2009-09-05

“Aqui na Terra” de Miguel Carvalho (Deriva)




Só para abrir o apetite para a apresentação do livro e leitura de estórias este Outono na Biblioteca Municipal de Famalicão com data ainda a definir...
Não percam.
A junção de uma série de reportagens, revistas e compiladas, a ilustrar o Portugal contemporâneo finalmente publicadas em livro, com a vantagem de incluir todos os ingredientes que poderiam servir de base para o argumento de um filme. Um filme de cuja narrativa principal se destacaria a arquitectura de uma aliciante teoria da conspiração, a qual pode perfeitamente constituir a base de um romance cuja trama ande à volta de uma intriga contemporânea com base em factos reais ocorridos nos últimos trinta anos: desde a investigação do assassínio do Padre Max à morte do Cónego Mello, girando à volta de um combate entre forças políticas atrás das quais se escondem as peças do tabuleiro de xadrez das super estruturas económicas que sustentam o poder no país.


Particularmente saborosa é a última das estórias deste mesmo livro, intitulada “O Imaculado” que expõe o triunfo de uma personagem que poderia figurar na célebre alegoria de Orwell, A Quinta dos Animais, adaptada ao cinema com o título O Triunfo dos Porcos.


Da leitura de Aqui na Terra pode-se contemplar uma paisagem social e económica onde parece triunfar o caciquismo, a radiografia de um país onde a falta de vitamina D , leia-se de Democracia e Desenvolvimento – dois dos três D’s que, a par da Descolonização, constituíam a linha de orientação política em Portugal após o 25 de Abril de 1974 –, implicando um evidente raquitismo no que respeita à assimetria de desenvolvimento regional.


Assumindo uma faceta que muito o aproxima da forma de olhar do antropólogo, pela forma de observar padrões de comportamento e de cultura, conforme refere a Autora do blogue “havidaemmarta”, Miguel Carvalho consegue, ainda assim, transmitir para o papel uma visão romântica, acerca do Portugal mais pitoresco, do qual faz parte a fatia da população de reduzido poder económico mas que vive a vida através da fruição dos pequenos prazeres: Miguel Carvalho dedica-se a explorar os lugares mais recônditos, onde por vezes falta algo tão básico como o saneamento ou a electricidade, onde a população vai, muitas vezes, desaparecendo para levantar voo em direcção a céus onde que abriguem terras que proporcionem melhores oportunidades.


Um país onde, apesar de tudo, existe a esperança (remota) de dias melhores como resultado de uma mudança significativa a implicar uma evidente melhoria de qualidade de vida. Em última instância, recorrendo à via do sobrenatural, obrigando muitas vezes a que se acenda, uma vela ao Criador e, também… ao Outro… só por via das dúvidas.


Os títulos das estórias estão, todos eles, relacionados referências religiosas: “O Pecador”; “O Altar”; “O Cónego”; “A Seita”; “A Purificação”; “A Celebração”; “O Pastor”; “A Cruz”; “O Ritual”; “A Agonia”; “O Santuário”; “O Martírio”; “A Aparição”; “A Devoção”; “A Via Sacra”; “A Romaria”; “A Relíquia” e “O Imaculado”.


A ironia subjacente aos títulos escolhidos para cada uma das estórias/narrativas, aponta para um país muito menos laico do que aquilo que se poderia pensar, atendendo a que estamos na em plena Europa do século XXI, conforme se adivinha pela leitura da epígrafe de Alexandre O’Neill:


O Padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, avelha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista
tramaram para nós a estafada estória
da nossa própria vida


Aqui o trabalho quase que de antropólogo efectuado por Miguel Carvalho funde-se com a missão do repórter, envolvendo as gentes do interior Norte e Centro de Portugal. A escrita é em Aqui na Terra é dotada de um toque de comicidade, que leva o colorido das personagens reais destas estórias e dá um sabor todo especial e pitoresco à obra. No entanto, Aqui na terra é um licvro onde sobressai humor, muitas vezes crítico e sarcástico, mas sobretudo humano, deixando, por vezes, transparecer alguma desilusão face a um vento de mudança que, nalguns recantos deste rectângulo do extremo ocidental do continente europeu nem chegou a soprar. Onde nos apercebemos que, por exemplo, que na meca do turismo religioso em Portugal existem contrastes chocantes, apresentando-se como um lugar onde se constata a cegueira de um povo dentre o qual, tal como no livro de José SaramagoEnsaio sobre a Cegueira -, só os santos mantém os olhos abertos mirando, com sobranceria, a humanidade.


Estórias como “O Cónego” ou “A Seita” evidenciam aqueles que detêm a audácia de remar contra a maré ideológica terão de pagar a factura com juros de agiota. Tanto em 1976 como nos dias de hoje. Sobretudo nas localidades onde governadas por gangsters e onde o tempo parece não correr, onde tudo permanece tão imutável como no tempo em que Eça de Queirós escreveu A Cidade e as Serras.


O monólogo do narrador na crónica do Festival de vilar de Mouros é, definitivamente, brilhante em termos de dotação de qualidade literária, pela fina ironia empregue de forma magistral ao longo de todo o texto, característica de que se serve o Autor para pintar todo um quadro de comportamentos sociais e, ao mesmo tempo, comparar de forma crítica e lúcida os gostos musicais de várias gerações cujos valores, formas de estar de estabelecer comunicação com o outro se projectam na música…


Logo a seguir, o Autor faz-nos chegar um apetitoso estudo sobre o universo da chamada “música pimba” a confirmar o gosto colectivo e secular, tradicionalíssimo e cultural, bem português, pelas cantigas de escárnio e mal-dizer.


Por último, a pérola negra da obra: a crónica “O Imaculado”, ou a dissecação de uma figura ávida de poder e, também, a mais sinistra personagem do livro, cuja leitura aponta alguns indícios acerca da extensão do poder do vil metal, na consolidação e expansão de pessoas individuais que se colocam acima da lei e se infiltram nas esferas do poder através de ameaças, intimação e violência, verbal e física, actuando como algumas personagens “O Polvo” , uma popular série italiana de há algumas décadas atrás, a causar a asfixia da estrutura daquele que deveria ser o poder legítimo.


Que os deuses tenham piedade.


Se puderem.


Se conseguirem.


Se os deixarem.




Cláudia de Sousa Dias

Etiquetas: