2015-08-08

Dois poemas de Ana Luísa Amaral



A GÉNESE

A cobiça dos poderosos sempre se estendeu,
como polvo cego, pelo tempo e através dos solos vários.
Dela nunca fez parte a luz.
Não será menor que a cobiça
a sede dos mais pequenos por moedas,
maneiras de cobrir o frio que a fome traz.
Juntas - tem-se o escuro
da alma.

Por isso, e juntos embarcaram.
Os que, já muito possuindo,
mais posses desejavam,
e os que, nada guardando, nem sequer a honra
(pois esta: uma palavra oca no seu mundo),
sonhavam de noite com um pedaço de terra a que chamar seu,
riquezas prometidas.

O que se disse sonho
foi também cobiça e desejo,
transportados em milhares de tentáculos brancos.
Com eles se cultivavam ideias
e horizontes a perder de olhar.

Gratos ficaram os olhos das araras,
que nunca haviam visto corpos de gente
envoltos em tal brilho.
Gratos foram ainda os animais dos leitos salgados,
que usaram muitas vezes esses corpos
para os seus pastos.
Gratos ficaram os bichos de olhos perfurantes na noite,
os de pêlo raso e garras afiadas,
pelo presente inesperado, feito de carne e ossos,
que por vezes receberam.

Foi, porém, na génese das coisas
que isto aconteceu.
A mesma génese que viu os toques a fazerem-se,
a gentileza súbita, o deslumbramento.

Mais tarde, a gratidão deixou de ser praticada,
tal como Deus - crença, nome, palavra dita e escrita,
mas sem semente em solo novo.
Em vez dela, os ombros curvados, as doenças,
os olhos das araras perfurados,
como os do velho rei ou do conde velho de outras histórias.

Só o apetite dos animais dos leitos salgados e das florestas
não esmoreceu,
nem deixou, durante muito tempo,
de ser de vez em quando satisfeito.

Elas, choravam, dos dois lados do mar,
pelos que partiam e pelos que não estavam a seu lado,
ou ainda pelos que com elas estavam,
por serem demasiado meninos.
Porque esses, indo crescer,
haveriam também de partir.

Agradeciam quando eram os filhos das outras a morrer,
não os delas, mesmo que os filhos das outras
tivessem sido assassinados pelos seu próprios filhos.
Falando entre si
de como a história lhes era ramo despegado,
protegiam-nos com fúria nos seus corações.

Podiam, por isso,
as senhoras dos poderosos e as mulheres dos mais pequenos
entender, separadas mas juntas,
que tudo era como um jogo de crianças,
como um pião rodado entre os dedos,
e que, calhando onde calhasse,
resultava na morte ou na vida.

Como um arco lançado pela calçada,
rumo ao porto, precipitando-se nas águas.

Nesses sítios onde habitavam sereias e monstros marinhos,
aí imaginavam-nos elas.
E nada podiam por eles fazer,
que o passado lhes era interdito
- quanto mais o presente, ou o futuro.

O único consolo era julgarem
que a casa dos monstros marinhos,
seres sem cabeça capazes de devorar cabras inteiras,
fechava as suas janelas aos lobisomens.
Pelo menos dos lobisomens
elas pensavam-nos a salvo.

Porque não lhes conheciam
a alma _

Ana Luisa Amaral in Vozes, 2011, Dom Quixote; pp. 95-98.




A VITÓRIA DA SAMOTRÁCIA




















Se eu deixasse de escrever poemas em
tom condicional, e o tom de conclusão
passasse a solução mais que perfeita,
seria quase igual a Samotrácia.

Cabeça ausente, mas curva bem lançada
do corpo da prosódia em direcção ao sul,
mediterrânica, jubilosa, ardente, leopardo
musical e geometria contaminada
por algum navio. A linha de horizonte:

qualquer linha, por onde os astros morressem
e nascessem, outra feita de fino aço,
e outra ainda onde o teu rosto me contemplasse
ao longe, e me sorrisse sem condição que fosse.

Ter várias formas as linhas do amor: não viver
só de mar ou de planície, nem embalada
em fogo. Que diriam então ou que dirias?

O corpo da prosódia transformado em
corpo de verdade, as pregas do poema,
agora pregas de um vestido longo, tapando
levemente joelho e tornozelo. E não de pedra,
nunca já de pedra. Mas de carne e com
asas _


Ana Luísa Amaral in Vozes pp. 73-74.

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2015-08-06

Ana Hatherly III














Esta Gente / Essa Gente




O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente


Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente


Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha dente
e mostre o dente potente
ao prepotente


O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente


Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer ser dominada por gente


NENHUMA!


A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente


in Calculador de Improbabilidades

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Ana Hatherly II



Os Livros Estão Sempre Sós

Os livros estão sempre sós. Como nós. Sofrem o terrível impacto do presente. Como nós. Têm o dom de consolar, divertir, ferir, queimar. Como nós. Calam a sua fúria com a sua farsa. Como nós. Têm fachadas lisas ou não. Como nós. Formosas, delirantes, horrorosas. Como nós. Estão ali sendo entretanto. Como nós. No limiar do esquecimento. Como nós. Cheios de submissão ao serviço do impossível. Como nós.


Ana Hatherly, in 'Tisanas'

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Anna Hatherly I
















Acordei de repente no meio da noite na rua alguém chamara: A N A !

Então o nome correu pelos ares como um duríssimo triângulo como

um papagaio

de pedra o meu nome é de basalto é uma corrente

bate nos meus ouvidos oiço os seus elos A---N---A---!

São três dedos num só apontam para si mesmos ANA ANA ANA

às vezes parecem pancadas dum pequeno martelo batendo regularmente

bate em mármore talvez qualquer superfície dura e o eco

das pancadas corre em dois sentidos Sentido A <---> A

(corre pelos sentidos).




Tudo o que é sentido por A é sentido por A
N é A em fuga incompleto A   incompleto dois A. É um índice de A     OH ANA!
A negação A partícula O reversível O igual a si O em si
Um nome é em si O que jamais é fora de si
Oiço o meu nome corre sobre mim passa por mim
O meu nome não é eu
O nome passa por mim correndo vem ter comigo grita-me aos ouvidos
O nome é atirado contra mim cai em mim
Com o meu nome caio em mim         A N A
Três pancadas: uma na cabeça outra no peito outra na cabeça
É uma formação As letras voam formação V  


A      A               N

    N                A      A


Rapidamente uma pancada no estômago
Vejo o preso na cadeira Ouve o seu nome Vêm buscá-lo Abrem-se as grades
Vou morrer Não posso desprender-me Estou inocente
Empurram-me para a frente Tropeço pelos corredores no meio dos guardas
Abre-se a grande porta:          A N A !




Salto no ar
                    salto no ar absoluto precedida do meu nome
seguida do meu nome


                      O meu nome atira-me para a frente


                           empurra-me para a frente


                               corre pelo ar absoluto


                                   eu caio no fundo


Olho para o alto: o nome é um triângulo de basalto
Fecho os olhos
Penso na existência do nome.
Quero chorar. Doem-me os olhos. Choro lágrimas de tinta.
Quero olhar dizer o nome. A minha boca está cheia de tinta.
Estou dobrada. Quero erguer-me.
Estou dentro.

                                Tudo o que sou escreve o nome
                                       é para escrever o nome
                                           o vómito do nome
                                             a agonia do nome
                               A minha pele é o chumbo líquido do nome
Os meus membros são as teclas da máquina de escrever o nome


ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA ANA

O nome corre pelo corredor batendo nas paredes desdobrando o eco como
uma peça
de tecido anúncio eléctrico do nome vou de joelhos pelo nome cumpro antigas
promessas sangro tinta pelo nome subo pela máquina murmurando o nome
... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...


ANA: se eu fosse disléxica e quisesse ler ANA jamais compreenderia
o que quer dizer ANA. Veria essas formas agudas - vértice, vértice, vértice
invertido
vértice. Mas não o que quer dizer ANA. Jamais compreenderia porque é
impossível
compreender o que quer dizer A - N - A. Por exemplo: o que se passa
na boca:
com uma certa força expelir o ar - A; um pouco de língua contra o céu
da boca
(empurrando levemente contra os dentes de cima) - N; outra vez expelir o ar
apoiando com uma certa força - A. Mas não é bem assim. O ar sai com a
descida da língua. Há só um A - o primeiro - o último não é um A. É um
resto do
movimento do N com um pouco do ar do primeiro A, suspendido em N e
por fim expelido
em A, prolongamento de N.
ANA é isto.
Isso.
A língua quase não se move. É um nome muito tranquilo. Pacífico mesmo. Para dizer ANA com força é preciso estar-se muito zangado. Normalmente
move-se
apenas a língua levemente dentro da boca. Não é preciso muito mais.... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ... ...






Ana Hatherly, Poesia (1958/1978)

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