2009-11-10

"O Magusto em casa da bisavó Angelina"







A perna de borrego assa no forno a lenha enquanto o gato, preto como a noite, se aquece, praticamente encostado à panela da sopa de couves verdes segadas durante a manhã no quintal, para ser comida como entrada, com um garfo na mão direita – com as couves enroladas como spaghetti – e um naco de pão de milho com chouriço na mão esquerda, a acompanhar e dar “substância”. As castanhas que irão guarnecer a carne estão a ser cozinhadas num molho que até hoje nunca consegui imitar, porque a receita morreu junto com a bisavó. O pêlo do gato começa a arder. Parece as bruxas, condenadas antigamente à fogueira, pelo Santo Ofício. Quando o lume lhe chega à pele, desata a correr pela cozinha de terra batida, soltando miados aterrorizantes, capazes de acordar todos os mortos do cemitério. A bisavó atira-lhe uma bacia cheia de água gelada e o animal esconde-se, ensopado, debaixo de um dos compridos bancos de madeira da mesa da cozinha. Mais tarde, voltará a postar-se junto das panelas para secar o pêlo, para não ficar com bronquite. A bisavó recorda o tempo em que preparava carne de javali - naquele tempo os porcos selvagens abundavam na região e a bisavó chegou a domesticar alguns, criando-os de pequenos para matar e fazer chouriços, que tratava no fumeiro – com castanhas por altura do São Martinho, altura em que se encontrava grávida de gémeos. Lembra-se como se fosse hoje da queda que deu enquanto transportava o cesto do pão que distribuía pela aldeia. A gravidez ia no sétimo mês e não chegou a completar o tempo previsto. Um dos gémeos nasceu morto. Mesmo assim, conseguiu aguentar quase dois meses com um filho morto na barriga. Quando nasceram, o mais pequenino e mirrado foi quem sobreviveu. Chamaram-lhe Mário. O outro, gordo e lindo, nasceu sem vida com uma evidente contusão na cabeça, de onde já saíam vermes. A bisavó Angelina recorda as febres que se seguiram ao nascimento, as lavagens e as mezinhas feitas e elaboradas pela parteira. Sobreviveu. A bisavó suspira, enquanto vai buscar o vinho tinto verde, feito com as uvas da ramada do quintal, à adega. A bisavó não gosta de jeropiga. A Tia Lucinda, irmã mais velha do gémeo sobrevivente, chegará, vinda do Porto, com a sobremesa: pudim de castanhas e marrom glacê, receitas aprendidas em casa do Douto, onde trabalha como criada de servir lá para os lados da Sra. da Hora. Está na hora de pôr a mesa. A mãe, a trisavó Ludovina, do alto dos seus 102 anos, abre subitamente os olhos míopes, por detrás das lentes encavalitadas na ponta do nariz adunco e indaga, varada pela fome e pela gulodice: "Então, Lininha? As rabanadas já estão prontas? Já deve estar quase na hora da missa do Galo…”


Memórias de Black Desert Rose


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2009-11-06

"À espera, no Restaurante"


Espero a Marta e mais três amigos, sentada à mesa, na “Sara Barracoa”. Um nervoso miudinho arranca-me pequenos arrepios na espinha. Nada relacionado, com a serpente cósmica da cultura hindu – a Kundalini –, mas a proximidade da apresentação do filme “Carandirú” de Hector Bebenco e da discussão do livro dentro de poucas horas está a deixar-me inquieta. Não gosto de ler livros requisitados na biblioteca. Espero não ser despedida ao escrever isto. Mas é só por não poder sublinhá-los a lápis e fazer notas à margem, como é o meu hábito. Não gosto de fazer fichas de leitura e escrever num papel à parte. Mas desta vez teve de ser, uma vez que o livro estava esgotado em praticamente todas as livrarias.
Releio, então, os apontamentos dispersos e tento organizá-los. Releio e sublinho. Com marcador fluorescente. A escrita sai-me sob a forma de crónica, por influência das últimas leituras: a do Dráuzio, a do Miguel, do Magris (claudiano como eu) e do soberbo Vintila, o romeno que escreveu, no exílio, sobre o mais falado romano exilado em Tomos, na antiga Dácia: Ovídio, o poeta, maldito para o Imperador Augusto, autor do provocador “A Arte de Amar”.
As escritas dos diversos Autores colam-se-me ao espírito e passam para a esferográfica. Não consigo evitá-lo. Acabarei um batido, não digo cocktail, porque raramente bebo álcool, de gerações, séculos, milénios da forma de escrever dos que se podem chamar “verdadeiros escritores”. Sem um pingo de originalidade. E, como tal, tenho de me resignar a nunca ser “escritora”, na verdadeira acepção do termo. Não procuro o sublime para impressionar a humanidade, como ambiciona A. Pedro Ribeiro, o ternurento e patético Nero dos tempos modernos e das letras inconvenientes. Espelho-me no espírito racional e pragmático de Agripina, agarrada ao mundo terreno. Apesar de tudo, fascinan-me os que se deixam alienar, movimentando-se no éter do mundo dos sonhos. Um romance onde figurassem todos os escritores contemporâneos correria ao risco de se tornar um plágio de “A Rameira do Diabo” de C. Clément. Ou mais um volume de intragável literatura adocicada, com veneno moralista a escorrer pela caneta fora.


A fome começa a apertar. Ouço um fado na televisão, enquanto observo o guarda-louça de nogueira, com tampo de mármore rosa e me lembro do toucador da minha avó. Desaguam na memória lembranças de almoços de infância, comunhões e baptizados naquela mesma sala, no restaurante já centenário, com a mesa cheia da presença dos que já partiram e agora é o José Luís Peixoto quem está a soprar-me ao ouvido. A parte superior do mesmo guarda-louça tem os copos de que me lembro, de vinho branco, tinto, água, mas as taças de champanhe inspiradas nos seios de Maria Antonieta foram substituídas por elegantes e pudicas flutes. Que pena.

Bem...chegaram os convidados. Bom apetite a todos.

Black Desert Rose

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