2012-08-21

O LIVRO

Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf

Há um livro que nunca chegarás
a ler um livro que te escapou

da mão estava exposto na livraria
mas outra coisa chamou a tua

atenção ou alguém o arrumou
em segunda fila na estante…

Tu não o sabes – como o poderias
saber? – mas esse livro descreve

como e quando vais morrer

Jorge Sousa Braga
[in O Novíssimo Testamento e outros poemas, Assírio & Alvim, 2012]

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O POEMA DO CORTADOR DE RELVA


Photo by Maria Teixeira.

Lê-me disse ela o poema do
cortador de relva mas eu já
me esquecera do poema

apenas que era de manhã
havia um rasto de erva cortada
de fresco e o cortador de relva
eléctrico no meio do jardim sem que
ninguém conseguisse explicar
como fora ele lá parar

Jorge Sousa Braga
in "O Novíssimo Testamento e outros Poemas"

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AGAPANTOS

Foto by Esradan for Resim & Fotoğraf.

Quem desce a avenida até à
praia nos canteiros entre os
prédios nos recantos mais
sombrios do meu cérebro
por todo o lado explodem
os agapantos… É como se fosse
um fogo-de-artifício rente
ao chão como se inteiros
os dias te explodissem na mão

Jorge Sousa Braga
in ""O Novíssimo Testamento e outros Poemas"

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A Terceira Miséria

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
a ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.

Hélia Correia,
in "A Terceira Miséria"

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2012-08-17

EPÍLOGO EM IMAGEM

Photo by Emira for Resim & Fotoğraf




Dizem que o verão em Ítaca
é brilhante.
Dizem que as suas nuvens
são ausentes
e o céu mediterrânico, macio.
Só não sabia a cor das suas aves:
nunca a vira citada em pergaminho
(e a consulta enfastia o coração).
Inventava-as de lenda, muito brancas,
nas letras desenhadas.

Mas hoje de manhã
fora esse céu que vira, e nele elas voar.
E dizem que a mortal,
se assim o vê,
uma benção virá, inesgotável:
setenta vezes sete recompensa.
Diz-se ainda que dizem:
no espaço mais azul da ilusão
as coisas acontecem,
verdadeiras,
deixam de ser miragem.

E passam a habitar
o tempo certo.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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ÚLTIMA IMAGEM


Photo by Alexei L. Antonov by Art Gallery, Poem & Painting Grace Patricia Pani


São projectos de sonho atravessados,
desafiando nascimento e morte:
projectos limitados a não ser.
Roubados do novelo,
da primeira função de bastidor,
pouca coisa lhes resta:
meia dúzia de esboços
com que pintaram sortes.
Que o novelo foi todo tricotado:
tornou-se camisola em tons de mel
sulcada por brilhantes,
e em labaredas calmas ressuscita:
a esfinge em fuso exacto,
o leão em rugido de rouquidão
diferente.

«A luz», exclamou, por fim,
deixando a quem vier:
varanda
– e algum
real

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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ÚLTIMO LABIRINTO


Photo by Emira for Resim & Fotoğraf

Mas os seus passos soam hoje ainda
a soluço inquietante.
Por entre a rocha subterrânea e húmida,
sabem de cor o labirinto igual,
mas teimam em tentar
vê-lo de novo,
descobrir estalactites com desenhos
de barcos por chegar,
de velas enfunadas.
São um grupo inquietante e prisioneiro
de gregos e troianos
e invenções do Testamento Antigo.


«Inimigos?», pergunta,
fingindo-se indecisa ao sonhá-los
amigos.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"


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QUASE EPÍLOGO


Photo by Emira for Resim & Fotoğraf


Abriu o portão grande,
de cadeados largos e de ferro,
e o esboço de cavalo
atravessou o pátio,
exército de nada a preenchê-lo.
Com ele, entraram barcos:
fantasmas alteados na poeira.
Sem novas, sem alvoroços leves
de chegada.
Agora, com passaporte fresco
para a luz,
a sua gentileza confundia.
Mas a cera caíra dos ouvidos dela.

«Permanecer», dissera.

E aceitar as imagens
como são.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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2012-08-15

A HORA MAIS EXACTA


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf



Imagens
que voltavam devagar,
se encostavam a ela sem pudor.
E no silêncio, a esfinge impenetrável,
sabendo-lhe de cor o coração:
desistente dos barcos,
depondo pelo chão de outros palácios
as armas mais preciosas.

«Não posso», acrescentara,
sentindo aproximar-se a hora
exacta.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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A DANÇA


Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH.



Um cântico menor se fez então
ouvir pela planície:
de vestais muito jovens
e de guerreiros novos, de barba
ainda ausente.
Pela cintura delas, um punhal,
pela deles, um cálice de luz.
Ouvira-os a cantar até à exaustão
da noite longa,
em labareda intensa.

«Terminou», concluíra.

Mas o tempo insistia-se
nos tempos.

Ana Luísa Amaral
in"Imagens"

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SEGUNDA VERSÃO


Photo by Emiraa for Resim & Fotoğraf


Esse almoço pequeno em que engolira
duas pequenas lágrimas
como se fossem fatias de sol.
O novelo era grande e já esquecera
o caminho a escolher.
Era a ela que o touro desejava,
como a um verde limpo,
e poder regressar ao seu palácio,
percorrer corredores, mesmo ensombrando
de cascos a madeira,
mesmo que ameaçando porcelanas.

«Toma», dissera ela,
dando-lhe o passaporte
para a luz.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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2012-08-13

PRIMEIRA VERSÃO


Photo by LAS Bellezas De Maria

Esse pequeno almoço de figos e de mel,
em que esperara ver luzes
recortadas.
E a túnica que não se desprendia
por causa do botão cosido a fogo.

«Mais não», dissera então.

E Ulisses ancorara
noutro porto.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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A VERSÃO MAIS PERFEITA


Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.



Dali podia percorrer o azul,
e ver se alguma ilha,
e saber se algum barco respondia.
As notícias não vinham
e era perigoso confiar
nos servos.

«Talvez», dissera ela,

hesitando na história
mais perfeita.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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A INVENÇÃO




Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf

O fio de seda azul agora um touro
escavando um mar sem velas.
O de seda amarela: uma baleia,
e Jonas emergindo,
e Jonas percorrido por terror.

«Inventa», ela ordenara.

E o bastidor: cesto de gávea
ou mastro.

Ana Luísa Amaral
in"Imagens"

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O DISFARCE

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf



O mar era de perto e reclinado.
Egeu ou de um vermelho
que recordava vinhas,
carreiros que pudesse adormecer.
E sonhar duas mãos, umas sandálias.
Ulisses disfarçado.

«Fica», pedira ela.

E o bastidor explodira-se
em imagens.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"


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2012-08-12

COM JARDINS E NAVIOS


Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf



O jardim na planura muito quente
evocava outras ruas
polvilhadas de verde e de museu.
O ventre do navio enchia-se de sol,
parecia-lhe real
na linha circular do horizonte.

«Volta», pedira ela,
sem saber qual o monte
de mais eco.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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O SAL DAS MEMÓRIAS


Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf



As suas mãos, pousando-se na harpa,
paravam-se no arco da memória.
Ausente de rugidos.
Os gemidos do tempo percorrendo
em sal outros gemidos.
É que a casa era branca e muito ampla,
de tectos recortados.
Só saber-lhe a presença
lhe bastava.
Que sim, ela assentira,
defronte a poliedros
de mil
lados.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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TERCEIRO LABIRINTO



Photo by Aldeias de Portugal.

Ficar-se no bordado e em labirinto
era pasmar o sol,
torná-lo coisa igual
a queijo ou circular pequeno almoço.
Rodes, ou Creta, e o sono.
Ponto de caramelo ou rebuçado
onde a história se faz.

«Nada», dissera ela,
adormecendo a língua,
devagar.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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NAS ONDAS, AO ENCONTRO


Photo by Maria do Rosário Fardilha



Eram esses lençóis da mesma cama,
onde os ventos vazios
haviam encontrado a sinfonia?
Onde estavam os barcos que traziam
novas que assim deviam
ser mais novas?
Ou tal não interessava agora nada?

«Nunca», dissera ela,
as ondas pressentindo-lhe
a mentira.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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2012-08-05

SEGUNDO ESBOÇO DE IMAGEM


Photo by J'aime l'art et la nature Flora (de Josiane Cuppens)


Ou varrera outras coisas
particulares, exactas.
Ou varrera outros tempos.
De estopa
ou do mais fino linho branco
era a cortina agora sobre o templo.

«Uma visão», pedira.

Mas o azul só respondia
azul.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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PRIMEIRO ESBOÇO DE IMAGEM


Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf

De noite, de madeira,
ela o sonhara:
cavalo sem orelhas e sem ventre:
só esboço de cavalo.
O sol por entre as tábuas,
o olho a penetrar tábuas diversas:
vazio o seu volume.

«Entra», dissera ao sol.

E o vento do ciúme varrera céus
e águas.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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2012-08-04

ÂNGULOS E NAVIOS


Photo by Daniel Abrunheiro.


A mesa de madeira
permanecera em séculos, igual.
A mesma onde escrevera
coisas de longa data, ou de nem tanto:
labareda da tarde, ou de uma noite,
o bordado do mar,
os barcos que não vinham,
e esperar junto a cais
inexistente.
Conhecera de frente o ser de lado,
o ser de ângulo algum.

«Porquê?», quase dissera,
se, em vez de dois navios:
navio nenhum.

Ana Luísa Amaral 
in "Imagens"

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2012-08-02

A ESFINGE


Photo by Tourism in Turkey.

Mas na sua cabeça, tão de frente,
o soluço insistia-se.
Era a cortina esvoaçante e longa,
ou o vento da noite?
Os barcos não chegavam,
os barcos não traziam
novas de nada, e ela:

«Mais nada», repetira.

E a esfinge, no silêncio,
concordara.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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SEGUNDO LABIRINTO


Photo by Tourism in Turkey


Defronte, agora,
ao monte mais sereno do Olimpo,
as cores eram já outras: não azul.


Mas o salto em vazio e sobre o mar,
e uma esplanada quente sobre nada
de Corfu, Creta, Rodes,
mantinha-se de lado, quase igual.

«Nada», dissera então.

E Ariadne parecera sossegar.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"



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PRIMEIRO LABIRINTO


Photo by Tourism in Turkey.


Como esse olhar de frente,
em sobressalto.
Curto pequeno almoço sobre Rodes
ou Creta.
E a pergunta chegara,
azul de labirinto.

«Nada», dissera ela.

E Teseu descansara.

Ana Luísa Amaral
in "Imagens"

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PRÓLOGO DE IMAGEM

Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf


Os leões insistiam-se,
solenes,
o seu rugido agudo sobre a esfinge
(que deveria ser rugido rouco).
«Não quero», ela dissera.
Um só leão não chega e uma esfinge
é tão pouco.

Fazer algum juízo
particular, exacto, destas coisas
seria amedrontá-las
até ao espaço oblongo
da memória.
É esta a lei da história:
os seus heróis:
uma idêntica esfinge.

Ana Luisa Amaral
in "Imagens"

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