O olhar de Luna
Ontem, pela manhã, no café onde habitualmente me sento, virada para a janela, a compor mais um dos meus textos de crítica literária, vi sentar-se uma estranha mulher na mesa em frente à minha.
O facto nada teria de extraordinário se não fosse a sua expressão peculiar que me deixava intrigada: um olhar perdido algures, fixo, num ponto qualquer do infinito, mas não reflectia a expressão sonhadora de quem está a focar o pensamento em imagens ou acontecimentos agradáveis.
Também não era um olhar melancólico.
A boca, que seria igualmente bela, se não estivesse contraída num gesto de impaciência e contrariedade, exibia os maxilares tensos, ao mesmo tempo que quase se ouvia o ranger dos dentes. Simultaneamente, o movimento da cabeça indicava estar profundamente irritada, ao mover a cabeça da esquerda para a direita, num gesto de censura.
O rosto seria belo, se os olhos azul-turquesa, pequenos, enterrados nas órbitas e quase sem pestanas não tivessem aquela expressão fugidia, velada, de uma raposa prestes a assaltar a capoeira. Uns olhos incapazes de olhar alguém directamente nos olhos, com medo de ver o seu próprio reflexo.
Irradiavam um permanente sentimento de …dureza. Tédio. Irritação.
A sensualidade há muito que havia abandonado o corpo daquela mulher que tinha tudo para ser bela: o contraste entre a cor dos olhos, semelhante à água das praias das Caraíbas com o cabelo negro-asa-de-corvo, cortado num estilo muito pouco feminino e em total desarmonia com a estrutura facial. A pele, lisa, de grão finíssimo e textura de um pêssego maduro, estava precocemente marcada pelas rugas da amargura que lhe desciam desde as asas do nariz até aos cantos da boca e pelos pequeníssimos sulcos verticais que lhe marcavam o lábio superior.
Amargura.
E azedume.
Eram as emoções que transpareciam em toda a sua pessoa. No rosto, de traços finos, na postura, de braços cruzados sobre o peito e até na forma de trajar, austera e sombria, acentuada pelo xaile negro cruzado sobre os ombros.
Continuei a escrever e, a dada altura, quando voltei a olhar na direcção da mesa onde ela estava sentada, a estranha figura já tinha saído.
Quanto a mim, sou da opinião que a Mulher é, de facto, a construtora da sua felicidade. Mas a realidade é que, tradicionalmente, a mulher portuguesa não dá valor a si mesma e pauta a sua vida pela austeridade. Sobretudo nos meios rurais e, particularmente, na geração dos meus pais e dos meus avós.
Uma austeridade física e emocional.
Que o diga Hans Christian Andersen quando passou cá pela terra de Camões e se inspirou na mulher portuguesa para construir a personalidade da Mãe Pata em “O pátio dos Patos”.
Ao olhar aquela mulher, sentada na mesa do café, lembrei-me das palavras da minha querida avó que dizia que “uma mulher que se cuida demasiado não é boa dona de casa”.
Talvez não.
Mas o facto é que o aspecto exterior, a expressão e a forma como nos mimamos a nós próprios e aos outros reflectem o estado de alma da pessoa: se é doce, humana, se é frívola, materialista, se é vulcânica ou glaciar.
A atitude que temos primeiro para com o nosso corpo e, a seguir, a forma como olhamos aqueles que estão à nossa volta é determinante para construir a rede social que facilita ou não a integração do nosso eu. São dois factores determinantes que condicionam o poder de atrair ou repelir o Outro. A capacidade de fazer-se amar.
Que não é exclusiva das que nascem belas.
Porque a beleza é algo que se cultiva a partir de uma atitude interior proveniente de uma atitude emocional, adaptada ao conceito de belo, na nossa cultura.
Logo, a beleza é uma atitude construtiva.
E a fealdade uma atitude destrutiva.
Ou seja, a beleza tem de nascer dentro de nós, a partir de uma energia renovável, de forma a captar o que há de belo à nossa volta e impregnar o nosso “eu sensível”, como diria Milan Kundera, do bem-estar dado pelo prazer despoletado pelo sentimento do Belo.
Como o pêlo negro e os olhos verdes do meu gato…
Caso contrário, resta-nos deixar morrer em nós essa capacidade, desprezando-nos a nós e aos outros.
Eu, como sibarita assumida, não quero nem de longe ofender a deusa Afrodite, apesar de conservar o espírito independente e selvagem de Arthemis…
Nem por sombras…
Desert Rose
Etiquetas: Luna e o gato
12 Comments:
Vindo de uma crítica literária não me surprende a forma.
Destaco a assertiva análise e serena mas emotiva reflexão.
Não sei hei-de tomar como um elogio ou uma crítica a primeira parte do comentário!
;-)
Desert Rose
Era, é, um elogio puro.
Uma narrativa exemplar, que me comoveu, mas isso... das comoções, é defeito de fabrico, nada a fazer.
Não ousei comentar a forma de quem se dedica a faze-lo.
Ajudante de aprendiz de escrevinhador não deve ir além do lápis.
Confesso, no entanto, que a ambiguidade não foi completamente inocente. Visou "força-la" (ou espicaça-la) a uma visita ao "com menta".
Desculpe a "baixeza" que em má hora o fiz pois foi dar àquele pedaço de prosa. Preferia que tivesse sido a outro.
Já agora, devolvendo a bola, sem querer encetar pin-pong: a da conversa interessante era ironia, né? (“não é”, se preferir)
era, uma pitadinha de malícia mardada pela tendência de lnçar um pouco de malagueta para dentro do cozinhado...
:-)
A primeira parte do teu texto é de um realismo impressionante. Se passasse por essa mulher quase que a reconhecia...
Concordo contigo quando dizes que a beleza é algo que se cultiva a partir de uma atitude interior.
Uma belíssima crónica. Gostei muito.
Bom fim-de-semana.
Beijos.
Uma mulher que cuida de si revela respeito por ela própria e, interessando-se por ela, interesa-se pelos outros.
Somos responsáveis pela nossa felicidade, como tu bem frisas neste teu texto.
Claudia, a tua descrição é tão clara e rica que quase a via, mas sabes que a meio comecei a pensar no que a teria irritado tanto... e imaginei tantas coisas que até eu já me via a abanar a cabeça ;)
a vida é dura! às vezes, não há doçura que acalme. enfim, percebi que a amargura já era um quisto nesta mulher. Pai, afasta esse cálice de mim!
Obrigada Nilson, és um querido!
Abie, concordo plenamente: a mulher que se cuida respeita-se a si própria.
Querida Diva: amargura não é, forma alguma adjectivo que se cole à tua pele!
Basta ver a forma como olhas as tuas duas lindas e fofas princesas!
Esse cálice nunca se derramará sobre ti!
Um beijo grande
CSD
Adorei! Magnífica técnica que nos faz imaginar toda a cena. Beijo!
Beijo, Claudinha!
CSD
"A capacidade de fazer-se amar ..."
Claudia, subscrevo
gostei
gostei
b*******
Cláudia, como me tocou a descrição que fez desta mulher portuguesa.
Falta-lhes a força e a determinação das mulheres da sua geração.
Quem me dera ter menos vinte anos!
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