2007-07-22

“O Xaile Indiano”


É noite.

Estamos no nosso refúgio.

Na varanda da casa de praia.

Mais uma vez.

O mar olha-me do fundo da sua negrura de breu, com reflexos de prata. As portas de vidro da sala estão corridas para deixar entrar a brisa…o areal estende-se diante de nós, numa tonalidade de marfim, junto ao qual o mar chão serve de espelho à Lua que está no seu zénite.

Antes que a sua gémea, mergulhe no Oceano, ela vai à cozinha buscar uma chávena de chá verde, para saborear devagarinho, reclinada na espreguiçadeira na varanda…

Aposto que vai ouvir Gershwin….

Ouço o miado aveludado de um clarinete…

Summertime…

Acertei.

A tristeza impregnada no timbre da voz de Ella Fitzgerald espalha-se pelas ondas impregnando a carícia do vento de uma tonalidade escura. Grave. Nocturna. Negra e macia como veludo…

Segue-se Leontine Price. Outra voz negra, mas esta é acetinada e de uma pureza cristalina, aliás, diamantina que chega até às estrelas…

O corpo bronzeado de Luna está envolto no xaile de seda indiano, dourado como as pérolas orientais usadas pelas marahani. Os reflexos do xaile, que ela enrolou à volta do corpo, como um sari, lembram a ondulação do mar, há poucas horas atrás, ao pôr-do-sol. E a luz pálida da Lua, que o atravessa, denuncia cada movimento muscular de um corpo moldado pelo seu desporto favorito: a vela.

Vela e vento.

Porque Luna é brisa e tempestade.

E o xaile um presente que oferece a si mesma para celebrar a sua sede inesgotável de liberdade e independência.

Não é por acaso que nos damos tão bem.

Luna gosta do seu canto.

Do seu espaço.

Que não suporta ver invadido por uma presença estranha.

E eu também não.

Nisso somos semelhantes.

A brisa marítima não está suficientemente fresca para dissipar o ar abafado da sala.

Luna levanta-se e caminha em direcção à praia. O cabelo negro-andorinha cai-lhe pelas costas, realçado pelo tom oiro da seda.

Luna mergulha num mar sereníssimo.

Sereníssima…ela…também…

Como a lua…

Como a espuma das ondas…

Luna é o sol da meia-noite a entrar nas águas negras do Atlântico…

A Lua desce.

Ao seu encontro.



Desert Rose

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2007-07-16

O desmaio do pássaro, visto pelos olhos de jade de um gato ciumento




Não sei o que vê a minha dona naquele passaroco peneirento e tão… cagarola…

…que não pode ver uma folha cair da árvore sem dar um salto e esvoaçar, completamente desorientado, esbarrando-se nas grades da gaiola…

Até em sonhos, não deixa de ser o pássaro mais cobardolas que já vi…


Por falar em sonhos, já vos contei o último que tive com ele?

Parece-me que não.

Aqui há três meses atrás, no início da Primavera, estava eu a dormitar à janela, com o sol da manhã a aquecer-me o pêlo e a expulsar os restinhos de Inverno das articulações, quando Luna decidiu pendurar o bicharoco no ramo do pessegueiro do lado de fora da janela.

Ignorei-os aos dois.

Fechei os olhos e inspirei um pouco a brisa que entrava pela nesguinha da janela aberta, fazendo esvoaçar a cortina…

O Júlio, esse melro-pavão, estava, então pendurado na árvore, mesmo à minha frente, só com o vidro a separar-nos.

Parece mesmo provocação…

Por detrás da árvore fica o jardim.

E, por detrás do jardim, o muro de pedra, cheio de buganvílias púrpura, carmim e fogo.

O pássaro grasnava alegre e descaradamente, como sempre, sobretudo quando passeavam diante da gaiola, desafiadoras, as libelinhas de asas transparentes e delicadamente rendadas, borboletas castanhas, amarelas ou brancas e uma ou outra daquelas moscas azuladas.

As rosas do jardim que fica por debaixo desta janela são o paraíso das borboletas, sobretudo as rosas brancas, cujo perfume se chega a ver, toscamente imitado, nas perfumarias.

Assim como o das frésias.

Brancas, também. E amarelas.

Há, também, aquela roseira de um magenta aveludado que lança uma fragrância ligeiramente frutada, doce e, ao mesmo tempo, com uma acidez de maracujá, que atrai os insectos fazedores de mel, que eu quero ver a milhas de distância do meu focinho…

Estava eu tranquilamente a gozar este cenário idílico, meio a dormitar, quando oiço o Júlio esvoaçar caindo, em seguida, abaixo do poleiro, desmaiado…

Fulminado?

Não…

Inconsciente.

Para meu gáudio…(eheheh)

…e, mais à frente, melhor dizendo, ao fundo do jardim, em cima do muro, estava um desses cães boxer, amarelados, com o focinho todo às pregas a olhar para a gaiola e a ladrar…

Curiosamente aquela horrorosa besta ladrava exactamente como aqueles cãezinhos irritantes e minúsculos da raça Chihuahua que eu costumo fazer em picadinho quando me aparecem à frente…

Luna, no escritório, ouviu o barulho, levantou-se da secretária e foi ver o que se passava. Quando chegou à gaiola tratou logo de pegar naquele exagerado, hiper-dramático e histriónico pássaro e pôs-se a fazer-lhe… uma massagem cardíaca…!

Qualquer dia, aplica-lhe uma respiração boca a boca num dos seus inúmeros chiliques…!

Oh! Como eu detesto aquele pássaro!

Se pudesse segurá-lo nos dentes…

Só um bocadinho…

Bem, o pássaro, por fim, lá acordou e voltou para a gaiola.

Não sem antes Luna tê-lo estragado com mimos e até lhe ter dado um pouco de…bolo de coco!


E para mim…nada…!

De repente, abri os olhos e… fiquei sem perceber patavina. A janela estava fechada e eu no sofá encostado às almofadas.

O Júlio estava no jardim de Inverno na varanda coberta com o toldo azul.

Luna chama-me.

O prato de leite espera-me na cozinha.

Está na hora do pequeno-almoço.


Cláudia de Sousa Dias

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2007-07-06

Conversa e sessão de Autógrafos com Bruna Lombardi











Afastada há já mais de uma década das telenovelas e a viver nos EUA, Bruna Lombardi é uma mulher activa e multifacetada. A escrita, o cinema e a apresentação de um programa televisivo são actividades que a realizam profissionalmente. A cultura é, para ela, uma paixão à qual se dedica com a motivação de um cruzado impregnado dos ideais de progresso e desenvolvimento intelectual como motores de mudança.

Bruna Lombardi esteve em Vila Nova de Famalicão no dia 30 de Junho, na Biblioteca Municipal Camilo Castelo Branco, para a apresentação do seu romance Filmes Proibidos, uma reedição com a chancela da Magnólia, a irmã mais jovem das Quasi Edições. Extremamente empática, Bruna Lombardi é uma mulher envolvente que utiliza as suas mais do que desenvolvidas competências na arte de comunicar ao interagir com o público.

Discreta e muito distante da imagem de mulher fatal que quase sempre a acompanhou nas telenovelas, BL é uma mulher culta e extremamente inteligente. Algo que sobressai na escrita e no imaginário que projecta no romance Filmes Proibidos (vide http://www.hasempreumlivro.blogspot.com/ arquivo de Fevereiro de 2005) – um livro que fala da tentação do abismo, da possibilidade de fazer a escolha errada. Uma dentada na maçã para sair da perfeição edénica e depois empreender o caminho de volta.

A respeito do livro Bruna comenta, em conversa com um público que evidenciou uma forte curiosidade relativamente ao desenvolvimento da sua faceta como escritora:
“É o meu primeiro romance. Já tinha escrito poesia, um livro infantil (…)”.

E, também, um diário aquando da sua participação na novela Grande Sertão – Veredas, um papel muito duro, no qual interpreta uma mulher que esconde a sua feminilidade, assumindo uma identidade masculina. Provavelmente o melhor papel da sua carreira televisiva onde contracena com Tony Ramos, numa adaptação do romance homónimo de Guimarães Rosa para o pequeno écran. O isolamento, a desolação do lugar durante as filmagens, levaram a actriz a uma atitude introspectiva e a procurar na escrita uma compensação para a solidão esmagadora, causada pela desolação da paisagem sertaneja.

Filmes Proibidos foi um trabalho posterior a este diário, transformado, depois, em livro.

“Filmes Proibidos é a história de uma mulher que se apaixona perdidamente, que se entrega sem rede de segurança…é uma paixão impossível de resistir. É como ser-se tomada por uma faísca de loucura. Depois, a personagem passa por uma acção de modificação, transformadora. Porque nunca somos a mesma pessoa depois de uma paixão.”

Quando lhe pedimos para falar um pouco mais acerca da personagem central do romance, para desvendar um pouco a personalidade da mulher que ousa pisar a linha vermelha que indica o limiar do perigo, a escritora responde:

“É uma mulher urbana, do nosso século, que tenta fazer com que a vida dê certo, mas as circunstâncias são sempre adversas. Ela entra numa espiral, onde acaba por perder o controle de si mesma e dos outros. É um processo de desconstrução. Mas é impossível crescer sem antes passar por uma floresta escura. Acha-se sempre a luz depois do furacão. E ela está no olho do furacão.”

Bruna Lombardi mostrou-se impressionada com o aspecto da cidade, apreciando especialmente os espaços verdes e…a comida! - “ Devia ser proibida…!” – achando-a irresistível, sobretudo os doces.

Bruna Lombardi salientou, ainda, o impacto dos diferentes meios de comunicação enfatizando que:

“A televisão é mais rápida (na transmissão da mensagem), mas o livro é que permanece. O livro abre as portas da alma. Transporta-nos, exercita a imaginação. O que você lerá, vai-te acompanhar a vida inteira. A Biblioteca, para mim, é um lugar sagrado. Um legado de história e cultura, sem preço. Quando alguém diz que não quer morrer sem plantar uma árvore, ter um filho e escrever um livro, está a pensar em legar algo para a posteridade. Ler é tão importante quanto escrever. O escritor precisa de, pelo menos, um leitor. E para o leitor é bom quando lê um livro, se identifica com o personagem e pensa: não estou sozinho. Já imaginou um mundo sem livros, sem bibliotecas? Num mundo sem livros vamos ficar mais cruéis, mais desumanos. Vamos, pois, preservar o Livro e as bibliotecas.”

Quando, do público irrompe a pergunta:

“Qual, na sua carreira de artista, actriz e escritora, a faceta que se sobrepõe, que predomina?”, Bruna Lombardi afirma que “elas acabam se somando. Um escritor é um actor “para dentro”. São mais tímidos, mais introvertidos, mas na hora em que estão escrevendo, eles estão interpretando vários papéis. E como actores, também se transformam em vários personagens (...). Ambas as facetas sempre correram muito paralelas. Finalmente, com o cinema, consegui fazer com que elas se encontrassem: eu faço o guião para o filme e trabalho como actriz.”

Bruna elogiou, ainda, o espírito empreendedor das Quasi Edições e do Grupo DoImpensável, do qual também faz parte a editora Magnólia, sublinhando a dificuldade em triunfar no mundo editorial. E que, apesar das dificuldades no mercado, esta pequenina editora famalicense está a conseguir impor-se no mercado Brasileiro. Teceu, ainda, rasgados elogios ao executivo local, aproveitando para incentivar a multiplicação de eventos semelhantes, ao referir a necessidade de investir nesta área:

“A Arte sempre dependeu de mecenas. Senão não teríamos a Capela Sistina. Não teríamos as Caravelas e os Descobrimentos. Não teríamos Mozart. Fernando Pessoa fez mais, com a Poesia, do que muitos. Transformou Portugal num país mundialmente conhecido. Nos EUA lê-se e chora-se com Fernando Pessoa. Um país é conhecido pela sua Arte. E, também, pela comida. Mas isso não é problema para vocês (risos). Por isso, é importante que quem tenha a possibilidade de ajudar ao desenvolvimento da cultura, é importante que o faça. Porque a cultura abre portas, canais.”

Inquirida em relação aos autores portugueses da sua preferência, para além do já mencionado Fernando Pessoa, Bruna Lombardi revela:

“Fiz, durante dez anos, uma programa de entrevistas – Gente de Expressão. Numa dessas entrevistas conheci José Saramago, que é um ser humano muito interessante. O livro Ensaio sobre a Cegueira está a ser adaptado para cinema pelo mesmo director de A Cidade de Deus e a ser rodado no Canadá. Olha só quantas portas se abriram através de um livro.”

E foi assim a conversa com uma das mulheres mais belas e inteligentes do século XX, após a qual se seguiu a sessão de autógrafos no Auditório da biblioteca onde distribuiu cumprimentos e simpatia.

Aguardamos ansiosamente nova visita.

E um novo livro.

Para abrir portas para novos mundos.


Cláudia de Sousa Dias

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2007-07-02

Cold Mountain no Cineliterário




















Estas são as imagens dos mais belos momentos do cineliterário da passada 4ªfeira, dia 27 de Junho.

As fotos dizem respeito a algumas cenas do filme Cold Mountain de Anthony Minghella baseado na obra homónima de Charles Frazier (vide http://www.hasempreumlivro.blogspot.com/ arquivo de Janeiro de 2006) com Jude Law, Nicole Kidman e Renée Zellwegger.


Apesar de a crítica ter massacrado o filme, comparando-o a uma versão menor de E tudo o vento levou, trata-se de uma obra de grande beleza plástica. Um filme que revela a força, a violência, a animalidade brutal dos dois lados da guerra no impacto das bombas ao arrancar as roupas em chamas dos corpos queimados, que dá ao filme a nota de realismo que a aclamada produção da época dourada de Hollywood carece.

A extrema dificuldade em transpor para a tela uma personalidade introspectiva de um misantropo como Inman, que quase não fala, aliada à timidez de Ada, são talvez os factores responsáveis por comentários referentes àquilo que chamaram de "dificuldade em quebrar o gelo" entre os dois actores ou "falta de química".

Para quem leu o livro é notório que o realizador se limitou a respeitar a obra literária.

O olhar de Jude Law é muito mais expressivo do que qualquer palavra. O "gelo" de Nicole é largamente compensado pelo timbre da voz, perfeitamente impregnada do sotaque sulista que, ao assumir o papel de narradora - tal como no livro, a história é contada a duas vozes onde há como que duas narrativas paralelas - está temperada pela emoção, por uma saudade pungente.

Mas se, por um lado, Anthony Minghella não conseguiu exprimir totalmente a dureza, a agressividade do clima da Montanha Gelada da Carolina do Norte para com um ferido de guerra, a beleza agreste e gélida, o silêncio eloquente da brancura nevada das montanhas, estão inequivocamente retratados.
E omnipresentes.
Para não falar da belíssima cena de amor dos protagonistas. Cada plano é captado de modo a exibir as cores solares ou, diria mesmo, vulcânicas, dos quadros de Caravaggio, Boticelli ou Tiziano. Corpos iluminados pelo fogo, sob o fundo escuro da cabana de madeira. Cada plano, cada ângulo da nudez de Jude e Nicole é uma obra prima digna de figurar na Galeria Uffizzi.

Um filme a ver. Um livro a degustar. Palavra a palavra.



Cláudia de Sousa Dias

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