2009-12-14

Cineliterário: "As Horas"/ "The Hours"



Assim, na próxima 6ª feira temos, mais uma vez, o cineliterário na bBiblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão, às 21 e 30, com um excelnte filme e uma desconcertante obra literária.

Com a convidada Maria do Rosário Fardilha, reputada crítica de cinema e administradora do Blogue http://www.divasecontrabaixos.blogspot.com/, a noite promete.

A entrada, para os que ainda não sabem, é livre.

Apareçam!





Realizado por Stephen Daldry EUA 2002 Cor – 115 min.

Com três fulgurantes DIVAS na tela:



Com: Nicole Kidman, Julianne Moore, Meryl Streep; 1923: Stephen Dillane, Miranda Richardson; 1951: John C. Reilly, Jack Rovello, Toni Collette; 2001: Ed Harris, Allison Janney, Claire Danes, Jeff Daniels

Um dia na vida de três mulheres, em três Eras diferentes. O suicídio de Virginia Woolf (Kidman), em 1941, abre o filme, mas a acção à qual a personagem histórica é central desenrola-se em 1923, quando a escritora vivia em Richmond, com o marido Leonard (Dillane), que a rodeia de cuidados extremos, devido ao seu historial de instabilidade mental.

Em Los Angeles, 1951, Laura Brown (Moore), vive com o filho Richie (Rovello) e o marido Dan (Reilly). Laura não consegue enfrentar a vida de dona de casa nos subúrbios, deprimindo-se com as mais pequenas coisas, como o seu fracasso na confecção de um bolo de aniversário ou a atenção requerida pelo filho.

Nova Iorque, 2001: Clarissa Vaughan (Streep) organiza uma festa para comemorar a atribuição de um importante prémio à obra poética de Richard (Harris), seu amigo (e ex-amante), debilitado pela SIDA.

«As Horas» é um filme ao qual nos é difícil dirigir comentários marcadamente negativos, pois foi cuidadosamente construído para agradar a uma certa audiência mais “exigente” e aos júris dos prémios de cinema mais importantes (mediáticos), nomeadamente os Oscars de Hollywood.

É, ao mesmo tempo, um filme de época e um filme moderno, mas é o passado que domina a narrativa, com o tempo presente a funcionar como um epílogo, ainda que exista exposição durante o filme, à medida que Clarissa prepara a festa de homenagem a Richard, na Nova Iorque do presente.

Os actores estão exemplares, bem como as respectivas caracterizações (incluindo o já famoso nariz de Nicole Kidman). É ao nível do texto que sentimos limitações. O filme baseia-se no livro de Michael Cunningham, que, por sua vez, se inspirou em “Mrs Dalloway” de Virginia Woolf.

O mal de vivre trespassa os três segmentos, centrando-se nas três mulheres que os protagonizam, ainda que seja na personagem de Ed Harris, e não na de Meryl Streep, onde encontramos determinados paralelos com Virginia Woolf e Laura Brown. Há também similaridades noutros aspectos, nomeadamente a relevância de relações familiares – entre irmãs, ou mãe-filho/filha – apresentadas de formas diversas, nos vários segmentos e relações homossexuais assumidas (Clarissa e Richard) ou cuja possibilidade é meramente aflorada.

Poderíamos questionar-nos: «The Hours» é sobre o quê, qual é a história que conta? É uma mini-biografia de Virginia Woolf, debruçando-se sobre o período em que a escritora concebia “Mrs. Dalloway” e apontando as causas que a levaram ao suicídio 18 anos depois? Procura aflorar a homossexualidade feminina em várias épocas? Aborda o desgaste provocado pela criação artística ou ilustra que por detrás de um criador pode estar também um indivíduo assolado por fantasmas que o empurram para um beco sem saída, do qual não consegue sair?
«The Hours» surge mais como um curioso encontro entre três contos do que como uma longa-metragem. A grande mais-valia do filme é dada pelo trabalho das três actrizes principais, mas não se deve de forma alguma subestimar a interpretação finamente conseguida das personagens secundárias como a de Toni Collette, no papel de uma vizinha de Laura, e Miranda Richardson, como irmã de Virginia Woolf.
extraído do site:

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2009-12-02

Ainda há Futuros como Antigamente? - VIII: "Os sonhos, dez anos depois"


Fotogra fia de Pedro Norton, importada do blog "adevidacomédia" de Miguel Carvalho



O jantar em casa do Jorge foi uma verdadeira festa para o palato. A confecção dos pratos, a cargo do anfitrião, com o precioso auxílio das mãos de Carina, a assistente do chef. Naquela noite, provei o melhor arroz à valenciana da minha vida. A carne assada, os legumes salteados, a salada não lhe ficaram nada a dever. As sobremesas, trazidas pelos convidados, davam o toque final àquele festim pantagruélico.



O objectivo da reunião era juntar os amigos de há mais de quinze anos, do tempo da faculdade, cujos laços se prolongaram muito depois da data da queima das fitas. Nos últimos anos, porém, a ligação entre as pessoas parecia estar a afrouxar, de uma forma lenta, gradual e progressiva, fruto da pressão imposta pelas necessidade de carácter profissional a separarem vidas e sonhos em comum.



No início do milénio, alguns anos depois de acabarem as licenciaturas, todos irradiavam ainda energia, vitalidade, capacidade empreendedora e forte sentido crítico. Deles, esperava-se carreiras brilhantes, continuadoras de um caminho, já trilhado pela bitola da excelência.
Mas naquele dia, sentada à mesa na casa do Jorge, em Esmoriz, o trigo parecia não ter crescido conforme se havia semeado. E a terra, mimada e cuidada em extremo, teimava em não dar os frutos esperados.



Jorge tem prosseguido firmemente na carreira de professor, aparentemente assegurada por um desempenho profissional irrepreensível, antes e depois da implantação do actual – e mais do que controverso – sistema de avaliação de professores. Dos restantes convidados falarei mais adiante.



Durante a refeição, discutiu-se política, economia e a crise, a corrupção endémica e tentacular, a (suposta) divisão de poderes entre os vários órgãos governamentais, a sucessiva dos direitos constitucionais (na prática, como sabemos, uma vez que, formalmente, ainda se encontram em vigor). A tónica dominante era o pessimismo, a insegurança e o medo em relação ao futuro. Para alguns deles, os negócios não crescem tanto quanto seria de esperar. Mas apesar de a situação não estar má, a incerteza rouba-lhes o sono. E, pelo que vejo, a alegria.



Estou na ponta da mesa e entabulo conversa com Marco André, com quem já não falava há meses. Uma transferência no local de trabalho, devido a um conflito com o chefe colocou-o atrás de um balcão como recepcionista, passando a maior parte do tempo a tirar fotocópias. Marco tem uma pós-graduação no currículo, oito anos à frente da direcção de um museu e domina cinco idiomas. Mas tudo isto não parece constituir uma alavanca suficiente para deixar de ser técnico administrativo e usufruir das regalias destinadas às funções de técnico superior.



Carina comenta, divertida, a forma como surpreende, de quando em vez e não sem uma ponta de malícia, o chefe a jogar solitário no computador durante a hora do expediente, enquanto goza de um cómodo salário de 3000 euros. A jovem finge não perceber. Nas horas de tédio, o chefe sai do gabinete para meter conversa com Carina e as restantes funcionárias administrativas: “Acho que não aguentava ficar oito horas a olhar para um computador”. Algumas sufocam uma gargalhada.



Eu e Marco André divertimo-nos com comentários picantes acerca de algumas “ligações perigosas” dentro daquela organização. Como o da funcionária que entra no gabinete do chefe com leggings e sai sem elas…



Mariana pronuncia-se sobre as uniões de facto e os casamentos dos homossexuais, exprimindo-se com a saudável rebeldia e irreverência de uma alma que ficará eternamente ancorada na juventude…



Natália, a aluna mais brilhante, nos meus tempos do liceu e, depois, na faculdade, refugia-se na sombra dos seus pensamentos, soltando por vezes uma frase de ironia arrasadora…
Estou a abusar das reticências. Influência de Céline.



Em suma, enquanto os convivas continuam a desancar nos políticos, à esquerda, à direita e ao centro, eu e o meu amigo de longa data dissertamos sobres as razões dos desajustamentos emocionais que levam as pessoas a afastarem-se, nos nossos dias. Analisámos caso a caso. Fazemos autênticas autópsias de relacionamentos. As orelhas dos restantes convidados começam a voltar-se na nossa direcção. Não falta muito para sermos expulsos da mesa. Parecemos mesmo as comadres da aldeia, apesar de falarmos para nós e não para os restantes convidados. A gaffe é imperdoável, mas o facto é que a política, a crise, a economia e os negócios já me esgotaram a paciência e não consigo explorar um assunto quando começa a entediar-me.



Para dizer a verdade, estava-me a causar calafrios na espinha o facto de cada um deles ocultar cuidadosamente as suas vidas, o seu íntimo. E não ouvir nunca palavra mágica: prazer. Ou então: amor. Não ouvi uma única vez: “Adorei ter feito isto”. Ou: “Aquilo foi maravilhoso”.
Excepto num único ponto.





O jantar. A comida na mesa. Feita com amor. Só pode.



No mais, os afectos parecem estar congelados. Ou então cuidadosamente encerrados no sótão da obscuridade. Ou no mundo onírico de Dalí. Ou Freud.



Retirei-me um pouco para a biblioteca do anfitrião, com o pretexto de postar algo num blog. Queria reflectir um pouco. Olhar para dentro. Pensar.



Faltara ali o fogo de uma lareira imaginária para incendiar e derrubar os muros que construímos para nos escondermos do Outro. Como Adão e Eva, quando decidiram sair do Paraíso.
As nossas almas vestiram-se de folhas de figueira. A inocência dissipou-se.
E, passo o sincretismo, Afrodite não parecia ter lugar àquela mesa, naquela noite. Se calhar não foi convidada. Nem mesmo a maternal Deméter.



Será que, num futuro muito próximo - ou hoje mesmo em tempos de crise -, o amor é um luxo a que, quem tem fome não pode aspirar?

Cláudia de Sousa Dias

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