos nessa língua. Doente de tuberculose desde os 16 anos, passou vários anos num sanatório suíço e morreu dessa enfermidade em 1923. É considerada como uma das figuras de topo do modernismo finlandês.

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2012-07-23

XVII A TERRA DOS ELEITOS


Photo by "I dream of Lebanon"

Era então essa
a terra do segredo,
o espaço de ventura
prometido?

De abundância
e
de doces lugares,
em que o excesso de ser
contrariava
a existência parca
da viagem?

Era esta então a terra
da promessa,
o espaço de fortuna
dos eleitos?

Devia ser:
e líquidas fronteiras
ali foram traçadas

Feitas de leite e mel
para os eleitos

e de fel e de sangue
para os
outros

Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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2012-07-22

XXVI MONÓLOGO (DIZ JACOB A RAQUEL)


Photo by Emira for Resim & Fotoğraf


Foi só por teu amor
que aqui fiquei
ou algo mais
me faz permanecer?

O prazer de viver
junto dos montes
ou o fascínio
que o poder oferece:

saber que é por cumprir
que te vou ter
e que teu pai me tem
porque cumprindo?

Ana Luísa Amaral
in"Às vezes, o Paraíso"

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XV O OUTRO FILHO (IRMÃO DO PRÓDIGO)


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.


«O vitelo mais gordo»
disse o pai
Mas era para o outro
que falava

E ele interrogou-se confundido,
o coração pesado de negócios,
esquecido de viagens e sonhos
por fazer
Deve ser coisa estranha
a lealdade,

como difícil o ofício
de amar

Perdida a juventude
entre contas e servos,
entre terras vedadas e cega obediência
que lhe restava

senão juntar-se à festa
e comer do vitelo
e fingir alegria
em pródigos sorrisos?


Ana Luísa Amaral 
in"Às vezes, o Paraíso"

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XIV O FILHO PRÓDIGO


Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf

Partiu
quando chegou o tempo do fascínio:
era-lhe estreito o mundo onde vivia
e largo o outro mundo,
povoado de sonhos
por fazer

Conta-se que viveu de sombras,
de bolotas,
e que por fim vencido
voltou ao espaço
velho

O vitelo mais gordo, disse
o pai,
brindando ao seu regresso
Com vitelos se compram pensamentos
e se saciam solidões
e fomes

Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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XIII SALOMÉ APÓS O CRIME


Photo by Resim & Fotoğraf.


Quantas vezes te vi
e me surpreendi porque te olhava?
Sentindo a tentação de te espiar
e o desejo de amar
o que não tinha

Como saber
pelos sonhos mais nus
que me assaltavam
que eu não era paisagem
para ti?

Dizem luxúria só
onde houve amor
e um crime tão enorme de luxúria:
mas eu quis-te indefeso
como festa,
os teus lábios a festa para mim

Quantas vezes me vi
pensando no meu crime
e na história dos homens
a julgar-me!

Mas o que eu li
na bandeja do crime
foram os olhos com que tu
me olhavas
(finalmente eu paisagem)

e a luxúria
que há sempre
no amor

Ana Luísa Amaral 
in "Às vezes, Paraíso"

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XII JUDAS


Photo by Emira for Resim & Fotoğraf.


Reconheceu sombriamente:
são moeda de troca
a palavra e o amor,
investimento sólido
o conselho

Confusas relações
entrelaçadas
como nós de prata,
e o sonoro remorso
tilintando

Não é vender um homem.
por dinheiro,
mas investir num homem
por ternura:

reconheceu então
lucidamente
até ao fim da corda
e dos humanos tempos

Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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2012-07-21

XI JOB E O OUTRO LADO SEU

Photo by Suppressed Histories Archives


«Depende menos a riqueza
do argênteo poder
que do poder da fé»

Mesmo quando claríssimos sinais
lhe mostraram as perdas
mais humanas,
mesmo então a revolta possível
diluiu-se-lhe aí:
símbolo
de mais autêntico valor

A riqueza assim tida
e conservada
servirá a imortal estatuto
mas não a contenção

que de humana
é pequena

(mas de humana:
pequena asa
quase
em liberdade)

Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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X O SACRIFÍCIO


Photo by Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.


Em silêncio,
por caminhos ínvios,
penetrou lentamente no seu sonho
até o conquistar

Quando a manhã chegou,
só importava a fé
e uma vontade surda
de responder à ordem sem palavras

Em círculos cruéis,
as curvas de poder se repetiam:
sobre si essa voz que comandava,
sobre o filho a sua própria voz
a ordenar

E no altar em pedra,
o drama consumou-se:

Atordoado em fé
o coração do homem,
a voz do anjo troando pelos céus,

na criança
perdida para sempre
a inocência

Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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IX O DILÚVIO


Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf

Diz-se ainda também: quarenta dias,
feérica a paisagem de animais e de gente;
seres na mesma corrente de água e dor
gritos por entre as trevas; o silêncio
dos raios iluminando tudo; a chuva

cega, fúria anterior
às próprias Fúrias, mãe das cores
desoladas e da ausência de luz,
mãe doce do terror e das falas
dos ventos; os trovões de silêncio
sobre as bocas morrentes,

saciadas de chuva. E então o corvo
e então a pomba (duas vezes ela)
trazendo em bico alheio e inocente:
ordem divina, em ramo

consagrada: o ramo da esperança,
do perdão
pela ameaça seca do
«não mais»

Ana Luísa Amaral
in' "Às vezes, o Paraíso" 

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VIII BABEL



Photo by Emira for Resim & Fotoğraf

E todos tinham uma língua igual
ciosamente amada e venerada
por noites de luar, por dias claros

Com ela nomeavam os sentidos
das coisas sem sentido antes de ser,
por ela se espelhavam na memória,
já que a memória era também de todos
e a todos preenchia o pensamento

E se o céu era alto e eles fortes
no poder todo que a palavra dá,
e se o céu oferecia habitação
às aves e às nuvens e ao sol,
porque não conquistá-lo em desafio
profano?

Diz-se que a punição surgiu precisa
em exacta medida para o crime,
que a confusão cresceu junto às palavras,
ensombrando o silêncio outrora amado,
descompassando os dias
e as coisas

Diz-se que a punição se cumpriu justa
no divino saber
Mas foi decerto gesto de ciúme,
desajeitada afirmação de quem
já não tem demais céus

a conquistar

Ana Luísa Amaral 
in "Às vezes, o Paraíso"

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2012-07-19

VII A LINGUAGEM PRIMEIRA


Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens).

E depois agarrar o pensamento
como se fosse
uma maçã

E com ele partir
para a primeira humana
construção:

invenção reticente
da palavra
sublime e poderosa arte
da mentira

Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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VI A LESTE DO PARAÍSO


Do mural de Tamara Lotres from Allday.ru

Antes ser tudo e livre
do que bom mas humilde.
Assim pensou Caim,
assim agiu

E o oriente lhe foi destinado:
terra de mil castigos
de difíceis colheitas;
mais suor

Só depois descobriu
que lá o sol nascia
e que podia falar das coisas
todas


Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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IV MONÓLOGO (DIZ EVA A ADÃO)


Atrasado romance
em fruto de ouro
amei-te na palavra
que não disse
amei-te no silêncio
do ignorado signo

Como saber de nós? Cantar
talvez das nossas falhas
das nossas desmedidas
faltas?

Amei-te na palavra
ignorada e só:

o que não basta

Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso"

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III TENTAÇÃO


Photo by Erkan Torunn  for Resim & Fotoğraf


De mal ouvido,
o conselho em vazio
se perdeu
todo

E a pequena voz
se fez sentir
com agudeza certa
e encheu jardins e céus
e atravessou montanhas,
transbordando ouvidos

O fascínio vencendo
o conselho divino:

vazio
de tão igual

Ana Luísa Amaral 
in "Às vezes, o Paraíso"


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II RECRIAÇÃO


Photo by Helena Soares



Finalmente dar forma
ao que era inerte
ao que era massa amorfa
no princípio
E percorrendo
insondáveis viagens
criar o corpo
e dar-lhe habitação:
nem só de amor e de amigos
se vive:

também de solidão
além de solidão


Ana Luísa Amaral in "Às vezes, o Paraíso"

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2012-07-17

SOMOS POETAS DA MORTE

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)





Somos poetas da morte –


ouvimos um desconhecido
chegar só a cavalo
sobre um corcel lendário
e unimo-nos ao som dos que crêem
que ainda têm outro dia
disponível, não o sabem:
a sua vida está racionada.


Falámos da morte
nas montanhas do deserto
mas nunca nos responderam à pergunta
que deixou entrar o inverno cristalizado,
só nos resta isto:
esperar que uma mão desconhecida
nos dispense da nossa obrigação
junto às flores do nosso solo pátrio
e oiçamos dizer:


O seguinte.

Mathías Jóhannessen
Jord ur aegi, 1961

Tradução de Amadeu Baptista

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IMAGEM

Photo by Emira for Resim & Fotoğraf

Luar.
Noite ardente nos teus cabelos,
água límpida nos teus olhos.
E calma.

A lua reflecte-se
sobre a superfície da água
e estende a sua mão branca
para o alcantilado.

Numa arca fechada
está o teu tesouro,
quem é o dono
da prata e das pérolas
do teu coração?

Quando sorris
parece-me que se abre o muro
e posso entrar no tesouro
das tuas ilusões e dos teus sonhos.

Mathías Jóhannessen
Fagur er dalur, 1966

TRadução de Amadeu Baptista

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TEMAS


Photo by Tourism in Turkey

I

Ela é uma árvore
que se soltou
das suas velhas raízes
e flutua na rua
com as folhas
sobre os ombros.

II

Quando uma jovem
vizinha
vai à cidade
é como se as árvores
se tivessem desprendido
das suas velhas raízes
e flutuassem nos passeios
com os cabelos
pelos ombros.

E a mulher
sacode as folhas
para que possamos
seguir as suas pegadas
neste formoso dia de primavera.

III

Os teus olhos
não eram espelhos
mas terra escura
que eu toquei com dedos invisíveis
com arado profundo
que entrou no teu coração.

IV

Há uma lagoa no páramo.
Pedras negras assomam
sobre a superfície da água.

Assim assomas tu em meu coração.

V

Surpreendeu-nos o dia
deitados no sofá.
Levantei-me
e corri as cortinas.

Senti na obscuridade
que ela escrevia na minhas costas –

Eu não sabia o que ele escrevia
mas os dedos eram raios.

Eu era a montanha com o seu cume branco
e ela o sol do páramo.
Assim me chegou a primavera.

VI

Os meus olhos desejam-te,
toco-te com as minhas mãos brancas,
os meus dedos são trepadeiras
que se entrelaçam aos teus cabelos,
os meus pensamentos pássaros invisíveis
que esvoaçam entre os teus ramos.

Sim não, como dizê-lo:
amo-te?



Mathías Jóhannessen
Morg eru dags augu, 1972


Tradução de Amadeu Baptista

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A MARAVILHA

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf


Esta maravilha: os teus olhos negros
que se abrem de repente
a um novo sonho: o dia ilumina
o mistério da tua esperança viva
perante a incerteza do tempo e do espaço
tu purificas a doçura da vida
como o sol que desperta as flores adormecidas
da sua letargia de escuridão e noite.


Esta maravilha: os teus olhos negros
sóis ardentes e enamorados
derramam a verdade da primavera
sobre a tua vigília, o teu sonho
que chega com o verde e as flores dos prados
chega com a alegria da tua filha
que enche também os teus olhos
com a maravilha da sua própria primavera.


Esta maravilha: os teus olhos negros
aventura de luz e de sombra
de súbito volta a chamar-nos ao sonho
de súbito tudo estará silencioso:
alguém apagará esses sóis
que brilham na profunda escuridão
dos tuas pálpebras, que se fecharam
num céu cheio de noite.

Mathías Jóhannensen
Morg eru dags augu, 1972

Tradução de Amadeu Baptista

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A TERRA

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf


I


O sol avança lentamente
no horizonte
até alcançar com velas recolhidas
os confins do oceano,
virá a manhã seguinte
com a sua nova carga
de lava de montanhas e de mar.




II


As nossas palavras


lava endurecida
do pensamento
que uma vez foi fogo,


palavras cobertas de musgo.


E nós velhos
crateras apagadas.




III


A terra segue-nos
com o seu manto branco


mas as crateras levantam
os seus punhos


contra o céu.




IV


Dormimos
sob o céu raso
e despertamos
num silêncio
não terreal
vemos o deserto
aproximar-se
vestido de uma manhã
clara e tranquila:


com a sua túnica transparente
chega o velho céu à terra
apoiado num raio de sol
sobre a lava.

Mathías Jóhannessen
Tveggia bakka vedur, 1981

Tradução de Amadeu Baptista

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POEMA DAS CERCANIAS

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf



As crateras repousam
do seu sonho
milenar

a lava veste-se de musgo
sob o silêncio
gelado

a sombra do carro
aproxima-se velozmente
tudo no caminho
se funde
em luar de noite clara

assim nos encontramos com a nossa sombra
e a seguimos
com um vulcão adormecido no peito.

Mathías Jóhanessen
Tveggia bakka vedur, 1981

Tradução de Amadeu Baptista

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Photo by Esradan for
Resim & Fotoğraf

A luz que vem das pedras, do íntimo da pedra,
tu a colhes, mulher, a distribuis
tão generosa e à janela do mundo.
O sal do mar percorre a tua língua;
não são de mais em ti as coisas mais.
Melhor que tudo, o voo dos insectos,
o ritmo nocturno do girar dos bichos,
a chave do momento em que começa o canto
da ave ou da cigarra
— a mão que tal comanda no mesmo gesto fere
a corda do que em ti faz acordar
os olhos densos de cada dia um só.
Quem está salvando nesta respiração
boca a boca real com o universo?»

«A Luz que Vem das Pedras», de Pedro Tamen, in «Agora, Estar»

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5 da manhã

Photo by Emira for Resim & Fotoğraf.


Ás cinco da manhã
refresca, os pássaros deixam de cantar
e a encarniçada luta entre o dia e a noite
cresce, a batalha decisiva é a esta hora
cada manhã, tudo perde
força e morrem
os que esperam a morte em casas
tétricas, um vento fresco percorre os campos
e os prados, cavalos apáticos
vigiam tudo,
como se suspeitassem que é a hora decisiva,
cavalos apáticos e pássaros
deste silêncio opaco, desta
maré fresca matutina aguardam
que a luz saia vencedora
e a noite fria fuja com sapatos obscuros
que a noite se esfume como uma pazada de carvão
no ardente fogo do novo dia
com o sol e a brisa fresca
à vista das aves canoras desta terra
pronta para partir, uma alface num ramo,
cega pela luz da manhã,
há pouca distância entre os marcos
caídos e o tempo respira na margem
e saúda o novo dia azulado
à tua passagem, terra minha.

Mathías Jóhannessen
Tveggja bakka vedur, 1981

Tradução de Amadeu Baptista

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SE...

Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf



Se te tivesse seguido
ela esta noite
como a lua segue a água


se os tivesses encontrado
esta noite
no mundo transparente
da água


se tu fosses uma flor amarela
no silêncio azulado
deste dia passado


se tu fosses esta noite
esta noite de lua
branca


ela seguir-te-ia
como a lua
segue a água.

Mathías Jóhannessen
Dagur af degi, 1988

Tradução de Amadeu Baptista

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RECORDAÇÃO DE UM DIA



Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf

A tua árvore é a recordação
de uma casa
que se ausenta
caminhando lentamente
sobre a velha terra erodida
e o contacto do pecíolo amarelado
da folha sobre o céspede
gelado
na sua despedida


e a asa do dia
ido
que te visita
é a sangrenta podoa
dos seus ramos negros

Mathías Jóhannessen
Dagur af degi, 1988

Tradução de Amadeu Baptista

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NÓS

Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH

I


Nós, que vivemos -
nós, que flutuamos nas horas que fluem
pelos leitos da cidade
da cidade betão
que afoga os segredos
de ruínas perdidas -
nós, que no entanto chegamos
com a sua voz no sangue
que no entanto esquecemos
as suas marcas:
já nem sequer crescem
a cauda do cavalo
e os miosótis
entre as pedras enterradas,
a sua vida está fechada
com o selo da época:
o negro asfalto.






II


Nós, que não entendemos quando nos dizem
no oeste em tempo de seca:
não há secas como as de antigamente.
Não dizemos
que sopra o ábrego
quando empurra os seus barcos
pelo céu encrespado
nós, que esquecemos
a sua voz,
a quem não desperta a atenção que alguém pergunte:
Chegaram a um acordo?
Por que não sabemos escutar?
Por que não procuramos a suas marcas
sob o asfalto
ali onde corriam
regatos tranquilos
e havia ranúnculos nos canteiros?







III


Mas nós,
que já não escutamos
a sua voz no nosso peito
olhamos o céu
como única esperança
de inesperadas notícias.
Tudo mudou:
espaço, verdade, tempo
perderam o seu sentido
e até as águas sujas
já não são as de antes:
mudaram de curso
e correm livremente
pelas nossas veias,
porque nós trocamos
o encanto da tradição
pelo rumor de pompas quotidianas.


Sim, nós -
nós, máquinas nuas,
máquinas de máquinas -
nós, que deixamos
de aspirar o aroma da urze,
o tranquilo silêncio dos páramos -
que deixamos
de sentir o rumor do glaciar
no sangue
e abrimos os olhos como pratos
se alguém adverte e diz:
olha, que formoso
esse alazão -
que enchemos os nossos pulmões
de anidrido carbónico
e vemos os esgotos
correrem por tubos de betão
para o mar -


Oh, sim, nós, máquinas nuas.

Mathías Jóhannessen
Morg eru dags augu, 1972

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2012-07-16

IDEIA

Photo by Jorge Velhote


Os teus pensamentos
fogem
com asas negras
na obscuridade
silenciosa
morcegos
de uma gruta
profunda
e sem eco.

Mathías Jóhannessen
Dagur af degi, 1988

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REFLEXOS NA ÁGUA

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf

Passámos por aqui o ano passado
vimos as árvores reflectidas na fonte
as folhas reflectidas que a água levou -
Voltarão novas folhas
imperceptivelmente.


Percorreremos ainda o mesmo caminho
reflectimo-nos no arroio
vemos envelhecer a nossa imagem
envelhecer e ir morrer ao mar -
imagem que sabemos
que nunca voltará.


Morg eru dags augu, 1972

Matthías Jóhannessen

Versão minha - © Amadeu Baptista


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OH, ESTA PRIMAVERA

Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH

Oh, esta hora
que nos chama ao encontro com a terra
recém germinada, o silêncio transparente da névoa azul
silêncio da terra e do calor -
e eu o sol na tua carne.


O nosso peito é o templo
de que os pássaros da alegria
fugiram rumo à primavera,
deixámos para trás
marcas junto ao rio que os dias
vadeiam pelas pedras
e a noite amadurece sobre o campo -
ouvimo-lo respirar
no seio convexo do rio
as ondas pontais na água, a brisa
rumor suave entre os ranúnculos e as adelfas,
a água precipita-se nos rápidos,
ecoa o rio e no vapor das cataratas
os rais vívidos da manhã -
vejo-te sorrir, vejo a terra inteira sorrir
no teu olhar.


Fagur er dalur, 196



Versão minha - © Amadeu Baptista





Matthías Jóhannessen, nasceu em 1930. Director do jornal de maior tiragem de Reykjavik: Morgunbladid. Autor de numerosos livros de poesia, escreveu também teatro e livros sobre literatura e arte.

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2012-07-14

Frederic Chopin: Fantasie Impromptu

Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH


Na luz da alvenaria inscrevo a minha noite,
o brutal soporífero onde já nada se divide
entre semear e colher,
um verso no reverso da existência,
o olhar afastado desse cálice prolixo,
o rosto estarrecido sobre o prato de sopa,
o instante de agonia no instante que passa.


Se me olhasses agora não sei o que verias,
a selva cresceu à minha volta,
andam cães vagabundos a percorrer a treva,
o sol caiu ao mar e não há estrelas,
tu as levaste para os teus cabelos,
o incêndio alastra sobre a cabeça,
as minhas mãos sitiadas aguardam um sinal,
uma palavra atinge-me e atinge-te,
obscuramente não chegas e não chego ao meu destino.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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Amélia Vieira 1

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

Porque era uma árvore e não choveu. O dia longo do Paraíso não tinha noite.
Num mês qualquer, que o Paraíso não tem solo, mas era verde, talvez Maio, talvez Agosto, talvez um tempo deposto…era naquele momento em que havia mais planetas, todos ao torno da Floresta verde.
Transversais aos oceanos ficaram pequenos continentes, verdes, antes de serem tão certos como o labirinto coberto de abetos.
Era uma árvore e não choveu, era sempre tarde…o Sol não nos venceu, tornámo-nos assim, queimados, quentes, em ebulição, e nada se fez sem a tórrida presença…os anjos cobriram-se de pelo, a minha pele ardeu, o meu ser de outro oxigénio carbonizou num local onde antes era céu.
Temos um corpo para queimar, uma forma que não há, um sangue que ferve, tem febre, inflama …somos fogo, somos chama.
Mas, eu era a Árvore e não choveu. Do bem… do mal….era só Deus, nem bem nem mal ali tivéramos, nem nenhuma divindade aqui nos colheu.
Só este calor e a frescura da Árvore que não era deste céu.
E Deus que não era este Deus.
Nem tu que sendo tu nunca exististes.
Nem eu que sendo eu ninguém me viu.
Pois que na Árvore onde não choveu deixámos os segredos
Os segredos que são memórias…
A terra que me tapa não tarda destapa
Frondosos frutos da Árvore ….
Que nos mata na entrada de
Um tempo que já não era o Meu.



(inédito)

Poemas: © Amélia Vieira





Amélia Vieira. Nasceu em Lisboa, a 8 de Outubro de 1960. Dez livros editados, sendo o último título publicado Gabriel, de 2011. Estudos de Arte e Literatura Comparada. Inúmera colaboração em revistas nacionais e estrangeiras.

Franz von Suppe: Marcha, de Boccaccio

Photo by Emira for Resim & Fotoğraf.

A vertigem preserva as acrobacias do tempo.
Num ínfimo instante o duradoiro
abre um lugar aurífero ao espaço
que cede ao olhar e brilha.
O que brilha é a imensidão das coisas.
O que perdura e range sob os pés
congrega o rastilho ao clarão
e cede de novo às luminárias
que entre céu e céu surpreenderam.
A vertigem é essa dimensão.
Um homem, uma sombra,
não poderiam respirar sem essa marca
luminescente a incendiar os passos.
E esses passos são o absoluto.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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2012-07-13

Sá de Miranda

Photo by 

Possidónio Cachapa

Tudo seu remédio tem
E que assim bem o sabeis,
E ao remédio também;
Querei-los conhecer bem,
No fruto os conhecereis.

Obras, que palavras não:
Porém, senhor, somos muitos,
E entre tanta multidão
Tresmalham-se-vos os frutos,
Que não sabeis cujos são.

Um que por outro se vende,
Lança a pedra, e a mão esconde;
O dano longe se estende;
Aquele a quem dói e entende,
Com só suspiros responde.

Francisco Sá de Miranda.
Desviado do Mural de José Adelino Maltez

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2012-07-10

LUIZ PACHECO

Photo by Project Noah.


Foi outro Fernando Pessoa
com mais miopia e mais filhos.
Foi lúcido como ele
mas não lhe bastou escrever merda.
Aos Coelhos mandou-os para a cona-da-mãe
e às Pedrosas chamou-lhes filhas-da-puta.

Teve o talento do Outro
mas também mais tasca e mais verdade.
No Rossio, no meio do lixo
voltou costas ao SNI e aos prémios da caca.
Deu gravata, casa, sapatos e livralhada.
E entre Tejo e Sado, nú e recém-nascido
cego mas não mudo, vadio e genial
ficou a sorrir entre tolos, bêbedos e gafos.

António Cândido Franco

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