2016-11-12

So, Farewell, Leo...with "A Thousand Kisses deep

2016-03-18

O Eros Literário de D. H. Lawrence: os figos e a poesia


Figs


by D.H. Lawrence



The proper way to eat a fig, in society,
Is to split it in four, holding it by the stump,
And open it, so that it is a glittering, rosy, moist, honied, heavy-petalled four-petalled flower.

Then you throw away the skin
Which is just like a four-sepalled calyx,
After you have taken off the blossom, with your lips.

But the vulgar way
Is just to put your mouth to the crack, and take out the flesh in one bite.

Every fruit has its secret.

The fig is a very secretive fruit.
As you see it standing growing, you feel at once it is symbolic :
And it seems male.
But when you come to know it better, you agree with the Romans, it is female.

The Italians vulgarly say, it stands for the female part ; the fig-fruit :
The fissure, the yoni,
The wonderful moist conductivity towards the centre.

Involved,
Inturned,
The flowering all inward and womb-fibrilled ;
And but one orifice.

The fig, the horse-shoe, the squash-blossom.
Symbols.

There was a flower that flowered inward, womb-ward ;
Now there is a fruit like a ripe womb.

It was always a secret.
That’s how it should be, the female should always be secret.

There never was any standing aloft and unfolded on a bough
Like other flowers, in a revelation of petals ;
Silver-pink peach, venetian green glass of medlars and sorb-apples,
Shallow wine-cups on short, bulging stems
Openly pledging heaven :
Here’s to the thorn in flower ! Here is to Utterance !
The brave, adventurous rosaceæ.

Folded upon itself, and secret unutterable,
And milky-sapped, sap that curdles milk and makes ricotta,
Sap that smells strange on your fingers, that even goats won’t taste it ;
Folded upon itself, enclosed like any Mohammedan woman,
Its nakedness all within-walls, its flowering forever unseen,
One small way of access only, and this close-curtained from the light ;
Fig, fruit of the female mystery, covert and inward,
Mediterranean fruit, with your covert nakedness,
Where everything happens invisible, flowering and fertilization, and fruiting
In the inwardness of your you, that eye will never see
Till it’s finished, and you’re over-ripe, and you burst to give up your ghost.

Till the drop of ripeness exudes,
And the year is over.

And then the fig has kept her secret long enough.
So it explodes, and you see through the fissure the scarlet.
And the fig is finished, the year is over.

That’s how the fig dies, showing her crimson through the purple slit
Like a wound, the exposure of her secret, on the open day.
Like a prostitute, the bursten fig, making a show of her secret.

That’s how women die too.

The year is fallen over-ripe,
The year of our women.
The year of our women is fallen over-ripe.
The secret is laid bare.
And rottenness soon sets in.
The year of our women is fallen over-ripe.

When Eve once knew in her mind that she was naked
She quickly sewed fig-leaves, and sewed the same for the man.
She’d been naked all her days before,
But till then, till that apple of knowledge, she hadn’t had the fact on her mind.

She got the fact on her mind, and quickly sewed fig-leaves.
And women have been sewing ever since.
But now they stitch to adorn the bursten fig, not to cover it.
They have their nakedness more than ever on their mind,
And they won’t let us forget it.

Now, the secret
Becomes an affirmation through moist, scarlet lips
That laugh at the Lord’s indignation.

What then, good Lord ! cry the women.
We have kept our secret long enough.
We are a ripe fig.
Let us burst into affirmation.

They forget, ripe figs won’t keep.
Ripe figs won’t keep.

Honey-white figs of the north, black figs with scarlet inside, of the south.
Ripe figs won’t keep, won’t keep in any clime.
What then, when women the world over have all bursten into affirmation ?
And bursten figs won’t keep ?

D.H. Lawrence | Classic Poems



e na versão audio:


https://www.youtube.com/watch?v=wzw_z6A7kgw

2016-02-08

Cinco poemas inéditos de Maria Teresa Horta para o mês de Janeiro





BRINCANDO

Bem me querias ver
cismada
procurando a acalmia
*
Sabendo-me a tua amada
*
Com sapatos de
cristal
em pés de muito sossego
*
Mas eu fujo
ao teu enredo
nas sombras da floresta
*
Preguiçando nas
flores
e nas cavernas secretas
*
Negando-me a ser
de pranto
*
E ainda mais de teu
uso
ou mulher de teu encanto
*
picando o dedo no fuso
*


(inédito)

26/1/2016 





SILÊNCIO

Às vezes
sonha-se alto
*
com o desejo
à flôr
dos dedos
*
É quando custa
mais
guardar o silêncio
*
O segredo


*



(inédito)

27/1/2016


RÉDEAS DO VENTO




Mal pressinto
o banal arrumando
a minha vida
*
Eu tomo as rédeas
do vento
galopo a fímbria dos dias
*
Desato o nó
dos cabelos
vou voando na poesia


(inédito)

29/1/2016


ALCATEIA DA ESCRITA




Eu não te pedi
que me detivesses
a mão da escrita
*
nem a vida
tal como eu sou
ao longo dela
*
Fico a escutar
os lobos
no meu corpo
*
um sopro
um suspiro
uma alcateia
*
No labirinto
No roseiral. Na clareira


*
(inédito)

30/1/2016


PEQUENAS COISAS





A importância
das pequenas coisas
nas nossas vidas:
*
um qualquer gesto ávido
*
A haste, a casa
a asa
um estilhaço de espelho
*
O aço, o beijo, o afago
a rosa sedenta
à nossa beira, o traço
*
o avesso do fausto
*
Um pequeno grão
de luz
a acender a imagem


os sentimentos exaustos
*

(inédito)
31/1/2016


2016-01-26

Virginia's Birthday


Ontem 25 de Janeiro foi o aniversário de Virginia Woolf. Deixo-vos, por isso, aqui o poema inédito de Maria Teresa Horta a ela dedicado.











VIRGINIA

Entre nós há uma conivência
única e contida
nas correntezas das palavras
*
Virginia
*
Unes o teu imaginário
de tessitura e voo
às rutilantes estrelas e luas
da minha poesia
*
Rumo ao Farol - dizes...
*
As duas

*

(inédito

2016-01-10

Inédito de Maria Teresa Horta




















DÚVIDA

As panteras
da poesia
onde o luar rutilante
*
no meu peito seduzia
um leopardo distante
*
- bebendo da água fria -
*
E a madrugada
sombria
onde a corsa indefesa
*
na minha alma morria?


*

(inédito)

2015-12-31

Três poemas de Maria Teresa Horta


Na foto: uma reprodução de «Voar», de Marc Chagall



UM NOVO ANO

Conduz-nos o tempo
devagar
até um novo ano

por entre paixões
esperanças e ruínas

Conduz-nos o tempo
no seu extremo engano
ano, após ano, após ano

por entre dores
júbilos e vertigens

Conduz-nos o tempo
mudando
até um novo ano

por entre o sonho
princípios e ideais

A levar-nos voando
num segundo
até ao cabo do mundo

Maria Teresa Horta
Lisboa, 27/28 de Dezembro de 2015-12-29




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Foto retirada da página Oficial de Maria Teresa Horta



FRÉMITO DE LUZ

Há um frémito de luz
que se adivinha
um perfume louro adormentado

com bagas escarlates
de azevinho e rosas
brancas a decorar a tarde

Há um rasto de neve
e nascimento, doces de mel
lume e frutos secos

um sussurrar fugaz
a mitigar, um som dolente

Memória da infância a recordar
o perpassar do anjo
na viagem do tempo


Lisboa, 23 de Dezembro de 2015


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Foto retirada da página oficial de Maria Teresa Horta



SOLSTÍCIO DE INVERNO

Começo a juntar a fraca
claridade
dos dias demasiado curtos


e a sua gélida sombra
sobra entre os meus dedos

Mas eu teimo e sigo devagar
agasalhada de frio
ao encontro do sol mais a sul

Capricórnio – afirmam-me

Então as gralhas e os corvos
levantam voo da neve à minha frente
num fragor de gelo quebradiço

Inverno – digo em surdina

Esta é a geada do solstício
sei, sem no entanto entender
a sua respiração sustida

Trópico de Câncer – lembro

enquanto na esfera celeste
o sol num amplo movimento
atinge a sua maior inclinação

durante a noite tão longa

É então que chamo o meu amado
quem sabe perdido por entre
cardos, espinhos e lírios devastados

– “Vem para os meus braços!”

Clamo em vão, a procurar abrigo
na floresta onde fico
à espera entre as árvores

da vitória da luz sobre a escuridade

Maria Teresa Horta, 22 Dezembro de 2015


2015-11-16

Poema de Joana Emídio Marques, em memória de sexta-feira 13 de Novembro de 2015


















Imagem: "Verão de São Martinho" de Pedro Hirondino Duarte


[Beirute-Paris]

Beirute
e já não há carne que possa chamar um nome,
fico a vê-la
ir pela estrada de pó
que não leva à cave-escombro sem interior
mas aos hologramas que atravessam os olhos
e abrem neles um grande buraco.
Beirute morre
ou serão os hologramas
que a comandam e lhe arrancam a carne à desolação?
Ele atravessa Beirute
sem ver senão o que paira nos lábios do que não responde.
Já não há carne que possa evocar um nome
nem sequer Beirute.


Ele atravessa Beirute
e não vê o corpo que carrega.
Só ela sabe que Ele veio dessa vez
a única vez.
E carregou-a nos braços
depositou-a no sono.
Só ela sabe que Ele veio dessa vez
tomar-lhe a carne
espalhá-la pelas ruas de pó
pela face dos que fogem
pela boca dos que gritam
Beirute
Beirute.

E já não há carne
a que se possa chamar um nome.
Só Deus atravessando uma palavra,
carregando-a nos braços
devolvendo-a ao sono, anuncia:
Beirute.

[Ritornelos, 2007]

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2015-09-25

Amadeu Baptista

Photo: "Intensity" by Max Vuong



«Árvores no Coração # 8
PLATANUS ACERIFOLIA


Árvores de perseguição, é preciso correr para a janela para agarrar
A intensidade destes verdes, destes ocres, destes vermelhos,
Para saber que a vida é a predestinação dos relâmpagos, por mais
Janelas cegas que encontremos. Árvores de correr atrás, pela copa,

Para que o mundo se anime e tu voltes de onde estás, mistério
Que só estas árvores desocultam quando tudo é cinza em redor
E a desolação do horizonte a única certeza. Árvores de abraçar,
De respirar, por já não termos qualquer atenuante, por ser escura

A negligência desta hora, por tudo estar desabitado
Na extensão dos astros e o soluço do homem se ouvir
A léguas de distância, a séculos e séculos de ausência.
Árvores de fazer uma cama para dormir, para não dormir de todo,

Árvores de velar todo o dia e toda a noite na humanidade que delas
Se desprende, francas e humildes no seu mistério de árvores
Que não sabem o que seja a solidão ou a eternidade. Árvores
De tocar as raízes, de colocar na cabeça como uma coroa,

De fazer levantar os braços para cima para que seja
Um troféu que instiga a permanecer. Árvores de lamber
O tronco, a seiva, a infinita doçura que empreendem, catedrais
De um silêncio sem fim que desdobra nas coisas sussurros

Incessantes, brilhos celestes, potestades que ajudam.
Árvores cobertas de ouro que a treva não destrói, a revivificar
O chão de húmus e sortilégios, pequenos vendavais que se amontam
Na berma dos caminhos. Árvores de gestos cautelosos,

A que é preciso ouvir como a uma criança,
Uma vereda que se atravessa, uma insónia contínua,
Um trovão que se talha, um animal que perscruta a selva
Para atravessar a cidade. Árvores a que prender fitas

Tal como tu atas o cabelo para que o possa desprender,
A que dançar de roda como se a exultação surgisse
Na soberania de ver crescer estas árvores de sombra,
Esta emocionada abundância de cintilações.

Árvores de guardar no coração e nos olhos, no corpo e no espírito,
Para dar guarida ao que divino se ergue em cada um dos plátanos
Que aqui proliferam como se mais nada houvesse,
Ou nada mais bastasse. Árvores em que escrever no tronco

O teu nome com uma navalha para que nenhuma árvore
Se abata, para que nada se ignore, para que cada um
Dos teus nomes corresponda a um outro nome

E nada se aniquile senão a solidão no universo destas árvores.»

© (inédito) Amadeu Baptista

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2015-08-08

Dois poemas de Ana Luísa Amaral



A GÉNESE

A cobiça dos poderosos sempre se estendeu,
como polvo cego, pelo tempo e através dos solos vários.
Dela nunca fez parte a luz.
Não será menor que a cobiça
a sede dos mais pequenos por moedas,
maneiras de cobrir o frio que a fome traz.
Juntas - tem-se o escuro
da alma.

Por isso, e juntos embarcaram.
Os que, já muito possuindo,
mais posses desejavam,
e os que, nada guardando, nem sequer a honra
(pois esta: uma palavra oca no seu mundo),
sonhavam de noite com um pedaço de terra a que chamar seu,
riquezas prometidas.

O que se disse sonho
foi também cobiça e desejo,
transportados em milhares de tentáculos brancos.
Com eles se cultivavam ideias
e horizontes a perder de olhar.

Gratos ficaram os olhos das araras,
que nunca haviam visto corpos de gente
envoltos em tal brilho.
Gratos foram ainda os animais dos leitos salgados,
que usaram muitas vezes esses corpos
para os seus pastos.
Gratos ficaram os bichos de olhos perfurantes na noite,
os de pêlo raso e garras afiadas,
pelo presente inesperado, feito de carne e ossos,
que por vezes receberam.

Foi, porém, na génese das coisas
que isto aconteceu.
A mesma génese que viu os toques a fazerem-se,
a gentileza súbita, o deslumbramento.

Mais tarde, a gratidão deixou de ser praticada,
tal como Deus - crença, nome, palavra dita e escrita,
mas sem semente em solo novo.
Em vez dela, os ombros curvados, as doenças,
os olhos das araras perfurados,
como os do velho rei ou do conde velho de outras histórias.

Só o apetite dos animais dos leitos salgados e das florestas
não esmoreceu,
nem deixou, durante muito tempo,
de ser de vez em quando satisfeito.

Elas, choravam, dos dois lados do mar,
pelos que partiam e pelos que não estavam a seu lado,
ou ainda pelos que com elas estavam,
por serem demasiado meninos.
Porque esses, indo crescer,
haveriam também de partir.

Agradeciam quando eram os filhos das outras a morrer,
não os delas, mesmo que os filhos das outras
tivessem sido assassinados pelos seu próprios filhos.
Falando entre si
de como a história lhes era ramo despegado,
protegiam-nos com fúria nos seus corações.

Podiam, por isso,
as senhoras dos poderosos e as mulheres dos mais pequenos
entender, separadas mas juntas,
que tudo era como um jogo de crianças,
como um pião rodado entre os dedos,
e que, calhando onde calhasse,
resultava na morte ou na vida.

Como um arco lançado pela calçada,
rumo ao porto, precipitando-se nas águas.

Nesses sítios onde habitavam sereias e monstros marinhos,
aí imaginavam-nos elas.
E nada podiam por eles fazer,
que o passado lhes era interdito
- quanto mais o presente, ou o futuro.

O único consolo era julgarem
que a casa dos monstros marinhos,
seres sem cabeça capazes de devorar cabras inteiras,
fechava as suas janelas aos lobisomens.
Pelo menos dos lobisomens
elas pensavam-nos a salvo.

Porque não lhes conheciam
a alma _

Ana Luisa Amaral in Vozes, 2011, Dom Quixote; pp. 95-98.




A VITÓRIA DA SAMOTRÁCIA




















Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.

Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direcção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:

qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.

Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?

O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas _


Ana Luísa Amaral in Vozes pp. 73-74.

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2015-08-06

Ana Hatherly III














Esta Gente / Essa Gente




O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente


Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente


Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha dente
e mostre o dente potente
ao prepotente


O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente


Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer ser dominada por gente


NENHUMA!


A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente


in Calculador de Improbabilidades

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Ana Hatherly II



Os Livros Estão Sempre Sós

Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam a sua fúria com a sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.


Ana Hatherly, in 'Tisanas'

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Anna Hatherly I
















Acordei de repente no meio da noite na rua alguém chamara: A N A !

Então o nome correu pelos ares como um duríssimo triângulo como

um papagaio

de pedra o meu nome é de basalto é uma corrente

bate nos meus ouvidos oiço os seus elos A---N---A---!

São três dedos num só apontam para si mesmos ANA ANA ANA

às vezes parecem pancadas dum pequeno martelo batendo regularmente

bate em mármore talvez qualquer superfície dura e o eco

das pancadas corre em dois sentidos Sentido A <---> A

(corre pelos sentidos).




Tudo o que é sentido por A é sentido por A
N é A em fuga incompleto A   incompleto dois A. É um índice de A     OH ANA!
A negação A partícula O reversível O igual a si O em si
Um nome é em si O que jamais é fora de si
Oiço o meu nome corre sobre mim passa por mim
O meu nome não é eu
O nome passa por mim correndo vem ter comigo grita-me aos ouvidos
O nome é atirado contra mim cai em mim
Com o meu nome caio em mim         A N A
Três pancadas: uma na cabeça outra no peito outra na cabeça
É uma formação As letras voam formação V  


A      A               N

    N                A      A


Rapidamente uma pancada no estômago
Vejo o preso na cadeira Ouve o seu nome Vêm buscá-lo Abrem-se as grades
Vou morrer Não posso desprender-me Estou inocente
Empurram-me para a frente Tropeço pelos corredores no meio dos guardas
Abre-se a grande porta:          A N A !




Salto no ar
                    salto no ar absoluto precedida do meu nome
seguida do meu nome


                      O meu nome atira-me para a frente


                           empurra-me para a frente


                               corre pelo ar absoluto


                                   eu caio no fundo


Olho para o alto: o nome é um triângulo de basalto
Fecho os olhos
Penso na existência do nome.
Quero chorar. Doem-me os olhos. Choro lágrimas de tinta.
Quero olhar dizer o nome. A minha boca está cheia de tinta.
Estou dobrada. Quero erguer-me.
Estou dentro.

                                Tudo o que sou escreve o nome
                                       é para escrever o nome
                                           o vómito do nome
                                             a agonia do nome
                               A minha pele é o chumbo líquido do nome
Os meus membros são as teclas da máquina de escrever o nome


ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA

O nome corre pelo corredor batendo nas paredes desdobrando o eco como
uma peça
de tecido anúncio eléctrico do nome vou de joelhos pelo nome cumpro antigas
promessas sangro tinta pelo nome subo pela máquina murmurando o nome
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...


ANA: se eu fosse disléxica e quisesse ler ANA jamais compreenderia
o que quer dizer ANA. Veria essas formas agudas - vértice, vértice, vértice
invertido
vértice. Mas não o que quer dizer ANA. Jamais compreenderia porque é
impossível
compreender o que quer dizer A - N - A. Por exemplo: o que se passa
na boca:
com uma certa força expelir o ar - A; um pouco de língua contra o céu
da boca
(empurrando levemente contra os dentes de cima) - N; outra vez expelir o ar
apoiando com uma certa força - A. Mas não é bem assim. O ar sai com a
descida da língua. Há só um A - o primeiro - o último não é um A. É um
resto do
movimento do N com um pouco do ar do primeiro A, suspendido em N e
por fim expelido
em A, prolongamento de N.
ANA é isto.
Isso.
A língua quase não se move. É um nome muito tranquilo. Pacífico mesmo. Para dizer ANA com força é preciso estar-se muito zangado. Normalmente
move-se
apenas a língua levemente dentro da boca. Não é preciso muito mais.... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...






Ana Hatherly, Poesia (1958/1978)

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2014-10-16

POETISA



























Sou Morgana
uso filtros
e palavras salvadoras
*
Sigo as rotas
da poesia
*
Com os versos
teço a vassoura
de feiticeira arredia
*
A enredar-me nas rimas
Na travessia que voa
*


(inédito)


Maria Teresa Horta

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2014-10-12

Dies Irae



Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.


Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje


Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.


Oh! Maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas.

Miguel Torga

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2014-08-21

Sophia

E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.


Meio-dia. Um canto da praia sem ninguém.
O sol no alto, fundo, enorme, aberto,
Tornou o céu de todo o deus deserto.
A luz cai implacável como um castigo.
Não há fantasmas nem almas,
E o mar imenso solitário e antigo
Parece bater palmas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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2014-08-18

A Canalha







Como esta gente odeia, como espuma
por entre os dentes podres a sua baba
de tudo sujo nem sequer prazer!
Como se querem reles e mesquinhos,
piolhosos, fétidos e promíscuos
na sarna vergonhosa e pustulenta!
Como se rabialçam de importantes,
fingindo-se de vítimas, vestais,
piedosas prostitutas delicadas!
Como se querem torpes e venais
palhaços pagos da miséria rasca
de seus cafés, popós e brilhantinas!
Há que esmagar a DDT, penicilina
e pau pelos costados tal canalha
de coxos, vesgos, e ladrões e pulhas,
tratá-los como lixo de oito séculos
de um povo que merece melhor gente
para salvá-lo de si mesmo e de outrem.

Jorge de Sena

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Achei que tinhas bondade.
Achei que eras semelhante a prata;
És de chumbo.

Vês-me no alto da montanha.
Eu atravesso o sol;
Sou a própria claridade.

Poema Tsimshian
(versão de Vasco Gato)

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VOZ QUE SE CALA



VOZ QUE SE CALA

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro,
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...

Reliquiae - 1934

In “Sonetos de Florbela Espanca ”
Colecção Autores Portugueses de Ontem
Edição da Livraria Estante – Junho.1988

Florbela Espanca

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2014-03-18

Mapa da europa desde o século X-XI

http://portugalglorioso.blogspot.co.uk/2014/03/mapa-da-europa-1000-dc-ate-hoje.html

2014-01-01

Vão breves passando



photo partilhada a partir daqui: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=722115764473036&set=a.282056735145610.78181.282054545145829&type=1&theater

Vão breves passando
Os dias que tenho.
Depois de passarem
Já não os apanho.

De aqui a tão pouco
Ainda acabou.
Vou ser um cadáver
Por quem se rezou.

E entre hoje e esse dia
Farei o que fiz:
Ser qual quero eu ser,
Feliz ou infeliz

Fernando Pessoa

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SONETO PRIMEIRO




Photo e poema partilhados a partir do mural de Rosana aqui: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=554192108001169&set=gm.664841756891271&type=1


Não foi Guevara, mãe, quem te rasgou
Com os punhais do frio pela manhã.
Foi quando eu te feri que um cão ladrou.
Das rosas veio um cheiro a hortelã!
.

Nos mastros adejavam as gaivotas.
Era Fevereiro. E a noite um pesadelo.
Da chuva que caía algumas gotas
Quiseram repousar no teu cabelo.
.

E eu nasci. No quarto ninguém estava.
À porta só a chuva é que teimava
Em molhar os lençóis da tua cama.
.

Não foi Guevara, mãe, quem tu pariste
Foi um grito do povo azul e triste
Na noite em que chorei luas de lama.

*
Joaquim Pessoa

— com Joaquim Pessoa

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2013-12-10

NADA É EFÉMERO, TUDO É EFÉMERO.

Foto: Autor desconhecido

Voz de Joaquim Pessoa, incarnada num dos mais belos seres do planeta:o Leopardo das Neves. Imaginem que este ser adquiriu as faculdades de LaFontaine e começa a declamar. Oiçam, então.



NADA É EFÉMERO, TUDO É EFÉMERO.




Nada é efémero, tudo é efémero, o que é
é, e o que foi voltará a ser. O coração dos castanheiros
apodrece com a luz, o vento é um feliz acrobata,
de folha em folha, a primavera faz amor com os troncos
e o resultado são os filhos aprisionados
em embirrantes invólucros.
A chuva faz o resto, como boa ama. Engorda-os
para os sacrifícios do outono. Acreditas que Lavoisier
gostava de castanhas? Ou preferes acreditar que a vida
é o resultado de um rosário de solidões em aprendizagem
para a morte, uma obstinada esperança sempre
indecisa no portão de entrada?

Quando fechas os olhos tudo é irresistível,
as mãos do padeiro amassam expectativa,
os olhos do pescador pescam expectativa,
o corpo da bailarina concede expectativa. Mas,
vê lá!, não te surpreenda a expectativa quando
fixares as mãos do padeiro, os olhos do pescador,
o corpo da bailarina.

Não há nada de irreal numa esmeralda ou num helicóptero,
há, sim, nesse cavalo azul que alimentas com a raiz do pólen,
o alazão sobre o qual atravessas cordilheiras
a caminho de casa, a caminho do futuro, a caminho de ti.

A realidade é um poço de surpresas
mas também se aborrece a si própria. Tantos milénios
a esculpir a vida e há ainda nela uma beleza irredutível
como a de um filósofo sentado sobre a neve.
Ah, pois!, cá dentro inquietação, inquietação,
é só inquietação, inquietação, sempre à procura
da tal coisa, porque essa coisa
é que é linda.

Os momentos mais difíceis são simétricos,
a dor miserável das primeiras horas é semelhante
à dos momentos finais, pelo meio os guizos da angústia
tocam como sinos e o desânimo é literalmente
rigoroso, geométrico, saturante.

És um animal que tem a memória por aliada
e por inimiga, e por isso tens dificuldade em controlá-la
quando a ansiedade é um polvo estendendo
desesperadamente os braços para se agarrar
a qualquer coisa, e essa qualquer coisa é a vida,
o mesmo castanheiro cujo coração apodrece com a luz
enquanto a velha canção da terra é interpretada
por todos os pássaros, num canto que tu já
esqueceste e não queres reaprender.

O mais difícil dos momentos difíceis é aquele
em que te buscas e não te encontras nem no ouro,
nem no barro, nem nos livros, nem na religião.
É então que a tua boca se surpreende com o sabor das horas
e com o travo imaterial das mais silenciosas palavras
que hão-de dominar a tua fala durante muitos anos,
até os dias serem tristes como um cão espancado
e já não der para deitar a cabeça sobre a relva
vendo as nuvens passar.

*
(a incluir em POEMAS POLÍTICOS, com
publicação em 2014 pela Editora
Edições Esgotadas)

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2013-09-18

À BELEZA



Photo by Sandra forResim & Fotoğraf































À Beleza

Não tens corpo, nem pátria, nem família,
Não te curvas ao jugo dos tiranos.
Não tens preço na terra dos humanos,
Nem o tempo te rói.

És a essência dos anos,
O que vem e o que foi.

És a carne dos deuses,
O sorriso das pedras,
E a candura do instinto.
És aquele alimento
De quem, farto de pão, anda faminto.

És a graça da vida em toda a parte,
Ou em arte,
Ou em simples verdade.
És o cravo vermelho,
Ou a moça no espelho,
Que depois de te ver se persuade.

És um verso perfeito
Que traz consigo a força do que diz.
És o jeito
Que tem, antes de mestre, o aprendiz.

És a beleza, enfim. És o teu nome.
Um milagre, uma luz, uma harmonia,
Uma linha sem traço...
Mas sem corpo, sem pátria e sem família,
Tudo repousa em paz no teu regaço.

Miguel Torga

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2013-09-14

Jón úr Vör, 11



Imagem retirada de Facebook J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens).


PAZ ARMADA


O velho canhão
no musgoso forte
olha o céu
com o seu olho silencioso,
e um pássaro fez
o seu primeiro ninho
e elegeu para ele
o largo tubo.


 Jón úr Vör,
Stund milli strída, 1942

(Tradução de Amadeu Baptista)

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Poemário; Jón úr Vör, 10




































Imagem retirada do facebook Resim & Fotoğraf

A MEIO DO INVERNO


Cri que nevavam
rosas vermelhas e brancas
e o ar cheirava suave
a meio do inverno.
Aquela a quem amava
caminhava ao meu encontro.


Poemário; Jón úr Vör,
Stund milli strída, 1942

(Tradução de Amadeu Baptista)

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Jón úr Vör, 9




Imagem retira de de Facebook "J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)"



PARA QUE NASCESTE?


Para que nasceste?
O que se te encomendou?
Arrancas umas pedras da terra
para que cresça a erva
e o baldio da aldeia ri-se de ti
pois a montanha ainda não está nem meio erodida,
rugosos os penhascos, nuas as quebradas.
Nasceste hoje,
mas a tua cova foi cavada ontem.


Jón úr Vör,
Thorpid, 1946

(Tradução de Amadeu Baptista)

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Jón úr Vör, 8

Imagem retirada de Facebook "J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)"

TRANQUILA E SILENCIOSA


Tranquila vela a luz
na mão branca do candelabro,
suave e silencioso cruza o sol
as terras em penumbra.


Tanta algazarra
não apagará a miséria do mundo.
Tranquilo e silencioso e na terra
o grão faz-se pão.


Jón úr Vör,
Med hljódstaf, 1951

(Tradução de Amadeu Baptista)

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Jón úr Vör, 7





Imagem retirada de Facebook "Project Noah" (Kakapo, o papagaio que não voa, extinto na vida selvagem)

A LUZ DO DIA


A luz do dia canta nos teus cabelos
caminhas pela margem
e até as pedras amaciam
sob os teus pés nus.


O teu silêncio é a pulsação
daqueles pássaros
que perdido o seu rumo
morrem no mar.


Jón úr Vör,
Med örvalausum boga, 1951

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Jón úr Vör,














Imagem retirada de Facebok "J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)"

SOU UM PUNHADO DE TERRA


Oh, aonde estás,
verdade do simples,
clara como o arroio
que nasce de uma fonte.


Oh, aonde está a tua terra,
pura como as lágrimas de uma criança,
clara como os olhos assombrados
que desfrutam do sol pela primeira vez.


Oh, aonde estás,
verdade do simples,
descalço escutarei a tua fria resposta.


Como pássaro só na escuridão,
longe de toda a fé,
sei que dormirei esta noite,
despertarei amanhã?


Mas aonde, oh, aonde.


Eu sou apenas um punhado de terra
e tu o vento.

Jón úr Vör,
Med örvalausum boga, 1951

(Tradução de Amadeu Baptista)

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Jón úr Vör, 5

GAIVOTA DE INVERNO


O mar guarda o meu canto,
igual aos demais
segredos seus,
num silêncio hermético.


No seu olho vivaz
eu criança, vigilante,
procuro uma
e outra
concha maravilhosa
e frágil.


E vejo ainda
as asas estendidas
da gaivota de inverno
sobre a onda que cai.


Jón úr Vör,
Vetrarmávar, 1960

(Tradução de Amadeu Baptista)

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Jón úr Vör, 4

Imagem retirada de Facebook "BEAUTIFUL PLANET EARTH"


O CAVALO CEGO

Os que ainda tinham olhos
em Hiroshima
viram o cavalo cego,os flancos chamuscados,
a cauda queimada, sem crinas,
correr ao abandono
pelas ruínas da cidade,
nem a morte
ousava montá-lo.


Jón úr Vör,
Maurildaskógur, 1965

(tradução de Amadeu Baptista)

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Jón úr Vör, 3

Imagem retirada de Facebook, "J'aime l'art et la nature Flora (Josiane Cuppens)"



CHINESAS

Recorda essas pedras minúsculas,
pequena
pupilas polidas pelas ondas
da fria eternidade.


Coloca-as uma a uma
sob a raiz da língua,


até encontrares no fim
aquela
que se derreta nos teus lábios
e se faça poesia.


Jón úr Vör,
Maurildaskógur, 1965

(Tradução de Amadeu Baptista)

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Jón úr Vör2

GEADA

A ti,
mulher maravilhosa
com coração
de geada.

O alado corcel
cabisbaixo te aguarda
junto ao rio
com a dor por brida.

Jón úr Vör
Mjallhvítarkistan, 1968

Tradução de Amadeu Baptista.

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Jón úr Vör1

SOMENTE POESIA


A minha vida
não era
senão poesia,


dança ao som maravilhoso
que ninguém ouvia
senão eu,


os meus dias,
os curtos e os compridos,
estrofes e palavras
sem rima.


Gott era d lofa, 1984

TRadução de Amadeu Baptista

Jón úr Vör nasceu em 1917 e faleceu em 2000. O seu terceiro livro, Thorpid (A Aldeia),
causou sensação no panorama literário islandês pelo uso do verso livre, algo insólito na lírica da época. Os seus versos cantam, sobretudo, o fazer quotidiano, em tom reflexivoe ponderado, matizado, por vezes, de ironia. Publicou doze colectâneas de poesia.

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2013-04-27

Peter Lagusen

Photo by Resim & Fotoğraf

Há algo no ar,
é transparente,
inodoro e insonoro.
Noto-o
quando choco com ele,
como se precipita um pássaro voando
contra um vidro.
A minha imagem especular está
na janela –
vejo-me
com um aspecto que não tenho,
e atrás de mim na cozinha
ficam os rolos de papel
como peles caídas de serpente
e o casulo da borboleta
em tapetes voadores
de amor e solidão.
O lago é um olho azul
no rosto verde da terra
e os terraços suspendem-se
como barcos salva-vidas
na medida das casas grandes
O tempo plana
à sombra de comboios de mercadorias e de gatos,
correm-se as cortinas
a luz apaga-se atrás delas.

Tudo flutua em calma pelo espaço
ao longe brilham cinco estrelas
e o céu para o sul está turquesa.

Peter Lagusen
Himmel Kœrlighet Frhed, 1982

Tradução de Amadeu Baptista

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Praia da Boa Nova

Photo by Resim & Fotoğraf.

Mar. Chuva. Ventania.
No denso canavial
(em ligeiro sobressalto)
o doce golpe das palavras,
a desordem dos corpos,
o caos das línguas
na preia-mar das bocas.
Labaredas de fogo
entre enganos e afectos.
No horizonte de neblina,
o voo insondável e branco
de uma gaivota.

António José Queirós

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Adeus

photo by Esradan forResim & Fotoğraf.

Penso em ti.
Há uma voz que se repercute
no coração do poema
com a cadência de um látego incansável.
Oiço os acordes obscuros
de uma música descompassada,
o rumor de um mar intranquilo.
Regressa à memória
o desastre de um desejo envelhecido.
Está frio.
Um tímido sol anuncia
o lento suicídio do Inverno.
Penso em ti,
na vertigem súbita das falésias,
no verde e húmido
olhar da despedida.

António José Queirós

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A divina imperfeição



Photo: autor desconhecido

Caminho sem pressa pelas veredas
de um labirinto que parece não ter fim.
Oiço o som dos meus passos solitários
e sinto as fragrâncias de um jardim que se perdeu.
Entre ser livre ou ser feliz, escolhi
a liberdade de construir outro destino.
Sei agora que a minha vocação
é o silêncio íntegro das sementes
nos campos tranquilos e lavrados.
É tarde. Do pó vim, ao pó quero regressar,
liberto, enfim, da geometria cruel do labirinto.
Dia após dia, procuro a secreta passagem
para a morada longínqua do mundo inicial.
Se Deus projectou em mim a sua imagem
em mim negou a sua divina perfeição.

António José Queiróz.

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Sena-Lino


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf

uma doença infecta, provocada
por balas tracejantes e episódios
retirados do acaso, ora domésticos,
sublinhados por discussões violentas,

ora fortuitos como um acidente
em que uma parte da nuca bate contra o chão
e o sangue corre, fervente, pelo passeio
em que um menino de bibe e sapatilhas pretas

leva as mãos aos ouvidos para não ter que ver
mais do que vê, insustentadamente.
um pavor de doença, que amplia

a legião de fantasmas que nos segue
e nos piores pesadelos admoesta
o sono leve com que a noite passa.


Pedro Sena-Lino
(in Negrume, Lisboa, & Etc, 2006)

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2013-04-26

Éramos deuses


Photo by Tourism in Turkey.

Éramos deuses
e fizeram-nos escravos.
Éramos filhos do sol
e consolaram-nos
com medalhas de lata.
Éramos poemas
e puseram-nos a
recitar uma esmolinha
por amor de Deus.




GONZALO ARANGO (1931-1976)

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2013-04-16

José Emílio-Nelson1

Photo by Sandra (Resim & Fotoğraf)

MINA SAN JOSÉ

Rezo pelos mineiros chilenos.
As almas soltando labaredas de El Greco.
Ciclopes à espera de subirem ao céu azul pelos tubos dum
órgão de luzes que os ressuscita no sepulcro.

Estes mineiros extraem Deus.




José Emílio Nelson

[in Pesa um Boi na Minha Língua, Afrontamento, 2013]

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O que não se sabe



Photo by Sandra (Resim & Fotoğraf)

(glosa oblíqua de um verso de Ferreira Gullar)
Murmuras
Só o que não se sabe é poesia
e eu vejo-te à janela,
observando o movimento das coisas
na rua Duvivier, seu lento desfile,
sua prodigiosa vertigem, sua incerta glória,
uma miríade de coisas simples e pequenas
que desembocam numa grandeza cósmica,
coisas que se agitam, que se inflamam,
que brilham, coisas já matéria verbal
a aninhar-se no poema ainda no limbo,
esse novelo crescendo algures no
labirinto das circunvoluções cerebrais,
acendendo-se na tua consciência durante
o simples acto de olhar a rua, o poema
à espera de encontrar quem não saiba
o suficiente para o escrever, para o dizer.
Estás à janela, com o poema
expandindo-se dentro da cabeça,
poema silencioso, pés de lã, a erguer-se
do nada para uma espécie diferente
de silêncio, o som áspero das palavras
agora no papel, andaimes de tinta, carena
de um navio invisível mas que flutua
e avança leitor adentro, com os porões
carregados da melancolia que julgavas
só tua, mas que cedes agora ao
estranho comércio da poesia,
esse tráfico de ouro e pólvora,
brilho e deflagração.
Estás à janela, a cabeleira branca
reflectida no vidro, consciente
de cada um dos teus ossos,
e sobre os telhados do Rio de Janeiro
o céu que escurece é o de São Luiz
do Maranhão, paira no ar o cheiro
das bananas apodrecendo na tua infância,
a sombra das mil faces da miséria, a violência
venenosa do jasmim, o passado inteiro
com a sua carga ora sublime, ora abjecta,
e tudo isso cai no buraco do poema ainda
por existir, ainda buscando a sua forma
mas já em aproximação brusca
a quem um dia o lerá, compreendendo
ou não todos os sinais, a ordem
dentro da desordem, as asas da mosca
pousada no parapeito e a espiral
da mais longínqua das galáxias.
A rua Duvivier, não a conheço.
Fica numa cidade, o Rio de Janeiro,
onde nunca estive. Por isso, o teu
prédio, a tua janela, assumem na minha
imaginação uma forma que nasce
dos prédios todos de que me lembro
(prédios que não ficam na rua Duvivier)
e de todas as janelas que não são janelas
de prédios que fiquem na rua Duvivier.
É imaginária a janela em que te imagino,
no alto de um prédio também ele imaginário,
mas reais ambos, janela e prédio, porque
és tu e a tua cabeleira branca que se
reflectem no vidro enquanto o poema
ganha forma no labirinto das minhas
circunvoluções cerebrais.
Agora sou eu que murmuro:
Só o que não se sabe é poesia.
Não há poucos poetas porque
saibamos pouco. Há poucos
poetas porque sabemos demais.
Escrever é levantar uma cerca,
arame farpado na planície:
para cá da cerca, as nossas certezas;
para lá da cerca, o que desconhecemos.
Se tivermos sorte, o poema vem ter
connosco quando insones,
sonâmbulos, abrimos o portão
sem fazer barulho e nos perdemos lá
fora, nessa noite que escurece sobre
a nossa ignorância, sobre o Rio,
sobre a verdadeira rua Duvivier
e sobre a que imagino, sobre ti
e sobre mim, perdidos os dois
no reflexo da janela que não há.

José Mário Silva
[Poema escrito, na Póvoa de Varzim e lido na mesa 3 das Correntes d'Escritas]

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Só o que não se sabe é poesia



Photo by (Resim & Fotoğraf.)

FICA O NÃO DITO POR DITO

o poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco

ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra

o poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer

e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer

mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?

mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?

por isso é que
dizê-lo
é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo

por isso que
embora sem dizê-lo
falo:
falo do cheiro
da fruta
do cheiro
do cabelo

do andar
do galo
no quintal
e os digo
sem dizê-los
bem ou mal

se a fruta
não cheira
no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
que houve

(e que
se eu não dissesse
não ouviria
já que o poeta diz
o que o leitor
– se delirasse –
diria)

mas é que
antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
não existia
e o que diz
pode ser que não diria

e
se dito não fosse
jamais se saberia

por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
o oculto:
inventa
cria
o que é dito
(o poema
que por um triz
não nasceria)

mas
porque o que ele disse
não existia
antes de dizê-lo
não o sabia

então ele disse
o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite




Ferreira Gullar

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Hélia 2



Photo by Sandra (Resim & Fotoğraf)



33.
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.

Hélia Correia

in A Terceira Miséria

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