2007-02-08

O olhar de Luna





Ontem, pela manhã, no café onde habitualmente me sento, virada para a janela, a compor mais um dos meus textos de crítica literária, vi sentar-se uma estranha mulher na mesa em frente à minha.

O facto nada teria de extraordinário se não fosse a sua expressão peculiar que me deixava intrigada: um olhar perdido algures, fixo, num ponto qualquer do infinito, mas não reflectia a expressão sonhadora de quem está a focar o pensamento em imagens ou acontecimentos agradáveis.

Também não era um olhar melancólico.

A boca, que seria igualmente bela, se não estivesse contraída num gesto de impaciência e contrariedade, exibia os maxilares tensos, ao mesmo tempo que quase se ouvia o ranger dos dentes. Simultaneamente, o movimento da cabeça indicava estar profundamente irritada, ao mover a cabeça da esquerda para a direita, num gesto de censura.

O rosto seria belo, se os olhos azul-turquesa, pequenos, enterrados nas órbitas e quase sem pestanas não tivessem aquela expressão fugidia, velada, de uma raposa prestes a assaltar a capoeira. Uns olhos incapazes de olhar alguém directamente nos olhos, com medo de ver o seu próprio reflexo.
Irradiavam um permanente sentimento de …dureza. Tédio. Irritação.

A sensualidade há muito que havia abandonado o corpo daquela mulher que tinha tudo para ser bela: o contraste entre a cor dos olhos, semelhante à água das praias das Caraíbas com o cabelo negro-asa-de-corvo, cortado num estilo muito pouco feminino e em total desarmonia com a estrutura facial. A pele, lisa, de grão finíssimo e textura de um pêssego maduro, estava precocemente marcada pelas rugas da amargura que lhe desciam desde as asas do nariz até aos cantos da boca e pelos pequeníssimos sulcos verticais que lhe marcavam o lábio superior.

Amargura.

E azedume.

Eram as emoções que transpareciam em toda a sua pessoa. No rosto, de traços finos, na postura, de braços cruzados sobre o peito e até na forma de trajar, austera e sombria, acentuada pelo xaile negro cruzado sobre os ombros.

Continuei a escrever e, a dada altura, quando voltei a olhar na direcção da mesa onde ela estava sentada, a estranha figura já tinha saído.

Quanto a mim, sou da opinião que a Mulher é, de facto, a construtora da sua felicidade. Mas a realidade é que, tradicionalmente, a mulher portuguesa não dá valor a si mesma e pauta a sua vida pela austeridade. Sobretudo nos meios rurais e, particularmente, na geração dos meus pais e dos meus avós.

Uma austeridade física e emocional.

Que o diga Hans Christian Andersen quando passou cá pela terra de Camões e se inspirou na mulher portuguesa para construir a personalidade da Mãe Pata em “O pátio dos Patos”.

Ao olhar aquela mulher, sentada na mesa do café, lembrei-me das palavras da minha querida avó que dizia que “uma mulher que se cuida demasiado não é boa dona de casa”.

Talvez não.

Mas o facto é que o aspecto exterior, a expressão e a forma como nos mimamos a nós próprios e aos outros reflectem o estado de alma da pessoa: se é doce, humana, se é frívola, materialista, se é vulcânica ou glaciar.

A atitude que temos primeiro para com o nosso corpo e, a seguir, a forma como olhamos aqueles que estão à nossa volta é determinante para construir a rede social que facilita ou não a integração do nosso eu. São dois factores determinantes que condicionam o poder de atrair ou repelir o Outro. A capacidade de fazer-se amar.

Que não é exclusiva das que nascem belas.

Porque a beleza é algo que se cultiva a partir de uma atitude interior proveniente de uma atitude emocional, adaptada ao conceito de belo, na nossa cultura.

Logo, a beleza é uma atitude construtiva.

E a fealdade uma atitude destrutiva.

Ou seja, a beleza tem de nascer dentro de nós, a partir de uma energia renovável, de forma a captar o que há de belo à nossa volta e impregnar o nosso “eu sensível”, como diria Milan Kundera, do bem-estar dado pelo prazer despoletado pelo sentimento do Belo.

Como o pêlo negro e os olhos verdes do meu gato…

Caso contrário, resta-nos deixar morrer em nós essa capacidade, desprezando-nos a nós e aos outros.

Eu, como sibarita assumida, não quero nem de longe ofender a deusa Afrodite, apesar de conservar o espírito independente e selvagem de Arthemis…

Nem por sombras…


Desert Rose

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12 Comments:

Blogger Erecteu said...

Vindo de uma crítica literária não me surprende a forma.
Destaco a assertiva análise e serena mas emotiva reflexão.

8/2/07 4:24 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Não sei hei-de tomar como um elogio ou uma crítica a primeira parte do comentário!

;-)

Desert Rose

9/2/07 2:46 da tarde  
Blogger Erecteu said...

Era, é, um elogio puro.
Uma narrativa exemplar, que me comoveu, mas isso... das comoções, é defeito de fabrico, nada a fazer.
Não ousei comentar a forma de quem se dedica a faze-lo.
Ajudante de aprendiz de escrevinhador não deve ir além do lápis.

Confesso, no entanto, que a ambiguidade não foi completamente inocente. Visou "força-la" (ou espicaça-la) a uma visita ao "com menta".
Desculpe a "baixeza" que em má hora o fiz pois foi dar àquele pedaço de prosa. Preferia que tivesse sido a outro.

Já agora, devolvendo a bola, sem querer encetar pin-pong: a da conversa interessante era ironia, né? (“não é”, se preferir)

9/2/07 3:33 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

era, uma pitadinha de malícia mardada pela tendência de lnçar um pouco de malagueta para dentro do cozinhado...


:-)

9/2/07 4:53 da tarde  
Blogger Nilson Barcelli said...

A primeira parte do teu texto é de um realismo impressionante. Se passasse por essa mulher quase que a reconhecia...
Concordo contigo quando dizes que a beleza é algo que se cultiva a partir de uma atitude interior.
Uma belíssima crónica. Gostei muito.
Bom fim-de-semana.
Beijos.

10/2/07 2:57 da tarde  
Blogger arabie said...

Uma mulher que cuida de si revela respeito por ela própria e, interessando-se por ela, interesa-se pelos outros.
Somos responsáveis pela nossa felicidade, como tu bem frisas neste teu texto.

11/2/07 2:00 da tarde  
Blogger Maria do Rosário Sousa Fardilha said...

Claudia, a tua descrição é tão clara e rica que quase a via, mas sabes que a meio comecei a pensar no que a teria irritado tanto... e imaginei tantas coisas que até eu já me via a abanar a cabeça ;)

a vida é dura! às vezes, não há doçura que acalme. enfim, percebi que a amargura já era um quisto nesta mulher. Pai, afasta esse cálice de mim!

11/2/07 6:05 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Obrigada Nilson, és um querido!

Abie, concordo plenamente: a mulher que se cuida respeita-se a si própria.

Querida Diva: amargura não é, forma alguma adjectivo que se cole à tua pele!

Basta ver a forma como olhas as tuas duas lindas e fofas princesas!

Esse cálice nunca se derramará sobre ti!

Um beijo grande

CSD

11/2/07 8:20 da tarde  
Blogger Claudinha ੴ said...

Adorei! Magnífica técnica que nos faz imaginar toda a cena. Beijo!

22/2/07 3:12 da tarde  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

Beijo, Claudinha!

CSD

22/2/07 6:27 da tarde  
Blogger Isabel Victor said...

"A capacidade de fazer-se amar ..."

Claudia, subscrevo

gostei
gostei

b*******

6/3/07 1:53 da manhã  
Anonymous Anónimo said...

Cláudia, como me tocou a descrição que fez desta mulher portuguesa.
Falta-lhes a força e a determinação das mulheres da sua geração.
Quem me dera ter menos vinte anos!

1/5/07 4:44 da tarde  

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