2012-06-28

Wolfgang Amadeus Mozart: Andante " Elvira Madigan ", do Concerto para piano No. 21

Photo de Markahuasi - Página Oficial


Há ainda a consistência do veneno, essa parte expectante
que para lá do sonho infunde pavor e mistério
a quem procura a alma. Talvez esse frasco negro
nos grite a imensa necessidade de vida que ainda aguardamos,
talvez mesmo o rosto do reflexo nessa superfície baça
nos faça lembrar o que ficou para trás, com que gatilho
superamos a realidade, as cores mortíferas da vertigem.
Redonda, a trama invectiva-nos a um gesto supremo e sagrado,
é tanto o silêncio que a oração mental das coisas
se pode ouvir e ainda hesitamos, como se não fosse
possível intuir em sequências fragmentárias
esse prazer unívoco da proximidade de algo avassalador
e agreste. O gesto abarca a precariedade de um continente,
perpetuamente suspende a tensão para que a tensão
ilumine o que é fulminante, pó branco que se separa
das paredes compactamente, como se
já não haja milagres à superfície da terra.
É uma pequena praia essa cinza finíssima, um dedo toca-a,
as recordações chegam porque algo ainda nos sustém
à amplitude do mundo, um dia, alguma vez,
um instante qualquer. A mão carrega sobre a boca
esse quinhão de aprendizagem e ignorância, mais leve que o ar
impulsiona os lábios, de novo o forte odor recobre tudo,
a língua estremece e tudo se consuma, mesmo essa árvore
que nos uniu ao passado e nos devolve ao amor, o sinal obscuro
em que a claridade alastra.
Não mais que três segundos e há-de ver-se a Deus e ao anjo.
Pela primeira vez a luz é escuridão.
O grito audível em séculos de distância
por um instante apenas: frei aber cinsam, o sonho
de qualquer homem em qualquer lugar do universo,
incontornável, tangível.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

Etiquetas:

2012-06-27

DE OUTRA REALIDADE

Photo by Flores.


Ponho-me doente do grito que pede realidade.
Estive demasiado próximo das coisas,
de modo que me queimei ao atravessa-las
e estou do outro lado delas,
onde a luz não está separada da obscuridade,
onde não se pôs nenhum limite,
só um silêncio que me lança para um universo de solidão,
de incurável solidão.
Olha, refresco a mão na erva fria:
Isto será a realidade,
será suficiente realidade para os teus olhos
mas estou do outro lado
onde as lâminas da erva são sinos sonoros de pena e



amarga expectativa.
Tenho nas mãos a mão de uma pessoa,
olho os olhos de um ser humano,
mas eu estou do outro lado
onde o homem é bruma de solidão e angústia.
Ai, se eu fosse uma pedra
que pudesse suportar o peso deste vazio,
mas eu sou um ser humano arremessado ao país fronteiriço,
e ouço rugir o silêncio,
oiço gritar o silêncio
de mundos mais profundos do que este.

Gunvor Hofmo
Fra en annen virkelighet, 1948

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

2012-06-26

AMIZADE ACABADA

Photo by Helena Soares

Tudo sem altura, sem profundidade.
Andar pelas tuas ruas e sorrir
maliciosamente para as tuas entranhas
enquanto te fica o asco
na garganta:

os olhos exilados de Cristo
não são teus,
morta está a tua amarga ternura por uma alma.
Céu baixo, neve cinzenta e um cemitério.

Gunvor Hofmo
I en våkenatt, 1954

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

BARCO NOCTURNO

Photo by Erkan Torunn by Resim & Fotoğraf.



Os corredores vazios.
Só está acesa a lâmpada da mesa.

O hospital como um barco
que navega por águas perigosas.
E os passageiros angustiosamente despertos.
Atentos aos ruídos de fora,
algum tremor no enorme casco do barco,
um grito que nunca chega.

Finalmente o grito volta-se
para os signos de sonho do céu
representados, imagem após imagem,
por anjos negros como a noite que abrem
os abismos com as suas chaves celestes.

E calada, uma enfermeira acerca-se com passo rápido
de alguém que se queixa a dormir.
O barco inclina-se para uma noite ainda mais profunda.

Gunvor Hofmo
Gjest på jorden, 1971

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

DESPACHA-SE



photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.


Despacha-se o asseio matinal
despacham-se almoço e jantar
com a mesma inexorabilidade
Despacha-se a tarde
e os enfermeiros vão para casa
Despacha-se o sonho
e a enfermeira anda com passo ligeiro
pelos corredores.
Despacham-se as guerras
e algo sempre fica
crianças com pele cinzento de chumbo, o soldado
com uma perna que zurze
a muleta contra a calçada,
os cegos.
Despacha-se a morte
e há uma rosa solitária
diante de uma pedra fria.

Gunvor Hofmo



November, 1972

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

DEUS NÃO FALA

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

Deus não me fala
a mim como a Moisés
não me agride
como a Job
mas Ele está no
terrível silêncio
dentro de mim.
Lentamente Ele
vai-se desprendendo
como as primeiras folhas
luminosamente verdes da bétula.

Gunvor Hofmo

Veisperringer, 1973

TRadução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

NÃO EXISTE


Photo by I dream of Lebanon

Não existe
o que veio com a chuva
o que veio com os ventos
o que veio com a neve
A queixa inconsciente
de um pássaro adormecido disse-o:
não existe!

Gunvor Hofmo
Mellomspill, 1974


Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

UMA ROSA BRANCA


Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.

Uma rosa branca é uma lua
colocada no deserto jarrão
do céu.


Der er sent, 1978






Versão minha - © Amadeu Baptista





Gunvor Hofmo. Nasceu em 1921, em Oslo. Publicou os seus primeiros poemas no jornal comunista Friheten e na revista Hjemmet. Um dos seus primeiros poemas foi escrito para a sua amiga Ruth Maier, que veio a ser, durante o Holocausto, presa, deportada e assassinada em Auschwitz, perda central para a vida de Gunvor Hofmo, que iniciou uma luta profunda com a depressão e a doença mental. Foi institucionalizada no Gaustad Hospital, entre 1955 e 1971. De 1977 até à sua morte, que ocorreu em 1995, nunca deixou o seu apartamento em Nordstrand, Oslo. Publicou 17 livros de poesia e foi traduzida em sueco e em russo.

Etiquetas: ,

George Friederic Handel: Hallelujah Chorus, do Messias

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.


Uma forma de voo sublime,
vozes e vozes que flutuam como
essas que são dos anjos,
etéreas e magníficas,
mas aos homens pertencem
para que o silêncio alastre
sobre tudo o que arde e em nós alastra
o que divinamente humano
canta e voa.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

Etiquetas:

DIETA


Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf.


As gambas secam a córnea
a gordura dá seborreia
os crepes atulham em demasia o estômago
o toucinho não é bom para o coração
o peixe não é bom para o carniceiro
o frango não é bom para os franganotes
os croquetes não são bons para nada
evitem a sopa de mandioca durante o casamento
o doce é pecado
o ácido é perigoso
o sal encurta a vida
o amargo prolonga inutilmente
a marmelada achata as orelhas
o guisado contrai a bexiga natatória
os ovos fazem com que os braços fiquem torcidos
o queijo influi no sentido do olfacto
o rábano branco influi no paladar
as massas influem a audição
os rábanos limitam o horizonte
as ervilhas entravam o crescimento
a couve-flor impede que se veja a paisagem
o pequeno-almoço tira o apetite
o jantar agudiza-o
os alimentos não são bons para o estômago
a vida é malsã
nham
nham
nham

Benny Andersen
Det indre bowlerhat, 1964

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas:

2012-06-21

UM BURACO NA TERRA


Photo by Rick Bohler for Project Noah.


Apareceu um buraco na terra. Vazio.
Sem terra à volta
não existiria em absoluto.
O buraco depende profundamente da terra,
um vazio que mostra que algo existe
algo que mostra que aquele vazio existe.
Se não houvesse terra
tão pouco haveria vazio.
De um buraco vieste
à terra voltarás.
Ou vice-versa.
Dou uma palmaditas carinhosas no buraco
e sigo caminhando na terra.


Personlige papirer, 1974

Versão minha - © Amadeu Baptista





Benny Andersen. Nasceu em Vangede, Copenhagen, em 1929. Estreou-se em 1965. Além de poesia, escreveu um romance, guiões para cinema, literatura infanto-juvenil e comédias para a televisão. Excelente pianista, compõe a música e as letras das suas canções. A sua poesia, de tom humorístico, é já parte integrante da cultura dinamarquesa.

Etiquetas: ,

2012-06-17

Ode ao Gato


Photo by Esradam for Resim & Fotoğraf.



Os animais foram


imperfeitos,

compridos de rabo, tristes

de cabeça.

Pouco a pouco se foram

compondo,

fazendo-se paisagem,

adquirindo pintas, graça, voo.

O gato,

só o gato

apareceu completo

e orgulhoso:

nasceu completamente terminado,

anda sozinho e sabe o que quer.



O homem quer ser peixe e pássaro,

a serpente quisera ter asas,

o cachorro é um leão desorientado,

o engenheiro quer ser poeta,

a mosca estuda para andorinha,

o poeta trata de imitar a mosca,

mas o gato

quer ser só gato

e todo gato é gato

do bigode ao rabo,

do pressentimento ao rato vivo,

da noite até seus olhos de ouro.



Não há unidade

como ele,

não tem

a lua nem a flor

tal contextura:

é uma só coisa

como o sol ou o topázio,

e a elástica linha em seu contorno

firme e sutil é como

a linha da proa de um navio.

Seus olhos amarelos

deixaram uma só

ranhura

para jogar as moedas da noite.



Oh pequeno

imperador sem orbe,

conquistador sem pátria,

mínimo tigre de salão, nupcial

sultão do céu

das telhas eróticas,

o vento do amor

na intempérie

reclamas

quando passas

e pousas

quatro pés delicados

no solo,

cheirando,

desconfiando

de todo o terrestre,

porque tudo

é imundo

para o imaculado pé do gato.



Oh fera independente

da casa, arrogante

vestígio da noite,

preguiçoso, ginástico

e alheio,

profundíssimo gato,

polícia secreta

dos quartos,

insígnia

de um

desaparecido veludo,

seguramente não há

enigma

na tua maneira,

talvez não sejas mistério,

todo o mundo sabe de ti e pertences

ao habitante menos misterioso,

talvez todos o acreditem,

todos se acreditem donos,

proprietários, tios

de gatos, companheiros,

colegas,

discípulos ou amigos

do seu gato.



Eu não.

Eu não subscrevo.

Eu não conheço ao gato.

Tudo sei, a vida e seu arquipélago,

o mar e a cidade incalculável,

a botânica,

o gineceu com seus extravios,

o por e o menos da matemática,

os funis vulcânicos do mundo,

a casaca irreal do crocodilo,

a bondade ignorada do bombeiro,

o atavismo azul do sacerdote,

mas não posso decifrar um gato.

Minha razão resvalou na sua indiferença,

o seu olho tem números de puro.



Pablo Neruda
(Tradução de Maria Teresa Almeida Pina)

Etiquetas: ,

FLORESCIMENTO ANTINATURAL


Queria gritar – já não aguentava. Nada havia para escutar-lhe,
ninguém queria escutar. Ele mesmo temia a sua própria voz,
afogava-se no seu interior. O seu silêncio afogava-o. Pedaços do
seu corpo saltavam no ar. Ele recolhia-os com muito cuidado, silenciosamente,
voltava a pô-los no lugar, fechando os buracos. E se encontrava casualmente
uma papoila, uma açucena amarela, recolhia-as também, colocava-as
no seu corpo, como parte de si – assim golpeado, estranhamente florescido.

(Versão minha - © Amadeu Baptista)





Iannos Ritsos nasceu na Grécia a 1 de Maio de 1909. Aderiu ao Partido Comunista Grego, em 1931. Publicou Tractor, em 1934, inspirado no futurismo de Maiakovski. Devido às suas ideias políticas, algumas das suas obras foram queimadas em público. Foi internado em vários campos de reabilitação. No entanto, a sua produção poética é imparável, com dezenas de títulos. Em 1956, é-lhe atribuído o prémio nacional de poesia pelo livro Sonata ao Luar. Conjuntamente com Giorgios Seferis e Odysseus Elytis, é considerado um dos mais importantes poetas gregos do século XX. Faleceu a 11 de Novembro de 1990.

Etiquetas:

2012-06-13

Tua 7

Photo by Altamente Meu.

É verão no pesadelo.
À porta da cabana dos vaqueiros faz fila uma multidão
de sombras cinzentas
e uma figura entra e sai correndo, entra e sai
por uma porta tomada de estranhas convulsões, como
uma película incompreensível.
Na praia está um transístor esquecido
sussurrando as suas últimas notícias para o mar. Por ele
guerreia-se violentamente até hoje em alguma parte,
ou por alguma outra coisa. Desde criança
Tom negou-se a comer quase de tudo
Deteve-se como uma paliçada no indolente prado
que havia fora de casa, com a sua cabeça redonda e assombrada
assumando entre os tremoçeiros e os cerefólios
A mãe cantava-lhe “ Dorme, meu menino “ para o consolar,
então ele começava a chorar. Depois
alguém tombou blocos de pedra no caminho
Querem fotografar-nos e
miniaturizar as imagens até ao irreconhecível
E as imagens irreconhecíveis
miniaturizam-nos até ao irreconhecível
E agora é noite nas ruas de alguma grande cidade,
um homem avança cambaleando até à resplandecente
cabina telefónica da estação
Marca um número e diz
“ Perdoe que fale de mim”
Amanhã ligará e dirá
“ Perdoe, não queria dizer nada”
mas ninguém responde já, ele diz
“ Não vai falar, pois não?”
E a manhã é como febre e guerra
na sua cabeça. Principia a andar.

Tua FORSSTRÖM



in Egentligen ar vi mycket lyckliga, 1976

Traduçãao de Amadeu Baptista

Etiquetas:

Tua 6

Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf.

Não te rias. Eu creio no
idioma como uma possibilidade de mudança
Creio no torpe, o confuso, a insegurança
Na criança que ensina o interior das coisas, o ronronar
que ama a obscuridade do noitibó na valeta
Não me censures. Eu não posso ser assim
Não me censures. Não conheço outra maneira de
chegar até ti
Sou evasiva e mentirosa, tombo
móveis, mas deste caos talvez possamos...
Não me censures. Sou completamente física.
A fragmentação, querido, a falta de seriedade, a
vida capitalizada como sombra e resplendor!
a ruptura terrível e lenta.
Física. Casas altas à deriva, continentes à deriva e
a menina pequenina com o seu chambre azul sob
os abetos, bosque de inverno imóvel
Apenas o demorado movimento da
neve que cai de um ramo

Tua Forsström
in Tallort, 1979

Tradução deAmadeu Baptista

Etiquetas: ,

Tua 5


Escrevo aos meus médicos, pergunto-lhes
sobre a amizade, a chuva torrencial, o menino
que se senta na cama e sussurra: por que
vieste sem?
Ocasionalmente os sonhos deixam-se desmascarar
Mas, onde te vou pôr, em qual
dos meus quartos?
“ A vida é uma preparação para algo
que nunca acontece”.
Não apanhes frio! Não te sintas mal! Senta-te bem! Sê boa
para o teu filho! Evita penas desnecessárias!
Aqui as filhas estão praticamente à borda d’água
entre amieiros, e cicuta, salgueirinha,
uma paisagem lacustre raramente matizada pelas tempestades
Só aquele que muda continua
sendo o mesmo, é isso ao certo? A chuva
goteja na água, água na água. Chuva de semanas
Uma está de vigilante de noite. Vai de vigilante de greve,
não sabe de todo o que tem que vigiar!
Mas uma borboleta alonga as manchas dos seus olhos
Um alce passa deslizando sem ruído, pesadamente
Flores de humidade brotam do papel de parede
Não, tu foste o meu querido e irrealizável projecto
e eu sou uma pobre, fechada na minha cabeça de escassos cabelos
O que tem alguma importância é tanto e
tão pouco
Mas aqui o mundo esclarece-se como
natureza, a vida esclarece-se!, no resplendor dos faróis de uma



segadora
sobre metros e metros de um trigal tardio que se agita inquieto Um
resplandecente insecto nocturno E o longínquo
faz-se um pouco mais real.

Tua Forsström
in September, 1983

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

Tua 4

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

PENÉLOPE
( cantata )

1

Sou a Esposa, cercada.
Os anos fluíram como água,
Acostumamo-nos. Aconteceu
Que eu me separei da minha espera
E olhei os Pretendentes, negado
tu. Esqueci-me de mim, esqueci-me
das noites sob as Suas mãos
Como se esquece um sonho até
que volta. Passaram anos
como instantes. Há
Uma espera tal que um se separa.

2

O que chamamos tempo
É talvez embrenhar-se
em incertezas, carências.
O que chamamos tempo
É talvez finalmente renunciar!
Eu esqueço o Seu nome!
Esqueço como me queixava
De desejo, cansada na luz matinal!
Os pretendentes cercam agora a casa.
Eu esqueço! Esqueço
o Seu nome!
A guerra deforma.
A memória reduz!
Cercar ou ser cercada
Afinal é o mesmo. Mas
negar um abraço
como a água derramada?
Ai, pudesse eu sequer vislumbrar
O teu esqueleto na multidão!

3

Ossos pêlos plumas escamas!
Os anos passam alegremente e faz-se noite
Invioláveis são as leis dos minerais
Na terra, as vistosas superfícies estalam:
Sobre o rosto sem custódia que era o do sonho
Sobre o rosto sem custódia que era a máscara sem custódia
Dos sonhos

4

Um corpo é levar um baú
Com relíquias. Ossos como porcelana
Eu não sou ainda uma mulher
Velha, isso enfada-me.
Teço uma teia. Sonhei
Ontem à noite com um barco que ia à deriva
Para uma costa longínqua
Recordas-me? O que
volta é sempre outro
Com a sombra de guerras no rosto
Com cicatrizes de todo o estrangeiro
Gravadas no corpo
Quem volta como era?
O que se perdeu é real:
O que se perdeu conserva-o
para sempre. Uma espera,
Um homem. Recordas-me?
Apressa-te, se podes.

Tua Forsström
in Snoleopard, 1987

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

Tua 3

Imagem de CrystalC através de Resim & Fotoğraf.


QUERIDA MARILYN MONROE,


Voltei a ler sobre si no jornal.
Você estava à porta da sua casa de Beverly Hills
e dizia que era a soma de
quarenta solitários quartos de hotel.
Estava metida num vestido provocante
e o seu cabelo estava resplandecente e claro como uma nuvem .
Eu nunca vivi num hotel.
Escrevo-lhe porque se devem evitar
certas pessoas, na medida do possível.
Querem tudo o que vêem.
Querem-na porque você é luminosa
e como uma criança. Você sabe
o que se diz do ministro da Justiça?
Inclusive do Senhor Presidente e de si?
Não quero meter-me nisso, creia
Mas sou mais velha que você
e não tão bela: Entre a noite e a alba
há que fazer pela vida Pela manhã
vão à missa com a esposa e os filhos
Não tenho nada com isso, claro
No jornal dizem muitas coisas sobre os nervos
Eu quero dizer-lhe: você é maravilhosa
Você parece-se com algo que existem em todos nós
Você não deixa de falar na morte, mas você
nunca foi lançada às profunda trevas que afogam
o ser humano sem piedade em cinza e noite
Evite portanto vestir-se quase nua
Não sussurre dessa maneira tão estranha quando canta
Evite os passeios solitários e a escuridão A sua casa
quase não se vê na fotografia por causa da folhagem
a jardinagem interessa-a?


in Snoleopard, 1987

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

Tua 2

Photo by Esrdan for Resim & Fotoğraf.

Sonhei que tudo estava
bem, que alguém me devolveu a
luva preta que tinha perdido,
que ali havia cisnes e muita
gente. Como se transforma a materia
Como nós nos transformamos quando alguém
nos acolhe nos seus braços. Lentamente, e tu
tropeças. Por um instante o coração é
de cristal. A tarde como cinza sobre os campos.
“ Porque há que ser capaz de descrever uma
situação onde tudo o que se pode
destruir foi destruído.”

Tua Forsström,
in Parkerna, 1992

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,

Tua1

Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH.

Equipamos os cavalos com
o que nos falta: lealdade
e coragem. Amamo-os pela sua
lealdade e coragem. É novembro,
vento suave no rosto, breves e frios
pingos caem das copas
das árvores. Aos cavalos assusta-os a sua
imaginação. Aos cavalos assusta-os
qualquer coisa e fogem.
A natureza não esbanja: a natureza segue
leis estritamente económicas. As árvores
permanecem na neblina, imóveis
Algo se transformou lentamente, sei-
-o: o que recordo
não regressa nunca


in Parkerna, 1992


Versão minha - © Amadeu Baptista







Tua Forsström, nasceu em Borga, Finlândia, em 1947. É licenciada em Humanidades. Publicou inúmeros livros de poesia, sendo considerada uma das mais importantes poetas de língua sueca.

Etiquetas: ,

Ludwig van Beethoven: Romance para violino e orquestra No. 1

Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH.

Uma e outra palavra para enunciar
o enredo de uma carta, filamentos
onde uma mulher está perdida e observa
a lenta progressão da fogueira, o rolo
de fumo em que a mensagem se inscreve,
clandestina e proscrita,
para que os olhos se encham de água,
a menos pura,
a que o corpo segrega na melancolia.

Esperei que chegasses toda a tarde, a promessa
da tua presença inesperada contagia
a fragilidade do coração, sequer suspeitas
como o inferno se instalou no meu peito,
nenhuma bênção chega agora a esta praia
em que a escuridão vacila em esconder
a minha ânsia e o meu rosto.

A noite cai sem brilhos no horizonte, ascendem
aos limites os ramos desta árvore,
não chegaste e progrediu a tristeza nestas ruas
onde a sombra é um volume opaco, uma coluna
de dúvidas intensas, o obstáculo
que a vida estende sobre o chão
onde o corpo encontra os mil vestígios da voragem,
o toque esparso da solidão,
a cinza da fogueira que não arde.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

Etiquetas:

kopenhagen script

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens).

-1-

as árvores furiosamente nuas
largam os seus pássaros negros
num outro mês qualquer
e as estradas separam as folhas
rolam as pedras cansadas de sol
para que o sul seja um lugar
onde a água espera
e o destino se esconde
em forma de ilha
que mão amputar
se assim nos pedem o frio?

-2-

são tão largas as horas
que se consegue ver
a solidão dum comboio vermelho
a raspar a noite
como homens à procura de uma porta
definhando gloriosamente
nas suas estações de
desespero

-3-

pelas gárgulas das catedrais
escoam-se noites antigas
que homens pacientemente sábios
recolhem letra a letra
a neve, tão mansa,
guarda-lhes a sombra e os passos
que numa janela alta e distante
um outro homem há-de ler

-4-

às vezes os navios doem
como ópio num pulmão derrotado
ou como quando tu ficas
no impossível meridiano da ausência
e eu te aceno de um silêncio
que é quase a loucura dos pássaros

de água-forte (2007)
Gil T.

Gil T. Sousa (1957) nasceu e reside em Vila Nova de Gaia e é Licenciado em Comunicação Social pela Escola Superior de Jornalismo do Porto.
Escreveu: poemas (2001) e falso lugar (2004) e água-forte (2007) edições privadas do autor.
Nos anos 90 participou em leituras públicas de poesia, 4.ªs-feiras do pinguim café no Porto e na Casa Fernando Pessoa em Lisboa, no âmbito dos encontros promovidos pelo canal de poesia de irc
de que foi um dos fundadores.
É autor dos blogues: poesia, falso lugar e exercícios de esquecimento, onde escreve e divulga poesia regularmente desde 2004.

Etiquetas: ,

2012-06-10

A SALAMANDRA


Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.

Eu não elejo as chamas
Lançam-me sobre elas

Na intensamente amarela sinto-me inquieta
Na recta não sinto nada

A fumegante é como eu mesma
A transparente evito-a

Se pudesse eleger eu
Mítico réptil
Gostaria de viver tranquila a minha desassossegada vida

Em ti
A resplandecente.


Lars Forssel
En kärleksdikt, 1960

Tradução deAmadeu Baptista

Etiquetas:

DURMO EM TI

Photo by I dream of Lebanon.


Durmo em ti
Não o podes saber
Próximo do nascimento durmo
e perto do sedutor

Dás voltas na cama
Como uma baleia grávida
Como um plâncton de grandes olhos
Adormeço em ti

Amo-te
Não o saberás nunca
Próximo da morte durmo
e faço estalar as minhas carapaças.

Lars Forssel
En kärleksdikt, 1960

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas:

BALADA 1952

Photo by João Braz.

I

O teu sexo é vermelho escuro
E húmido como carne de fruta

E o negro bosque que o cobre
Ondeia quando sopro

Ali no mais profundo há uma maçã de inverno
Viscosa como após a chuva

E sobre o teu rosto deslizam
As sombras das asas de sete pássaros

Uma perna sobre as minhas costas
Um mão nos meus testículos

E a tua boca abre-se como uma amêijoa
E sinto-me seguro

II

E tu dormes
Com os olhos semi-fechados e os reclames luminosos
Pintam diabos nas paredes

É em Paris ou em Roma
Ou Salzburgo ou

O mundo está demasiadamente connosco
Nós estamos junto
Amanhã vamos a

O teu pé sobre a minha boca
O teu alento sobre o meu pé

III

E amanhã acordamos
Um assobio da rua
No ouvido protesta a bigorna
E tu lavas-te atrás da cortina
E quando saímos vencemos

Lars Forssel
En kärleksdikt, 1960

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas:

O LAMENTO DOS AMANTES

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.


O ácer
espera a primavera
Sabe que voltará
e regará as suas raízes.
Mas o fogo do nosso amor
será encoberto com fuligem
com os anos.
Amada.
Contradiz-me.
Corpos
entrelaçando-se mutuamente.
Nós somos um.
Mas sinto uma ameaça.
É o destino dos amantes,
boca contra boca,
pé contra pé,
ser lentamente empurrados para a morte.
Amada.
Contradiz-me.

Laars Forssel
Fragmento de Variações sobre Yeats, Ända, 1968

Tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas:

2012-06-09

A ORELHA DE VAN GOGH


Photo by Erkan Torunn for  Resim & Fotoğraf.

Van Gogh corta a orelha
Envolve-a num pano
Que lentamente se tinge de vermelho
E envia-o
A ti


Que fazes tu com essa prova
De amor, loucura, dor?


Atira-la com repugnância ao fogo da lareira
Ou ao lixo?
Ou esconde-la furtivamente, talvez com algum orgulho,
Num cofre?


Uma vez sussurraste nela alguma coisa
Que tu esqueceste
Mas ele recordava


Tenho a vaga ideia de
Que essa orelha continua a existir
Atenta
Escutando eternamente
A luz do cruel campo de cereais


E o rumos do sol implacável

Lars Forssel
Ända, 1968

tradução de Amadeu Baptista

Etiquetas:

Lars Fossel 1



Imagem cedida por Annalisa Pulita.

Se o amor não correspondido
nos olhos dela
fosse cobre


e a felicidade inexistente
fosse mármore ou granito


Então eu sei de um escultor
que a golpes de martelo e cinzel
poderia converter
o amor não correspondido
e a felicidade inexistente
em amor e felicidade


Mas não é assim
Os olhos dela não são cobre nem granito
mas dor
Então, de que serve o trabalho do escultor?


Det möjliga, 1974

Versão minha - © Amadeu Baptista




Lars Forssell. N. a 14 de Janeiro de 1928, em Estocolmo, onde faleceu, a 26 de Julho de 2007. Estudou na Universidade de Upsala, onde se licenciou em Filosofia e Letras. Estreou-se em 1949, sendo uma figura indiscutível da ‘geração dos anos 50’. Além de poeta, foi um dos grandes dramaturgos suecos do século passado. Também se destacou como ensaísta, tradutor, letrista e jornalista. Em 1971 ingressou na Academia Sueca. Recebeu inúmeros prémios, entre os quais se destacam o Carl Emil Englund e o Bellman.

Etiquetas:

Joseph Haydn: Rondo all'Ungarese, do Concertto para piano em ré maior





Pintura de Clint Sloan

Magia, onde o calor cresce para um rebentamento
no interior do coração e a noite
volatiliza a expressão do tempo
em que já nem sequer a morte
pode ter sentido, vem
com essa treva de claridade e fogo visitar-nos
nesta faixa de carne e erva
onde a alma se demora a inventar-nos
para que a evanescência estabeleça
um traço de união com o que reluz
nesta ausência total de brisa e luz.
Que sob a noite o rosto se pareça
com a dimensão das coisas vislumbradas
na ansiosa essência que Deus nos proclama.
in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

Etiquetas:

Wolfgang Amadeus Mozart: Adagio do Concerto para clarinete








Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf.

Se anoitecesse agora, exactamente a meio desta manhã suave,
não teria a mínima importância, a luz
já me tocara para sempre sob a forma
de uma cintilação de fogo, um brilho incontornável
que entre o coração e as mãos subitamente floresce
para que o enigma corresponda a um trânsito subtil,
uma forma aérea de exaltação e êxtase
que como milagre ocorre sempre que entendo
que desobedecendo obedeço à limpidez das coisas
e vejo no silêncio a luz da escuridão.
Por isso, compondo esta harmonia em que os contrários
se aliam para que além da melodia outro mistério nasça,
apenas sei que sei que o sortilégio alastra
e me confronta com a treva em qualquer lugar e tempo
para que ainda assim a luz na alma permaneça
e a noite da manhã nos transfigure.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

Etiquetas:

2012-06-07

Regras do esquecimento

photo by Emira for Resim & Fotoğraf.

Não esqueças sobretudo a armadura
da noite,
a aspereza das estrelas
quando os olhos são recentes
e a gravitação é como um poder
sucinto nas mãos.

Não esqueças sobretudo como os cereais
lavram os campos estafados, destilam
prodígio pelos sulcos da memória,
oferecem-te uma vida maior
em troca do sal
das pálpebras.

Não esqueças sobretudo de olhar devagar.

Vasco Gato

Etiquetas: ,

o crescer de uma magnólia





Photo by Hesham Hassan



Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página

E aproveito o facto de teres chegado agora

Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.

A magnólia cresce na terra que pisas — podes pensar

Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,

Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,

Que a magnólia — e essa é a verdade — cresce sempre

Apesar de nós.

Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema

Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado

A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,

Mesmo que a recuses

Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,

A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a sua sombra

E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão




Daniel Faria, in «Poesia» (Do ciclo das intempéries).

Por:Assírio Alvim

Etiquetas: ,

A imagem que conduz ao corpo

photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

A imagem que conduz ao corpo

(…)

Escrever seria amar-te? Seria
interromper este deserto limpar a ferida aberta?
Seria entrar no interior do centro fresco
percorrer essa praia que ninguém ainda pisou
beijar os teus sinais e a sede límpida
que desenha toda a chama alta do teu corpo?

Escrever seria estar contigo no interior da chama
beber o orvalho das palavras nos teus lábios?
No interior de um barco de folhagem verde
Animado de um braço intensamente vivo
Ligando-me cada vez mais à linguagem do teu corpo?

(…)

António Ramos Rosa

Etiquetas: ,

À tua mesa

Photo by I dream of Lebanon.

Então sento-me à tua mesa. Porque é de ti
que me vem o fogo.
Não há gesto ou verdade onde não dormissem
tua sombra e loucura,
não há vindima ou água
em que não estivesses pousando o silêncio criador.
Digo: olha, é o mar e a ilha dos mitos
originais.
Tu dás-me a tua mesa, descerras na vastidão da terra
a carne transcendente. E em ti
principiam o mar e o mundo.
Minha memória perde em sua espuma
o sinal e a vinha.
Plantas, bichos, águas cresceram como religião
sobre a vida – e eu nisso demorei
meu frágil instante. Porém,
teu sinal de fogo e leite repõe a força
maternal, e tudo circula entre teu sopro
e teu amor.

Herberto Helder

Etiquetas: ,

2012-06-05

PIAZZA SAN MARCO – ACQUA ALTA


Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH


às Musas não interessam
drenagens, deixam alagar livremente
com o que sobrevém: a água do instante
subjectivo

quando o poeta era uma fera luminosa
e Veneza, sobre a laguna, a porta para o Levante
com seu tráfego de peregrinos imateriais – que também traziam
as laranjas douradas, a seda, a musselina
porcelanas, aço, pimenta
incenso e alívios

a cidade detinha um colégio de sábios
que sabia, em dialecto próprio, ser a magia
este palácio mergulhado nos silêncios
mais submersos

e que apenas a ciência da leitura paulatina
poderá ser o escafandro glotal e sinal que soltará
da grosseria eloquente

o espanto oculto do poema

Miguel Manso
(in Ensinar o Caminho ao Diabo, 2012)

Retirado do blogue de Amadeu Baptista

Etiquetas: ,