2012-12-18

Photo bt Anton Walker for Africa Geographic

O VENTO DOS MONTES FAZ-ME PENSAR EM COISAS ESTRANHAS


Se o meu coração fosse tão velho como o jardim do imperador!


Se o meu coração fosse tão grande como a capital do governo do mandarim!


Então estaríamos sentados todos os dias, ela e eu,
no jardim do meu coração
e cantaríamos loucas canções sobre um amor,
jovem como um rebento de bambu
que a cada despedida do sol volta a nascer,
puro como bambu jovem, flexível como cana de bambu
e velho como o bosque de bambus
ou como o ancião solitário
(ele sim é que é velho!)
que vive com os seus livros num templo em ruínas por detrás de Jiennah Tai,
que chamava velho a um bosque de bambu de dois anos
porque crescia numa terra muito antiga.


Sempre estenderia eu as mãos, de vez em quando assinalava
como é grande o país do meu coração
e gritaria: “ Contempla esta província! Tudo, tudo isto é teu!”.


Vuoripaimen, 1949

Lassi Nummi
Tradução de Amadeu Baptista

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HOJE


A árvore tornou-se tão parecida com uma flor
que esquece a sua copa,
que esquece as suas raízes
quando sussurra:
“ Colhe-me, leva-me.
Quero falar
aos teus olhos. Quero encontrar alguém
ou morrer”.


A flor tornou-se igual a uma árvore.
Hoje - o dia como um milénio -
a flor enfloresceu, eleva para a luz
o seu intemporal
olhar:
“ Vem, ampara-te
a mim sussurrante formosura.”


Taivaan ja maan merkit, 1956

Lassi Nummi
Tradução de Amadeu Baptista

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Photo by Project Noah

COMO UM HOMEM QUE VOLTOU DE UMA GRANDE VIAGEM


Como um homem que voltou de uma grande viagem
que se deitou a dormir vencido pela noite e ao despertar de
manhã
não reconhece imediatamente o lugar onde foi parar
e meio a dormir, desconcentrado, contempla objectos e cortinas,
o contorno das portas
a luz mortiça do rectângulo das janelas
e sem contacto com o presente trata de procurar, recordar, e
trata de recordar onde deveria estar, aonde ir, a quem falar
e não ouve as vozes das crianças, partiram,
e procurando às cegas o lugar ao lado onde alguém respira pela
noite
nota que está vazio
e enquanto rostos, lugares, quartos dão voltas na memória
procura entre eles este lugar, e intuindo apenas
o que procura, a imagem da sua mulher, a dos filhos
– e finalmente, atenazado por uma angústia mais profunda do que nuca
entre estranhos
levanta a cabeça e contempla de perto este estranho lugar no mundo


assim levantei os olhos e procurei nos teus a nossa juventude comum
e vi a câmara deserta da velhice
cheia da luz severa dos invernos vindouros
que se demorou um instante e depois derreteu
no outono e na primavera,
no tremor da folhagem das primeiras bétulas
o alto silêncio do dia de verão, onde grita o mocho.


Heti, melkein heti, 1980

Lassi Nummi
Tradução de Amadeu Baptista

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Lassi 5



Photo by Flores

ESTA COISA INSIGNIFICANTE

Na claridade do meio-dia
volto o meu olhar.
Na obscuridade da meia-noite
alongo a mão,
toco.
Pele contra pele:
aqui começa o homem.




Kaksoiskuva, 1982
Lassi Nummi
Tradução de Amadeu Baptista

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Lassi4













Photo by Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.


Na pele começa:
já não somos jovens.
A luz da cor da esperança, carnaval de desejos
desliza para longe.
O som do coração, forte, arrítmico
sente-se mais intenso do que antes.
Procura alguém que acredite já ter encontrado.
Procura o encontrado que crê já ter perdido.
Os áceres suspiram. Então,



como bem te lembras,
é a hora do amanhecer.
No horizonte adensa-se a luz
torna-se por momentos mais intensa.
Agora é a manhã do mundo.




Kaksoiskuva, 1982
Lassi Nummi

TRaduçao de Amadeu Baptista

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Lassi3



Photo by Flores

VISÃO DA NEVE PURA


Tinha adormecido um instante sem dúvida
à minha mesa: estavas ali
com o teu casaco de inverno, sob o nevão, luminosa, sorridente
como há duas décadas, como
há pouco esta manhã, quando te foste,
ou agora dentro de pouco à tarde quando regressares
não estavas cansada
sorrias-te luminosa
mais jovem? ou como agora, mas
dentro de nós voltava a existir a mesma leveza
que lá, naquele lugar a que quase
chegamos em direcção ao que durante todo o tempo
estivemos a caminho


e no arrojado mar do instante
desejava-te sentia a tua falta
a ti e à tua imagem, esta
familiaridade, eu futuro eu passado, esta
leveza:
imagem após imagem, a realidade com a dupla imagem
da realidade através da que
alguém sorri, és bela, alguém
és tu


Kaksoiskuva, 1982

Lassi Nummi
Tradução de Amadeu Baptista

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Lassi2






Durante muito tempo foste para mim
céu e terra e mar
Procuram-te todavia as minhas cegas ardentes amargas raízes
a ti
apesar de lhes negares
a água.


Kaksoiskuva, 1982
Lassi Nummi


Tradução de Amadeu Baptista

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Lassi1







Photo by Flores

Antes que o grande mar nos leve no seu abraço
quero-te uma vez mais.
Se nos obriga a separarmo-nos, se nos dilacera as células
da alma e do corpo,
quero que cada uma delas
cada cega partícula do corpo, cada
agitado movimento da alma
leve dentro de si este instante, te leve a ti,
imagem, recordação,
o mais belo,
o mais amargo.


Kaksoikuva, 1982

Tradução de Amadeu Baptista





Lassi Nummi nasceu em Helsínquia, em 1928. Publicou o seu primeiro livro de poesia em 1949. Foi jornalista e crítico literário. Foi presidente da Associação Finlandesa de Escritores e do Pen Clube. Foi membro da comissão de tradução da Bíblia. Faleceu a 13 de Março deste ano.

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2012-12-04

Fernando Nobre2


Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)

Georges! anda ver meu país de romarias
E procissões!
Olha estas moças, olha estas Marias!
Caramba! dá-lhes beliscões!
Os corpos delas, vê! são ourivesarias,
Gula e luxúria dos Manéis!
Têm nas orelhas grossas arrecadas,
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis,
Ao pescoço serpentes de cordões,
E sobre os seios entre cruzes, como espadas,
Além dos seus, mais trinta corações!
Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito,
Toca a bailar!
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito.
Que hão-de gostar!
Tira o chapéu, silêncio!
Passa a procissão

Estralejam foguetes e morteiros.
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão
Honestos e morenos cavalheiros.
Altos, tão altos e enfeitados, os andores,
Parecem Torres de David, na amplidão!

Que linda e asseada vem a Senhora das Dores!
Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde.
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores,
Olhos leais fitos no vago... não sei onde!
Os anjinhos!
Vêm a suar:
Infantes de três anos, coitadinhos!
Mãos invisíveis levam-nos de rastros
Que eles mal sabem andar.

Esta que passa é a Noite cheia de astros!
(Assim estava, em certo dia, na Judeia!
Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!)
E aquela é a Lua-Cheia!
Seus doces olhos fazem luar...
Essa, acolá, leva na mão os Dados,
Mas perde tudo se vai jogar.
E esta que passa, toda de arminhos,
(Vê! dentre o povo em êxtase, olha-a a Mãe)
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos,
Criança em flor que ainda não os tem.
E que bonita vai a Esponja de Fel!
Mas ela sabe, a inocentinha,
Nas suas mãos, a Esponja deita mel:
Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira.
Lá vem a Lança! A bainha
Traz ainda o sangue da Sexta-Feira...
Passa o último, o Sudário!
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor...
Oh que vermelho extraordinário!
Parece o sol-pôr...

Que pena faz vê-lo passar em Portugal!
Ai que feridas! e não cheiram mal...

E a procissão passa. Preia-mar de povo!
Maré-cheia do Oceano Atlântico!
O bom povinho de fato novo,
Nas violas de arame soluça, romântico,
Fadinhos chorosos da su'alma beata.

Trazem imagens da Função nos seus chapéus.


Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro,
O Sol em glória brilha olímpico, e de prata,
Como a velha cabeça aureolada de Deus!

Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro.
Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.

Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!
À porta dum casal um tísico na cama,
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo,
E uma netinha com um ramo de loireiro
Enxota as moscas do moribundo.

Dança de roda moças o coveiro.
Clama um ceguinho:
«Não há maior desgraça nesta vida,
que ser ceguinho!»
Outro moreno, mostra uma perna partida!
Mas fede tanto, coitadinho...
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...»
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga,
Labareda de cancros em fogueira,
Que o sol atiça e que a gangrena apaga,
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...

Que lindos cravos para pôr na botoeira!

Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina!
Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos!
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados!
Reumáticos! Anões! Delíriums-trémens! Quistos!
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados,
Talvez lá dentro com perfeitos corações:
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas,
Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas
Das suas obrigações!»
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho!
E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...

Qu'é dos Pintores do meu país estranho,
Onde estão eles que não me vêm pintar?

Fernando Nobre
Paris, 1891-1892

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Fernando Nobre1


Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)


Georges! anda ver meu país de Marinheiros,
O meu país das naus, de esquadras e de frotas!

Oh as lanchas dos poveiros
A saírem a barra, entre ondas de gaivotas!
Que estranho é!
Fincam o remo na água, até que o remo torça,
À espera de maré,
Que não tarda aí, avista-se lá fora!
E quando a onda vem, fincando-a com toda a força,
Clamam todas à uma: «Agora! agora! agora!»
E, a pouco e pouco, as lanchas vão saindo
(Às vezes, sabe Deus, para não mais entrar...)
Que vista admirável! Que lindo! Que lindo!
Içam a vela, quando já têm mar:
Dá-lhes o Vento e todas, à porfia,
Lá vão soberbas, sob um céu sem manchas,
Rosário de velas, que o vento desfia,
A rezar, a rezar a Ladainha das Lanchas:

Senhora Nagonia!
Olha acolá!
Que linda vai com seu erro de ortografia...
Quem me dera ir lá!

Senhora Daguarda!
(Ao leme vai o Mestre Zé da Leonor)
Parece uma gaivota: aponta-lhe a espingarda
O caçador!

Senhora d'ajuda!
Ora pro nobis!
Caluda!
Semos probes!
Senhor dos ramos
Istrela do mar!
Cá bamos!
Parecem Nossa Senhora, a andar.

Senhora da Luz!
Parece o Farol...
Maim de Jesus!
É tal e qual ela, se lhe dá o sol!

Senhor dos Passos!
Sinhora da Ora!
Águias a voar, pelo mar dentro dos espaços
Parecem ermidas caiadas por fora...

Senhor dos Navegantes!
Senhor de Matosinhos!
Os mestres ainda são os mesmos dantes -
Lá vai o Bernardo da Silva do Mar,
A mailos quatro filhinhos,
Vasco da Gama, que andam a ensaiar...

Senhora dos aflitos!
Mártir São Sebastião!
Ouvi os nossos gritos!
Deus nos leve pela mão!
Bamos em paz!
O lanchas, Deus vos leve pela mão!
Ide em paz!

Ainda lá vejo o Zé da Clara, os Remelgados,
O Jeques, o Pardal, na Nam te perdes,
E das vagas, aos ritmos cadenciados,
As lanchas vão traçando, à flor das águas verdes,
«As armas e os varões assinalados...»

Lá sai a derradeira!
Ainda agarra as que vão na dianteira,..
Como ela corre! com que força o Vento a impele:

Bamos com Deus!
Lanchas, ide com Deus! ide e voltai com Ele
Por esse mar de Cristo...
Adeus! adeus! adeus!


Fernando Nobre

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Ludwig van Beethoven: Adagio, da Sonata Patética

Photo by Isabel Victor



Ludwig van Beethoven: Adagio, da Sonata Patética


Passa a mulher vestida de branco e o sortilégio avança.
Uma sirene rebenta no espaço
e os homens acercam-se do que é ilimitado
junto às coisas inúmeras do destino.
À sombra dos guindastes há um titã parado.
E alguém ronda o espaço do inefável
quando os sentidos alertam para o trânsito
de guelfos e sereias que no tempo
alguma vez se perderam e perdendo-se se encontram.
A ponte pênsil não é mais que um caminho
possível entre o mistério que há no cais
onde um olhar devastador alastra
entre as promessas que os navios trazem.
Aí estão aqueles que padecem
de um sonho oculto, fugitivo e grave.
E o que amplia ainda este mistério
é essa mulher que no sortilégio avança
rente à tristeza que se cumpre e em si se deslumbra.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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MORTOS

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf

MORTOS


Todos os anos morre alguém nas redondezas.
O ano passado, lembro-o, foi o coração que falhou
ao velho da casa norte. Efeitos secundários
da velhice, para uns, do Viagra, para outros.
Vai dar ao mesmo. Deram com ele agarrado
ao telefone, dizem que não foi a tempo.


Este ano, na casa sul, foi-se uma velha.
Andava doente desde que o filho lhe fugiu
na sequência de um acidente de viação.
Descobriram um temor no estômago à nora.
A velha não aguentou tanta desgraça
e atirou-se para dentro de um poço depois
de ter preparado o pequeno-almoço ao marido.

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A LIBERTAÇÃO


Photo by Resim & Fotoğraf


A LIBERTAÇÃO

A neve
que caía como as plumas
de um céu assustado
era um toque suave nos cabelos
nos rostos e nas fechadas mãos
ao frio
era a primeira voz de amor
a neve, no silêncio
branco que se ouvia.


João Tomaz Parreira


Este é o último de uma série de POEMAS SOBRE FOTOS DE CRIANÇAS
DO HOLOCAUSTO


 AINDA A TEMPO DA INFÂNCIA

do poeta João Tomaz Parreira ou J.T.Parreira, Lisboa, 1947. Poeta. 6 livros de poesia (Este Rosto do Exílio,1973; Pedra Debruçada no Céu, 1975; Pássaros Aprendendo para Sempre, 1993; Contagem de Estrelas, 1996; Os Sapatos de Auschwitz, 2008; e Encomenda a Stravinsky, 2011 ). Um ensaio teológico (O Quarto Evangelho - Aproximação ao Prólogo, 1988). Participação em Antologias. Escreve na revista  evangélica «Novas de Alegria» desde 1964 e no Portal da Aliança Evangélica Portuguesa. Na juventude escreveu poesia e artigos no suplemento juvenil do "República", entre 1970-1972.

desviados do blogue de Amadeu Baptista que tem um imenso arsenal poético ee musical para nosso deleite.

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DEPORTAÇÃO




DEPORTAÇÃO


A morte não deveria ser obrigatória
em marcha
nestes pequenos pés
Uma fila de olhos sem regresso
pequenas dimensões
onde só deveria estar a alegria
vão
sem reparar que é enganosa
a sua infância tranquila.

João Thomaz Parreira

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BARRACA 66

Photo by  I dream of Lebanon



BARRACA 66

Esperavam que a voz fosse suave
as palavras novas
num toque de pluma nos ouvidos
nos olhos
que não estão assustados
O sorriso começa agora a dar um ar
das suas asas, um pássaro
novo
deixa alegres vestígios sobre a neve.

João Thomaz Parreira

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