Perfume a Saudade
Uma...
...duas...
...três gotas de perfume percorrem a carótida que pulsa suavemente, no pescoço de cisne...
O aroma a pimenta espalha-se no ar. Segue-se o mistério verde da fragrância das folhas de pitósporo. Depois, a mirra, o almíscar, o âmbar e o gálbano libertam-se à medida que as gotas avançam, indo morrer na morna quietude do vale entre os seios...
Ela olha pela janela do quarto. A luz da tarde fere-lhe os olhos. Il pomeriggio è troppo azzurro, como diz a canção italiana.
Os olhos buscam repouso no verde profundo dos bosques que se confundem com a linha do horizonte a leste... Ela sabe que aquele solo está atapetado de cogumelos e croccus, como na época em que saltava os muros da escola para colher as florinhas de pétalas lilases, com os estames azul-índigo, e fazer um raminho que oferecia à professora...
O aroma dos pinheiros e o cheiro da caruma vêm-lhe à memória , trazendo de volta a Avó e os passeios até à mata para apanhar as pinhas, que colocavam no forno, a assar.
Nessa altura, eu colocava-me no fogão em cima das panelas com a aletria e os mexidos que coziam em lume brando, até à altura em que o meu rabo ficava em chamas. Então era ver avó e neta correr atrás de mim, com um pano para apagar o fogo que queimava
a minha bela cauda...
Depois de estarem assadas, a avó pegava nas pinhas e retirava-lhes cuidadosamente os pinhões, cujo miolo era extraído com a ajuda de um alicate ou quebra-nozes. Eram tão saborosos que a gulodice das duas fazia com que quase não chegassem para os mexidos que a avó sabia fazer como ninguém. Ela tinha os seus pequenos segredos...por exemplo: carradas de mel e açúcar mascavado, que lhe davam uma exótica tonalidade achocolatada e...um generoso cálice de vinho do Porto!
E depois, era o aroma a canela a impregnar a velha cozinha.
A casa inteira.
O aroma que eu desejaria que se prolongasse por todo o ano.
Mais do que aroma, canela é Perfume a festa, com o qual se combate o frio e a tristeza do período de solstício de Inverno.
Com risos.
Com o prazer de estarmos juntos.
Um prazer cristalizado no passado.
No aroma a canela...
Os olhos dela fogem do bosque e vão afogar a saudade no azul profundo, impregnado de cheiro a meresia...
Ela fecha os olhos e aspira o ar, concentrando-se no ruído das ondas que se espraiam na areia, e inundam os palácios da memória...
A paz instala-se.
E o perfume, em cujo coração sobressai a nota verde do pitósporo, mistura-se lentamente com a fragrância, erógena e sexuada do Oceano...
Desert Rose
Etiquetas: Luna e o gato
10 Comments:
memories. doce e amargo.
de cristal e especiarias.
memórias.
(que flutam nos eixos do sangue).
O perfume a saudade envolve muitas constelações entrelaçando o mundo animal, o céu e o mar.
Faz-me lembrar uma música do Pedro Abrunhosa " esse odor trás tanta saudade..."
que delícia, Luci!
Querida Arabie, que saudades!
O teu comentário e o da Luci são dis belos poemas!
beijos
escreves como outros fazem filigrama ;)
sabias?
:-)
Não, querida Diva!
Mas é muito bom ouvi-lo de ti!
CSD
Adorei este teu conto.
Pelos olhos do gato (ou gata?) consegues transportar-nos à infância, onde os nossos avós tinham um papel primordial.
Enquanto te lia, parece que estava a ver a minha avó com os tachos de cobre (?) a fazer os doces da época e eu á espera que tudo terminasse para rapar os tachos... mesmo não sendo gato...
Beijos.
Pois! Rapar os tachos é sempre a melhor parte!
Ainda hoje...
Com o leite-creme, com o bolo de chocolate, com os mexidos, a aletria ainda quente...
Ah! Já me esquecia! E a mousse de manga também. Para não falar na compota de figo, de abóbora, de morango, de amora preta...
Bem...
Tenho que perder 6 quilinhos eté ao Verão!
Bjs
CSD
Querida Sleep, um grande beijinho para ti!
CSd
PS: Tu é muito mais bonita, por dentro e por fora!
"colocava-me no fogão em cima das panelas com a aletria e os mexidos que coziam em lume brando"
Isto só podia ser Famalicão !!!!!!
Aletria ... mexidos ...
Ai que cheirinho a festa ! Ai como eu conheço estas festas ! Ai que saudades ...
b*********** da isabel
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