"O Magusto em casa da bisavó Angelina"
A perna de borrego assa no forno a lenha enquanto o gato, preto como a noite, se aquece, praticamente encostado à panela da sopa de couves verdes segadas durante a manhã no quintal, para ser comida como entrada, com um garfo na mão direita – com as couves enroladas como spaghetti – e um naco de pão de milho com chouriço na mão esquerda, a acompanhar e dar “substância”. As castanhas que irão guarnecer a carne estão a ser cozinhadas num molho que até hoje nunca consegui imitar, porque a receita morreu junto com a bisavó. O pêlo do gato começa a arder. Parece as bruxas, condenadas antigamente à fogueira, pelo Santo Ofício. Quando o lume lhe chega à pele, desata a correr pela cozinha de terra batida, soltando miados aterrorizantes, capazes de acordar todos os mortos do cemitério. A bisavó atira-lhe uma bacia cheia de água gelada e o animal esconde-se, ensopado, debaixo de um dos compridos bancos de madeira da mesa da cozinha. Mais tarde, voltará a postar-se junto das panelas para secar o pêlo, para não ficar com bronquite. A bisavó recorda o tempo em que preparava carne de javali - naquele tempo os porcos selvagens abundavam na região e a bisavó chegou a domesticar alguns, criando-os de pequenos para matar e fazer chouriços, que tratava no fumeiro – com castanhas por altura do São Martinho, altura em que se encontrava grávida de gémeos. Lembra-se como se fosse hoje da queda que deu enquanto transportava o cesto do pão que distribuía pela aldeia. A gravidez ia no sétimo mês e não chegou a completar o tempo previsto. Um dos gémeos nasceu morto. Mesmo assim, conseguiu aguentar quase dois meses com um filho morto na barriga. Quando nasceram, o mais pequenino e mirrado foi quem sobreviveu. Chamaram-lhe Mário. O outro, gordo e lindo, nasceu sem vida com uma evidente contusão na cabeça, de onde já saíam vermes. A bisavó Angelina recorda as febres que se seguiram ao nascimento, as lavagens e as mezinhas feitas e elaboradas pela parteira. Sobreviveu. A bisavó suspira, enquanto vai buscar o vinho tinto verde, feito com as uvas da ramada do quintal, à adega. A bisavó não gosta de jeropiga. A Tia Lucinda, irmã mais velha do gémeo sobrevivente, chegará, vinda do Porto, com a sobremesa: pudim de castanhas e marrom glacê, receitas aprendidas em casa do Douto, onde trabalha como criada de servir lá para os lados da Sra. da Hora. Está na hora de pôr a mesa. A mãe, a trisavó Ludovina, do alto dos seus 102 anos, abre subitamente os olhos míopes, por detrás das lentes encavalitadas na ponta do nariz adunco e indaga, varada pela fome e pela gulodice: "Então, Lininha? As rabanadas já estão prontas? Já deve estar quase na hora da missa do Galo…”
Memórias de Black Desert Rose
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Etiquetas: narrativas
6 Comments:
Não é por nada, e não sou médico, mas custa-me a crer que um nado-morto possa sair da barriga da mãe com vermes a sair da cabeça... eles dentro da barriga da mãe estão protegidos...
Era uma estoria tão simpatica mas e acolhedora, mas tinhas que a ensombrar com gatos a arder e nados-mortos... maldito realismo.. tch tch.. :-)
Gustavo, a história do nado-morto é 100% verdadeira. A minha bisavó foi por um triz que não teve uma peritonite.
ouvi-a vezes sem conta, pela minha avó Olinda.
:-)
csd
É uma história que transporta a outros tempos e ao mesmo tempo nos impressiona pela veracidade dos factos.As avós e bisávos a prepararem tudo com tanto gosto e pormenor.O episódio impressionante do nascimento dos gémeos.
Bom fim-de-semana
Jocas gordas
Lena
é o período no qual algumas pessoas tinham um impressionante sistema iminitário.
A bisavó Angelina faleceu com 96 anos. nós esperavamos ansiosamente que ela chagasse aos 100 para fazer uma mega festa.
csd
o magusto é um costume tradicionalmente aceitável que comemora o S. Martinho e através dos tempos é conhecido como a festa das castanhas optando por um ciclo outonal de referência
olá filipe!
acho que vais gostar dos textos quie as pessoas têm postado na aldeia da minha vida.
alguns fazem água na boca.
outros fazem rir e outros ainda provocam ataques de nostalgia
csd
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