2007-02-26

“Uma noite poética de Verão”




Sentado no canto da janela que dá para o extenso jardim onde se vê o salgueiro choramingas a mergulhar os ramos no pequeno regato que corre na direcção Norte-Sul, observo as andorinhas que volteiam, lá em cima. Por vezes, surpreendem-me com os seus voos rasantes em busca de insectos, velozes como flechas disparadas pelo arco de Arthemis.

A vidraça ocupa toda a parede que dá para Sul, e pela manhã, bem cedo, pode-se observar, daqui do parapeito, o sol-nascente a surgir por entre as colinas.

No interior da loja, as mesas reservadas para os convidados – brancas como todo o resto da decoração, onde as paredes imaculadas contrastam com o vermelho sanguíneo dos quadros e das almofadas do banco que ocupa todo o comprimento da parede perpendicular à janela – estão dispostas junto à vidraça.

Começam a chegar os poetas. Mas antes de se sentarem à mesa, onde será servido o jantar, os seus olhares detém-se, gulosos, a admirar as prateleiras de onde lhes sorriem provocantemente as compotas – de pêssego, amora preta, figo, abóbora com amêndoas, mirtilo, maçã, creme de cenoura – e os requintadíssimos chocolates parisienses; do lado oposto estão os patês, os vinagres aromáticos e, junto à porta de entrada, os melhores vinhos, das castas mais raras vindas de todo o país.

É altura de se dirigirem para a mesa.

Porque hoje é noite pertence à Poesia. E à poesia subordinada aos prazeres da mesa.

Uma orgia de sabores em nome do Pecado da Gula…

Os amigos de Luna, escolheram este lugar para se reunirem e “colocar a conversa em dia” enquanto se degustam des plus exquisites gourmandises.

Solta-se o aroma da poesia ao som dos acordes da guitarra do Sr. Carlos, enquanto que a lua avermelhada de Agosto se ergue, cheia, no horizonte.

Os intervalos são preenchidos com a beleza nostálgica da música de Zeca Afonso…

Ou com os versos de Neruda, em castelhano, pela voz de Luna.

Ele, sombrio, observa-a a um canto. Gosta de ouvi-la declamar, embora não seja amante de poesia.

Ele é somente o amante de…

…Luna.

Pelo canto do olho observo como a amiga de Luna se insinua tentando cativá-lo enquanto que e minha dona, de vestido sanguíneo como as figuras das telas dos quadros da que enfeitam as paredes, declama Los Muertos de la Plaza..

Luna tem garras afiadas, que exibe discretamente.

O amante só tem olhos para ela.

Esgotado o repertório sibarita, dionisíaco, e recheado de fina ironia, criteriosamente seleccionado pelo Professor, surge o momento dos “espontâneos”.

Após um momento de silêncio, ouvem-se os primeiros acordes da Habanera de Georges Bizet e eia que entra…

Carmen.

Luna Carmen.

Como um cravo vermelho vestida. De lábios carmim e cabelos negros entre os quais espreita uma rosa mais rubra que o mais rutilante dos rubis de Caxemira.

A sua boca abre-se e ela canta:


L’amour est un oiseau rebelle
Que nul ne peut aprivoiser
Et c’est bien en vain qu’on l’appelle
S’il lui convient de refuser.

Rien n’y fait ménace ou prière
L’un parle bien l’autre se tait
Et c’est l’autre que je préfère
Il n’a rien dit mais il me plaît.

L’amour…l’amour…l’amour…l’amour…

L’amour est un enfant de Bohéme
Il n’a jamais, jamais connu de loi
Si tu ne m’aime pas, je t’aime,
Si je t’aime, prends garde à toi.

L’oiseaux que tu coyais surprendre
Batit de aile et s’envola
L’amour est loin tu peux l’attendre
Tu ne l’attends plus il est lá.

Tout autour de toi vite, vite
Il vient s’en va puis il revient
Tu croyais le tenir il t’evite
Tu crois l’éviter il te tient.

L’amour…l’amour…l’amour…l’amour…

L’amour est un enfant de Bohême
Il n’a jamais, jamais connu de loi
Si tu ne m’aime pas je t’taime
Si je t’aime…prends garde à toi.

O amante cora.

A rosa cai-lhe no colo.

Todos os olhares convergem para Luna. Ou Carmen.

A rival abandona a sala, batendo com a porta.

Lá fora, um carro arranca, ouvindo-se o cantar dos pneus.

A festa continua.


Desert Rose

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2007-02-20

Carnaval Alemão "enriquecido" !

O humor culmina com a deadline da campanha dos E.U.A. contra o Projecto Nuclear do Irão.

2007-02-11

Onde estás Kyoska?

2007-02-08

O olhar de Luna





Ontem, pela manhã, no café onde habitualmente me sento, virada para a janela, a compor mais um dos meus textos de crítica literária, vi sentar-se uma estranha mulher na mesa em frente à minha.

O facto nada teria de extraordinário se não fosse a sua expressão peculiar que me deixava intrigada: um olhar perdido algures, fixo, num ponto qualquer do infinito, mas não reflectia a expressão sonhadora de quem está a focar o pensamento em imagens ou acontecimentos agradáveis.

Também não era um olhar melancólico.

A boca, que seria igualmente bela, se não estivesse contraída num gesto de impaciência e contrariedade, exibia os maxilares tensos, ao mesmo tempo que quase se ouvia o ranger dos dentes. Simultaneamente, o movimento da cabeça indicava estar profundamente irritada, ao mover a cabeça da esquerda para a direita, num gesto de censura.

O rosto seria belo, se os olhos azul-turquesa, pequenos, enterrados nas órbitas e quase sem pestanas não tivessem aquela expressão fugidia, velada, de uma raposa prestes a assaltar a capoeira. Uns olhos incapazes de olhar alguém directamente nos olhos, com medo de ver o seu próprio reflexo.
Irradiavam um permanente sentimento de …dureza. Tédio. Irritação.

A sensualidade há muito que havia abandonado o corpo daquela mulher que tinha tudo para ser bela: o contraste entre a cor dos olhos, semelhante à água das praias das Caraíbas com o cabelo negro-asa-de-corvo, cortado num estilo muito pouco feminino e em total desarmonia com a estrutura facial. A pele, lisa, de grão finíssimo e textura de um pêssego maduro, estava precocemente marcada pelas rugas da amargura que lhe desciam desde as asas do nariz até aos cantos da boca e pelos pequeníssimos sulcos verticais que lhe marcavam o lábio superior.

Amargura.

E azedume.

Eram as emoções que transpareciam em toda a sua pessoa. No rosto, de traços finos, na postura, de braços cruzados sobre o peito e até na forma de trajar, austera e sombria, acentuada pelo xaile negro cruzado sobre os ombros.

Continuei a escrever e, a dada altura, quando voltei a olhar na direcção da mesa onde ela estava sentada, a estranha figura já tinha saído.

Quanto a mim, sou da opinião que a Mulher é, de facto, a construtora da sua felicidade. Mas a realidade é que, tradicionalmente, a mulher portuguesa não dá valor a si mesma e pauta a sua vida pela austeridade. Sobretudo nos meios rurais e, particularmente, na geração dos meus pais e dos meus avós.

Uma austeridade física e emocional.

Que o diga Hans Christian Andersen quando passou cá pela terra de Camões e se inspirou na mulher portuguesa para construir a personalidade da Mãe Pata em “O pátio dos Patos”.

Ao olhar aquela mulher, sentada na mesa do café, lembrei-me das palavras da minha querida avó que dizia que “uma mulher que se cuida demasiado não é boa dona de casa”.

Talvez não.

Mas o facto é que o aspecto exterior, a expressão e a forma como nos mimamos a nós próprios e aos outros reflectem o estado de alma da pessoa: se é doce, humana, se é frívola, materialista, se é vulcânica ou glaciar.

A atitude que temos primeiro para com o nosso corpo e, a seguir, a forma como olhamos aqueles que estão à nossa volta é determinante para construir a rede social que facilita ou não a integração do nosso eu. São dois factores determinantes que condicionam o poder de atrair ou repelir o Outro. A capacidade de fazer-se amar.

Que não é exclusiva das que nascem belas.

Porque a beleza é algo que se cultiva a partir de uma atitude interior proveniente de uma atitude emocional, adaptada ao conceito de belo, na nossa cultura.

Logo, a beleza é uma atitude construtiva.

E a fealdade uma atitude destrutiva.

Ou seja, a beleza tem de nascer dentro de nós, a partir de uma energia renovável, de forma a captar o que há de belo à nossa volta e impregnar o nosso “eu sensível”, como diria Milan Kundera, do bem-estar dado pelo prazer despoletado pelo sentimento do Belo.

Como o pêlo negro e os olhos verdes do meu gato…

Caso contrário, resta-nos deixar morrer em nós essa capacidade, desprezando-nos a nós e aos outros.

Eu, como sibarita assumida, não quero nem de longe ofender a deusa Afrodite, apesar de conservar o espírito independente e selvagem de Arthemis…

Nem por sombras…


Desert Rose

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2007-02-01

O frio aperta


Photo:Jerôme Bondy

Na Internet não há beijos nem abraços...