2009-12-02

Ainda há Futuros como Antigamente? - VIII: "Os sonhos, dez anos depois"


Fotogra fia de Pedro Norton, importada do blog "adevidacomédia" de Miguel Carvalho



O jantar em casa do Jorge foi uma verdadeira festa para o palato. A confecção dos pratos, a cargo do anfitrião, com o precioso auxílio das mãos de Carina, a assistente do chef. Naquela noite, provei o melhor arroz à valenciana da minha vida. A carne assada, os legumes salteados, a salada não lhe ficaram nada a dever. As sobremesas, trazidas pelos convidados, davam o toque final àquele festim pantagruélico.



O objectivo da reunião era juntar os amigos de há mais de quinze anos, do tempo da faculdade, cujos laços se prolongaram muito depois da data da queima das fitas. Nos últimos anos, porém, a ligação entre as pessoas parecia estar a afrouxar, de uma forma lenta, gradual e progressiva, fruto da pressão imposta pelas necessidade de carácter profissional a separarem vidas e sonhos em comum.



No início do milénio, alguns anos depois de acabarem as licenciaturas, todos irradiavam ainda energia, vitalidade, capacidade empreendedora e forte sentido crítico. Deles, esperava-se carreiras brilhantes, continuadoras de um caminho, já trilhado pela bitola da excelência.
Mas naquele dia, sentada à mesa na casa do Jorge, em Esmoriz, o trigo parecia não ter crescido conforme se havia semeado. E a terra, mimada e cuidada em extremo, teimava em não dar os frutos esperados.



Jorge tem prosseguido firmemente na carreira de professor, aparentemente assegurada por um desempenho profissional irrepreensível, antes e depois da implantação do actual – e mais do que controverso – sistema de avaliação de professores. Dos restantes convidados falarei mais adiante.



Durante a refeição, discutiu-se política, economia e a crise, a corrupção endémica e tentacular, a (suposta) divisão de poderes entre os vários órgãos governamentais, a sucessiva dos direitos constitucionais (na prática, como sabemos, uma vez que, formalmente, ainda se encontram em vigor). A tónica dominante era o pessimismo, a insegurança e o medo em relação ao futuro. Para alguns deles, os negócios não crescem tanto quanto seria de esperar. Mas apesar de a situação não estar má, a incerteza rouba-lhes o sono. E, pelo que vejo, a alegria.



Estou na ponta da mesa e entabulo conversa com Marco André, com quem já não falava há meses. Uma transferência no local de trabalho, devido a um conflito com o chefe colocou-o atrás de um balcão como recepcionista, passando a maior parte do tempo a tirar fotocópias. Marco tem uma pós-graduação no currículo, oito anos à frente da direcção de um museu e domina cinco idiomas. Mas tudo isto não parece constituir uma alavanca suficiente para deixar de ser técnico administrativo e usufruir das regalias destinadas às funções de técnico superior.



Carina comenta, divertida, a forma como surpreende, de quando em vez e não sem uma ponta de malícia, o chefe a jogar solitário no computador durante a hora do expediente, enquanto goza de um cómodo salário de 3000 euros. A jovem finge não perceber. Nas horas de tédio, o chefe sai do gabinete para meter conversa com Carina e as restantes funcionárias administrativas: “Acho que não aguentava ficar oito horas a olhar para um computador”. Algumas sufocam uma gargalhada.



Eu e Marco André divertimo-nos com comentários picantes acerca de algumas “ligações perigosas” dentro daquela organização. Como o da funcionária que entra no gabinete do chefe com leggings e sai sem elas…



Mariana pronuncia-se sobre as uniões de facto e os casamentos dos homossexuais, exprimindo-se com a saudável rebeldia e irreverência de uma alma que ficará eternamente ancorada na juventude…



Natália, a aluna mais brilhante, nos meus tempos do liceu e, depois, na faculdade, refugia-se na sombra dos seus pensamentos, soltando por vezes uma frase de ironia arrasadora…
Estou a abusar das reticências. Influência de Céline.



Em suma, enquanto os convivas continuam a desancar nos políticos, à esquerda, à direita e ao centro, eu e o meu amigo de longa data dissertamos sobres as razões dos desajustamentos emocionais que levam as pessoas a afastarem-se, nos nossos dias. Analisámos caso a caso. Fazemos autênticas autópsias de relacionamentos. As orelhas dos restantes convidados começam a voltar-se na nossa direcção. Não falta muito para sermos expulsos da mesa. Parecemos mesmo as comadres da aldeia, apesar de falarmos para nós e não para os restantes convidados. A gaffe é imperdoável, mas o facto é que a política, a crise, a economia e os negócios já me esgotaram a paciência e não consigo explorar um assunto quando começa a entediar-me.



Para dizer a verdade, estava-me a causar calafrios na espinha o facto de cada um deles ocultar cuidadosamente as suas vidas, o seu íntimo. E não ouvir nunca palavra mágica: prazer. Ou então: amor. Não ouvi uma única vez: “Adorei ter feito isto”. Ou: “Aquilo foi maravilhoso”.
Excepto num único ponto.





O jantar. A comida na mesa. Feita com amor. Só pode.



No mais, os afectos parecem estar congelados. Ou então cuidadosamente encerrados no sótão da obscuridade. Ou no mundo onírico de Dalí. Ou Freud.



Retirei-me um pouco para a biblioteca do anfitrião, com o pretexto de postar algo num blog. Queria reflectir um pouco. Olhar para dentro. Pensar.



Faltara ali o fogo de uma lareira imaginária para incendiar e derrubar os muros que construímos para nos escondermos do Outro. Como Adão e Eva, quando decidiram sair do Paraíso.
As nossas almas vestiram-se de folhas de figueira. A inocência dissipou-se.
E, passo o sincretismo, Afrodite não parecia ter lugar àquela mesa, naquela noite. Se calhar não foi convidada. Nem mesmo a maternal Deméter.



Será que, num futuro muito próximo - ou hoje mesmo em tempos de crise -, o amor é um luxo a que, quem tem fome não pode aspirar?

Cláudia de Sousa Dias

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7 Comments:

Blogger M. said...

Olá, Cláudia!
Obrigada pelo comentário ;)
Só li este teu post (que tem muito “sumo”), porque já vou ter de sair daqui, mas gostei bastante: que bem escreves!
Bjs,
Madalena

8/12/09 10:29 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada, Madalena!
tenho mesmo de visitar a tua Padaria!

só aquele bolo de coco...


csd

10/12/09 8:58 da tarde  
Blogger M. said...

Qual padaria? A panificadora Ribeiro? Não, Cláudia, não tenho qualquer padaria: eu é passo por fases algo obsessivas na cozinha e, a dada altura, fazia pão tão compulsivamente que isto já parecia uma panificadora ;) E como sou Ribeiro…
Bjs,
M.

10/12/09 11:30 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

:-)


que giro!

pensei que trinhas uma padaria/pastelaria...

de qualquer forma aquilo que aparece no blog tem um ar muito profissional..!

csd

11/12/09 9:37 da manhã  
Blogger Sandra said...

Venha conhecer o Natal na minha terra.

Te espero lá na minha terra para compartilhar comigo, este momento magico do Natal.

Cada um de nós traz um pouco da historia.Venha conhecer o meu Natal luz.Estou participanco da coletiva da Suzana.Venha para o blo: http://sandrarandrade7.blogspot.com

o convite esta feito para conhecer o Natal em Minha aldeira( Na minha Terra).
Venha te espero.
SandraVim conferir o seu natal.
Estou participando da coletiva também.
Te espero lá na minha terra para compartilhar comigo, este momento magico do Natal.
Lindo o seu texto.
Cada um de nós traz um pouco da historia.Venha conhecer o meu Natal luz.Estou participanco da coletiva da Suzana.Venha para o blo: http://sandrarandrade7.blogspot.com

o convite esta feito para conhecer o Natal em Minha aldeira( Na minha Terra).
Venha te espero.
Sandra

12/12/09 5:59 da tarde  
Blogger ~pi said...

belo post

belo filme

filme post vida

beijo, abraço 2010

e luz, luz, luz ~



beijo, abraço




~

30/12/09 12:35 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

obrigada, pi!

muita luz é o que mais precisamos neste solstício de Inverno.


csd

30/12/09 9:00 da tarde  

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