2012-05-27

A ESTAÇÃO DE COMBOIOS







Photo by Flores.

Em memória de Guillaume Apollinaire

Chove sempre no meu sono
o meu sonho enche-se de lama
é uma paisagem obscura
e eu estou à espera de um comboio
o chefe da estação colhe malmequeres
que cresceram entre os carris
pois há já muito tempo
que um comboio não entra nesta estação
e de repente os anos passaram
eu estou sentado por detrás de um vidro
o cabelo e a barba cresceram
como se estivesse doente
e enquanto o sono me toma de novo
silenciosamente ela vem
segura uma faca na mão
e cautelosa aproxima-se
crava a faca no meu olho direito.

Luisa Monteiro

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É O PÁSSARO NA ÁRVORE

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens).


É o pássaro na árvore o que é mais importante
É a árvore com o pássaro o que é mais importante
São a árvore e o pássaro o que é mais importante
Que eu veja a árvore e o pássaro na árvore


Que a árvore e o pássaro estejam lá quando os vejo
Que eu saiba que tu vês o pássaro na árvore e a árvore
Que sejamos nós os que vêem a árvore com o pássaro
É isso, é o pássaro na árvore o que é importante


Que sejamos nós os que vemos enquanto o vemos
É o pássaro na árvore o que é mais importante
Não somos nós, é o pássaro na árvore
É a árvore com o pássaro o que é mais importante.


São a árvore e o pássaro os que são verdade
É a música que há no trivial
É este pássaro e esta árvore que são tão importantes
É a música no trivial o que é misterioso


É o trivial do mistério o que é a música
É o trivial na música o que é verdade
É isso do que está ali o que é tão importante
É isso do que não está ali o que é tão importante


É o trivial o que é tão misterioso
Não há pássaro nem árvore que sejam importantes
Que eu veja o pássaro e a árvore não é importante
Que sejamos nós os que vemos não é o mais importante
É o trivial atrás do signo o que está presente


São os erros na enumeração os que são inimitáveis
É o trivial da frase o que é substancial
O incomparável é o banalmente presente


Aqui junto à janela não há círculos nem semicírculos
Junto à janela está a árvore com o pássaro, isso é o mais importante
Não há linhas rectas nas tábuas da cerca
Não há nada direito nos cabos dos postes
(que – também – cantam)


Uma árvore é uma árvore –
Esta árvore trivial é diferente das outras
Todas as árvores triviais são diferentes
Esta árvore com este pássaro existe (também em mim)


Jørgen Gustava Brandt
Det er œg i mit skœg, 1966

Tradução de Amadeu Baptista


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Antonin Dvorak: Humoreske





Photo by Emira by Resim & Fotoğraf.

Existe algo dotado para o nítido e o universal
nesta tonalidade,
algo crescente e ameno,
surpreendentemente suave como uma casa de pedra,
uma luz,
um arco que evolui no sentido intratável
do barro,
grato e plácido como uma amêndoa,
um peixe translúcido,
um ramo de sombras e cintilações,
sussurrante,
atravessando os brilhos que oscilam nas coisas,
nesse lado de que nasce e morre a deriva,
onde a buganvília acrescenta um futuro promissor
à epifania das coisas,
inconcebível,
exactamente no centro do que nunca existiu.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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PARA DANÇAR UM TANGO

Imagem retirada do mural de Maria Quintans.

Um tango dança-se com faca
no olhar
e sapatos a acolchoar o silêncio
Um tango estilhaça
tudo o que está perto
o ar onde o corpo se contorce
onde as mãos afogam
mãos ou na cintura
navegam como se fosse
um rio de prata.

João Tomaz Parreira

Desviado do blogue deAmadeu Baptista

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UM BEIJO NO BOSQUE


Photo by Resim & Fotoğraf.
Fecharam os olhos
os duendes do bosque, o beijo
floriu nos arbustos, nos ramos
do sol, no perfume do vento
crepitou nos lábios
um segredo profundo
lançando raízes
o incêndio no bosque
fecharam os olhos
esquilos e aves
recuperam o canto
à volta do lume.

João Tomaz Parreira
Poema desviado do blogue deAmadeu Baptista

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BANHO DE MAR


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

Começam por entrar as pernas
nuas hesitantes
e fincam-se como Rodes sobre o Egeu
a cintura depois
de inundados os calções
por fim o próprio umbigo
cordão que sempre nos ligou à vida
os braços nus abraçam
o que do sal começa a fervilhar na onda
como um feixe de dedos nossas mãos
vão abrindo sulcos na imaginação
até ao horizonte.

© de João Tomaz Parreira

João Tomaz Parreira ou J.T.Parreira, Lisboa, 1947. Poeta. 6 livros de poesia (Este Rosto do Exílio,1973; Pedra Debruçada no Céu, 1975; Pássaros Aprendendo para Sempre, 1993; Contagem de Estrelas, 1996; Os Sapatos de Auschwitz, 2008; e Encomenda a Stravinsky, 2011 ). Um ensaio teológico (O Quarto Evangelho - Aproximação ao Prólogo, 1988). Participação em Antologias. Escreve na revista evangélica «Novas de Alegria» desde 1964 e no Portal da Aliança Evangélica Portuguesa. Na juventude escreveu poesia e artigos no suplemento juvenil do "República", entre 1970-1972.

partihado a partir do blogue de Amadeu Baptista

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2012-05-26

Textos ensanguentados



Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

Textos
ensanguentados
como feridas

Gralhas
ensanguentadas

Textos
gelados
como árvores
no Inverno

Textos
como árvores
cortadas
aos bocados

Textos
como lenha

Textos
como linho

Textos
brancos
como a noite

Textos
brancos
como a neve

Textos
sagrados

Textobifurcados
como ramos

Textos
unos
como troncos

Adília Lopes, algures

retirado do blogue deIsabela Figueiredo.

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2012-05-23

Há um país antigo

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.

Há um país antigo que se abriga em mim
um país de que não me lembro
senão de mim menina, uma língua de sol e água
que se cola à minha pele, obstinadamente
quer ser tempo em mim, quer ser boca
procura a abertura, escorre entre as fendas
da memória, como um pássaro de asas feridas.
Há um país antigo que se abriga em mim
E eu procuro a voz do vento que o cante,
Nessa harpa fria que é memória minha.

(inédito)
Maria João Cantinho

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DESPERTAR A VOZ, SEGUIR O TRAÇO





Photo by Tourism in Turkey.

É o mais difícil, este gesto
de amanhecer a palavra, o poema,
deixando-nos a sós com a brancura da página.
O canto não chega, quando o chamamos
tal como a luz não vem,
senão de mansinho,
quando os flocos da noite se desvanecem
em orvalho límpido e claro.
E então a canção irrompe, novamente,
mas apenas para aquele que se senta à beira do início,
do seu início, e escuta.
É o mais difícil, este gesto
de descer à sombra, ao sem-fundo da linguagem,
para ouvir o canto.
Que rastro, que traço é este, que nos visita
e nos desperta a voz, em manso segredo?
Que vislumbre nos toma e nos arrasta,
agora que um outro alfabeto nos é revelado,
exterior ao dito, anterior ao hálito da palavra,
como se as sombras dos nossos antepassados
nos percorressem, por entre os nossos sonhos,
música límpida e tão próxima,
tão imponderável na sua aura?
Cantam em nós essas vozes, silentes,
mas que esvoaçam no vento, invisíveis,
cantam em nós, mas as suas vozes são de rio
e tempo, de outros tempos,
em que também fomos outros.

Do blogue de Amadeu Baptista
Maria João Cantinho

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URGÊNCIA

 Foto by Resim & Fotoğraf.

Um homem chegou e deitou-se,
era aquele que avançava contra o vento frio,
que se abraçava às palavras, às árvores, às flores
e no seu ventre amanhecia a luz de uma chaga,
de onde saiu um pássaro.
As nuvens voavam à altura dos seus olhos
e era preciso escutar a voz, o canto das sílabas
que sufocava no sangue,
a urgência, a terra contra o sangue
que corria nos veios azuis do seu corpo.
Na claridade do seu olhar movia-se velozmente
a paisagem, como em incertos dias de Verão,
nos seus olhos iluminava-se o assombro,
reflectiam-se as imagens e as sílabas da catástrofe,
a obscura gramática que neles se desenhava
em linhas de solidão, como sulcos de água,
escoando-se lentamente.
Era preciso lembrar a luz, recordar os vestígios,
o canto que emanava das vísceras, interrompendo o mundo,
era ali o início do círculo, o lugar onde tudo recomeçava,
o começo da liberdade, exacto,
recapitulando o destino do voo alucinado, na noite.
E era preciso não temer os nomes, a escuridão,
a alquimia que tudo funde, emergindo do sonho.
Era preciso não temer as imagens que se sucediam,
a memória interrompida, antigos nomes
que se escreviam contra as raízes, para que cantasse
a glória da infância renascida.
Na claridade do seu olhar, era já a morte em sonhos,
florescendo no horizonte do tempo
e então disse-me: bebe da minha luz,
bebe, a noite descia, puro anil,
bebe do meu sangue, bebe-me,
só aí terei sido porque te vi. Sou tu.

Do blogue de Amadeu Baptista

Maria João Cantinho
(in Sílabas de Água, Porto, 2006)

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2012-05-18

Haikai 2

Photo by Delta Q.

A folha em branco:
um campo minado.

Liberto Cruz,
[in Poesia Reunida, 1956-2011, Palimage, 2012]

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Haikai

Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH.

Trinta e sete braços:
o dragoeiro
é um candelabro
de sombras orientais.

Liberto Cuz
[in Poesia Reunida, 1956-2011, Palimage, 2012]

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Lembro o vinco do lençol


Photo by Emira for Resim & Fotoğraf.


Lembro o vinco do lençol
Uma certa mancha leve
Que mui de leve tacteio.
Lembro o perfil dos seios
A lisa curva do ventre.
Os dedos a divagar
Vão pelo cetim da pele
Vão a chama pressentindo.
Intermitente leitura
De um corpo todo meu
Na penumbra o evoco
Sua ausência folheio.
E de novo recupero
A memória do seu rosto.

Liberto Cruz,
[in Poesia Reunida, 1956-2011, Palimage, 2012]

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Vem a Noite

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

Vem a noite. E um límpido
E frio cansaço rompe
Entre as árvores. O mar
Abranda quase ausente.
Breve toda a esperança
Já o sonho não persiste
E só o medo aumenta
A raiva o desespero.
Uma corda: a solidão.
Uma névoa antiga
E depois a queda livre
O alívio talvez.
Quem sua vida comanda
Também a morte ordena?

Liberto Cruz,
[in Poesia Reunida, 1956-2011, Palimage, 2012]

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POEMA CONTRA A CIDADE


Imagem captada do mural de Maria Quintans.

Aqui na cidade nossos dedos não acabam gestos
E a incauta presença nos suga
O esforçado mel de todos os dias.
São inúteis todos os rios de resina,
Todas as amoras maduras
Que pisámos, bravas,
No intervalo das estações.
As primeiras chuvas são apenas
Primeiras chuvas
E as crianças brincando são apenas
Crianças brincando.
Punhais de duas lâminas nos correm nas veias
E cavalos selvagens penetram
Em nosso corpo, até à raiz dos ossos.
Falsos, caminhamos, esmagados os olhos
Pela indiferença das árvores,
Pelo silêncio dos cisnes.
Aqui na cidade, talvez tudo seja o contrário,
Do que digo, do que escrevo,
Mas a amada perde-se em florestas de ar puro
E meus dedos não acabam gestos,
Não conseguem a calma da sua presença.

Liberto Cruz,

[in Poesia Reunida, 1956-2011, Palimage, 2012]

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Não gosto tanto de livros


Photo by Artes & Poesias


Não gosto tanto

de livros

como Mallarmé

parece que gostava

eu não sou um livro

e quando me dizem

gosto muito dos seus livros

gostava de poder dizer

como o poeta Cesariny

olha

eu gostava

é que tu gostasses de mim

os livros não são feitos

de carne e osso

e quando tenho

vontade de chorar

abrir um livro

não me chega

preciso de um abraço

mas graças a Deus

o mundo não é um livro

e o acaso não existe

no entanto gosto muito

de livros

e acredito na Ressurreição

dos livros

e acredito que no Céu

haja bibliotecas

e se possa ler e escrever



//



Lopes, Adília, Obra, Lisboa: Mariposa Azual, Lisboa, 2000

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Um anjo

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.
Há um anjo que chora na minha língua. Um mocho branco olha-me em silêncio por entre as sombras das árvores e encandeia até à dor a ingenuidade do sono. Eu posso falar de solidão por 1001 noites seguidas. Eu posso! -- mesmo sem a literatura. Pela manhã, os ossos amarelos do riso segregam um olhar macio ao abrunheiro; abrunheiro-menino e um bom dia velho cheio de vermelho de uma boca seca de penas. O anjo teima em não sair da minha língua -- já tão de pedra tumular -- e chora o sangue do filho que há-de nunca nascer.

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2012-05-16

Gioacchino Rossini: O Barbeiro de Sevilha, abertura

Photo by Miro Brtko for BEAUTIFUL PLANET EARTH.


Estão abertas para os lugares as moradas dos deuses,
o afã divino esvoaça sobre as nossas cabeças,
as ondas rendem-se à serena agitação dos ventos,
são como árvores iluminadas dentro do mar que se inclina
para um rosto flutuante. Aqui o tempo regressa
à inúmera voltagem das coisas, um vidro rasga
o sobressalto das águas, uma gaivota resplandece
sobre a secreta qualidade dos enigmas, uma palavra grená
que evolui sobre os ombros. Amo-te hoje como nunca
amei ninguém, a brancura atravessa esta ilha de fogo, o mar
procura-nos, espera-nos, neste alimento faz-nos crescer
para o abismo, os ramos
de algo calcinado sob a subtil transparência do olhar.
Eis as mãos com que te encontro, a luz
com que te posso adivinhar e como recrudesce
a bátega para tua e nossa esperança, sobre o mundo
irrompe o silêncio onde uma chama
amplia as nossas sombras,
o infinito onde tudo se perde e tudo se transforma.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Canção sem Palavras






Photo by Project Noah.

Algumas aves são mais aves que outras,
algumas aves possuem maior obstinação na obstinação do céu,
algumas aves influenciam mais vastamente o canto,
abrem espaço mais vezes à glorificação do ar
e da imponderabilidade.


De todas as aves amaria ser a cotovia,
essa que passa no seu voo de arabesco e medusa
e me encontra sempre na mais amarga solidão
e me desperta para o incontornável mistério
de me encontrar sempre e sempre.


Esta ave deve todo o seu fascínio ao poder da noite
e ao poder do mar,
várias vezes me vesti de terra para escutar o seu canto,
sou esta noite onde esta ave aguarda
a manhã para despertar o sol,
o sol e o milagre de uma canção
quando esta ave desperta o meu coração tangível,
o meu coração volúvel.


É espessa a tristeza de onde venho,
uma pedra estala no meu peito,
a água às vezes é lume nos meus olhos,
obsessivo mistério
que me conduz ao espaço
onde o deserto principia.


A norte e a sul o deserto prolifera
em golpes poderosos sob as mãos,
estas mãos vazias e irreais
na solidão do mundo
em que apenas aguardo
o canto matinal da cotovia,
o benefício de uma ave na solidão do mundo.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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2012-05-14

A Menstruação



 Imagem captada do mural de Isabela Figueiredo


A menstruação quando na cidade passava
o ar. As raparigas respirando,
comendo figos – e a menstruação quando na cidade
corria o tempo pelo ar.
Eram cravos na neve. As raparigas
riam, gritavam – e as figueiras soprando de dentro
os figos, com seus pulmões de esponja
branca. E as raparigas
comiam cravos pelo ar.
E elas riam na neve e gritavam: era
o tempo da menstruação.

As maçãs resvalavam na casa.
Alguém falava: neve. A noite vinha
partir a cabeça das estátuas, e as maçãs
resvalavam no telhado – alguém
falava: sangue.
Na casa, elas riam – e a menstruação
corria pelas cavernas brancas das esponjas,
e partiam-se as cabeças das estátuas.
Cravos - era alguém que falava assim.
E as raparigas respirando, comendo
figos na neve.
Alguém falava: maçãs. E era o tempo.

O sangue escorria dos pescoços de granito,
a criança abatia a boca negra
sobre a neve nos figos - e elas gritavam
na sombra da casa.
Alguém falava: sangue, tempo.

As figueiras sopravam no ar que
corria, as máquinas amavam. E um peixe
percorrendo, como uma antiga palavra
sensível, a página desse amor.
E alguém falava: é a neve.
As raparigas riam dentro da menstruação,
comendo neve. As cabeças das
estátuas estavam cheias de cravos,
e as crianças abatiam a boca negra sobre
os gritos. A noite vinha pelo ar,
na sombra resvalavam as maçãs.
E era o tempo.

E elas riam no ar, comendo
a noite,
alimentando-se de figos e de neve.
E alguém falava: crianças.
E a menstruação escorria em silêncio –
na noite, na neve –
espremida das esponjas brancas, lá na noite
das raparigas
que riam no sombra da casa, resvalando,
comendo cravos. E alguém falava:
é um peixe percorrendo a página de um amor
antigo. E as raparigas
gritavam.

As vacas então espreitando,
E nos focinhos consumia-se o lume em silêncio,
Pelas janelas os violinos
passavam polo ar.
E a menstruação nas raparigas escorria pela sombra, e elas
gritavam e comiam areia. Alguém falava:
logo. E as vacas passavam pelos violinos.
E as janelas em silêncio escorriam
o seu fogo. E as admiráveis
raparigas cantavam a sua canção, como
uma palavra antiga escorrendo
numa página pela neve,
coroada de figos. E no fogo as crianças
eram tocadas pelo tempo da menstruação.

Alimentavam-se apenas de figos a de areia.
E pelo tempo fora,
riam - e a neve cobria a sua página de tempo,
e as vacas resvalavam na sombra.
Em silêncio o seu lume escorria das esponjas.
Partiam-se as cabeças dos violinos.
As raparigas, cantando as suas crianças,
comiam figos.
A noite comia areia.
E eram cravos nas cavernas brancas.
Menstruação - falava alguém. O ar passava –
e pela noite, em silêncio,

a menstruação escorria pela neve."

HERBERTO HELDER

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Silêncio ao Pôr-do-sol



Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.

de cada vez que uma porta se fecha fica mais nu o dia do pão triste sobre a mesa . como se andar aqui fosse a morte iluminada de uma veneza sem sombras. animal outonal na passagem de todas as pontes para o poente. rastilho de pinheiros magros no ensaio de uma terra abandonada. brisa que passa aveludadamente antiga de gestos e de canduras e de significados que só eu sei e que não iludo. a cada instante anoitece a conversa pacificadora dos anjos que enfim são estrondo e abandono._______________e é sobre a máscara dos náufragos que escrevo a assiduidade do silêncio. porque de cada vez que se fecha uma porta abre-se o ângulo da lavoura onde me desisto.

Isabel Mendes Ferreira

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Sophia

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf.

Sacode as nuvens que te poisam nos cabelos,
Sacode as aves que te levam o olhar.
Sacode os sonhos mais pesados do que as pedras.

Porque eu cheguei e é tempo de me veres,
Mesmo que os meus gestos te trespassem
De solidão e tu caias em poeira,
Mesmo que a minha voz queime o ar que respiras
E os teus olhos nunca mais possam olhar.

Sophia de Mello Breyner Andresen

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Pedro Tamen

Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf.

Fresco era o dia, plantado na chuva,

jovens os relógios tocando Mozart...

Os carros corriam, os passos passavam

e os velhos sentados dormiam no tempo

regressos perdidos de todas as sombras.



Pássaro pousado na alma da tarde,

era todo o sol natural inverno...

O mar estava perto nos olhos da gente,

um barco chegava em cada minuto

e o segredo bailava nas mãos da criança.



Recordo uma paz sob as gabardinas,

recordo humidade nas rodas dos carros...

(Tão solta no ar corria a memória

que as folhas tão verdes marcavam os anos).

A chuva nascia da terra para o ar

e ria na cara da gente perpétua

- cada riso dela era a rua inteira

e era o cão vadio cheirando esta terra

gerada no vento pelo grande gesto.

Rua colocada por amor das formigas

pequeno brinquedo achado no bosque,

eras mão aberta para todos os sons,

para cada assobio de vapor de água,

para a bela frescura da brisa salgada.

Ligeiros, os céus brincavam escondidos

com a tarde criança presente no ar,

jogavam às pedras ao pé dos passeios

e corriam juntos fugindo do vento...

Passavam pessoas de faces vermelhas,

de um sono pequeno agora acordadas,

seus passos miúdos de nada sabiam

- nada estava feito e tinham dez anos.

A branca neblina sentada no sol

sorria de perto a tudo que era

e tudo saltava na sua presença.



Escorregavam horas do berço dos ramos

ficando caladas, respirando fumo...

E, leves, cheirosas, perpassavam mãos,

tão estreitas e fortes, do primeiro mundo...

Algo se esperava, algo estava perto,

algo era preciso faltava a resposta,

o rio que fosse a cama da chuva,

a sombra final para o sol se deitar,

a torre perfeita com todos os olhos,

a mão que apertasse as coisas dispersas...

E eis que o rio vem, a sombra e a torre,

e se estendem dedos com a tua chegada.



Saltaram coelhos de todas as tocas

e a fonte da serra sorriu-se no musgo.

Manaram os beijos no ar respirado

e as malas abertas mostraram o fundo.

Fugiram cavalos de pernas de espuma

levando no pêlo noticias em branco.

E o vento corria em busca da lua

e a tarde e os céus calavam os gritos...

Silêncio se fez, e a erva cresceu

mais verde e mais fresca, segura certeza.

Espreitaram os sinos, riam-se as escadas,

tudo estava pronto e de novo erguido...




Tão bela que vinhas como que de infância,

tão pura e tão simples, tão gesto benigno,

tão nova palavra rasgada no mar...

Menina dos anos, dos anos perdidos,

sombra de outras noites, noiva de outros dias,

perfeita miragem, pele das próprias mãos,

eis que então chegavas e eis que eu te via,

e as horas sorriam, felizes, completas...




Teu rosto era a concha dos quatro oceanos,

teu corpo era a praia de areia molhada,

teus olhos erguiam o toldo do céu

e enchiam os mastros de verdes bandeiras.

Tu eras o vento, tu eras a força,

dançavam secretas tuas mãos de aragem...




Nasceste presença na tarde de bronze

e agora já nada seria indeciso.

Agora eras tu a essência dos nomes,

os galos cantavam, era bom respirar

Os prados distantes ficavam tranquilos,

esperando os teus pés, berlindes pequenos.

A chuva e a brisa, a jovem frescura,

ganhavam certeza, seguras estavam

- morena lembrança, segundo natal.




Nunca mais a noite mordida no escuro,

nunca mais o dia manchado de cuspo,

nunca mais o véu tapando-me tudo,

nunca mais os dedos procurando flores...

A estátua plantada na nudez do largo

devolvia a calma aos olhos fechados

e enchia de sombra as pedras queimadas.


Agora eu sabia em cada manhã

nasceria o sol atrás dos teus ombros.




Pedro Tamen
in as palavras da tribo, Volume I, Co-edição Altamira e Quetzal, pag.167, 1985
imagem: Matteo Mignani

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Lars Norén2



Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens).
Frio, neve nas árvores
que estão imóveis como as suas sombras
Pardais pardos de asas ansiosas
O teu sangue suspende-se sereno no teu corpo
Tenho medo e o medo não pode
encontrar nada de que ter medo

Lars Norén
Nattarbette, 1976

Tradução de Amadeu Baptista

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Lars Norén1

Photo by João Carreira

Procuro palavras
Quaisquer
Palavras destroçadas
pelo terror e a mentira
Palavras que são liberdade
para aqueles que se libertam

Lars Norén
Nattarbette, 1976

Tradução de Amadeu Baptista

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2012-05-11

Johann Strauss Sr.: Marcha Radetzky



Photo by Markahuasi - Página Oficial

Uma intensidade subtil percorre os cabelos
desta sombra que baila, o corrupio amplia
as formas fascinadas, desvela-se o enigma
nesse troar das coisas, o olhar que irrompe do fogo
para o fogo onde um cristal se levanta
e uma imagem devolve a luz ao arco que há no céu
e adensa os perfis que há na eternidade.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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ATÉ À MADRUGADA


Chovia sobre a terra das altas urtigas.
Atrás delas gritavam grandes relógios e sinos.
Depois um tambor, logo outro – corria;
muitos tambores à meia-noite; o seu sangue
corria pelos pés e pelas mãos; ofegava;
tropeçou em algo e calou-se; a sua fúria cessou
tal como o seu medo, apenas uma tranquila pergunta:
qual seria o obstáculo – quase curiosidade.




Assim, caída no chão, procurou com todos os seus membros,
levantou a cabeça cortada de uma estátua,
limpou-lhe os olhos, os relógios pararam,
também se calaram os sinos e os tambores.



Amanhecia.
O que aguentava como uma criança nos braços
era o seu rosto. Pelos seus lábios corria
um floco de leite que tenuamente brilhava na madrugada.

Iannos Ritsos
Tradução de © Amadeu Baptista

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A feira das vaidades3



Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf.








Lembras-te do jardim irreal e triste?
Do lago onde boiavam peixes de jade?
Existe ainda esse jardim irreal e triste?
Para voltar sempre parece tarde.

Dormias como um deus sobre anénomas brancas:
Como eras tão jovem, tão simples, tão claro!...
Teu rosto e tuas mãos eram anénomas brancas.
Só a memória guarda o teu retrato.

Que fizemos do nosso único momento?
Do grande? do verdadeiro, do exacto?
Agora o que há entre nós não tem momento;
Está fora do tempo e do espaço.

Maria Manuela Couto Viana

in As Folhas de Poesia Távola Redonda, Boletim Cultural VI Série Nº11 Outubro de 1988, Fundação Calouste Gulbenkian

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A feira das vaidades2


Photo by Emira for Resim & Fotoğraf.

Este fundo de hotel é um fim de mundo!
Aqui é o silêncio que tem voz. O encanto
Que deu nome a este morro põe no fundo
De cada coisa o seu cativo canto.


Ouço o tempo, segundo por segundo.
Urdir a lenta eternidade. Enquanto
Fátima ao pó das estrelas sitibundo
Lança a misericórdia do seu manto.


Teu nome é uma lembrança tão antiga,
Que não tem som nem cor, e eu, miserando,
Não sei mais como o ouvir, nem como o diga.


Falta a morte chegar... Ela me espia
Neste instante talvez, mal suspeitando
Que já morri quando o que eu fui morria.




Petrópolis 21-3-1953


Manuel Bandeira

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A feira das vaidades1

Photo by  Emira for Resim & Fotoğraf.

Lembrança

Music, when soft voices die,
Vibrates in the memory,
Odours, when sweet violets sicken,
Live within the sense they quicken.

Rose leaves, when the rose is dead,
Are heaped for the beloved’s bed;
And so thy thoughts, when thou art gone,
Love itself shall slumber on.

Percy Bysshe Shelley

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2012-05-10

Fillipa Leal2

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens).

Ao redor do pomar, existira um rio que secara nos últimos anos. se o seguisse, junto à margem, em linha curva e longa, encontraria uma cidade desconhecida. Embora nenhuma cidade seja desconhecida se soubermos onde está.

Ouviu: Perder-te-às na ausência
de água do rio.

Filipa Leal In "A Inexistência de Eva".

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2012-05-09

Esta Gente / Essa Gente


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.

O que é preciso é gente
gente com dente
gente que tenha dente
que mostre o dente

Gente que não seja decente
nem docente
nem docemente
nem delicodocemente

Gente com mente
com sã mente
que sinta que não mente
que sinta o dente são e a mente

Gente que enterre o dente
que fira de unha e dente
e mostre o dente potente
ao prepotente

O que é preciso é gente
que atire fora com essa gente

Essa gente dominada por essa gente
não sente como a gente
não quer
ser dominada por gente

NENHUMA!

A gente
só é dominada por essa gente
quando não sabe que é gente.

Ana Hatherly

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Antonin Dvorak: Dança Eslava Op. 46 No. 1 em dó maior








Ao perseguir o terror e a graça,
cheguei a este lugar onde nunca estive.
Não ter casa nem pátria é o delírio
de que me faço sobrevivente último.


Quis uma árvore para respirar,
a simples constelação de um amieiro.
Mas apenas a cinza de uma estrela respondeu
a este vão apelo, a esta vã esperança.


Quem me ilumina e comanda
há-de ser longínquo como uma montanha.
Aceito o vazio e o silêncio à minha volta.
Nada há mais sagrado que a música que escrevo.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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poesia nocturna

Photo by Resim & Fotoğraf.

raro o passado. traço. escavo. em passo impelido crucificante discreto ferido rumoroso. passado de sonetos graves e
alguns verbos como riachos outros como lombos dramáticos. e a lã das estrofes a ser queima. árdua tarefa esta de abrir o corpo fechado como urna. aberto como poço. escravo como lenha esquecida. no peito. onde me aboémio de fadas génios ofélias e vogais carinhosas. raro este passado promontório nocturno e vigilante. que me cerca de asas. como estrelas de aço. raro. raro e errático. este nunca diário. mais frase que ponte. mais pranto que aprendiz. mais cegueira sobre as águas. silêncio de lápis. risco. intermitência.

Isabel Mendes Ferreira

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2012-05-07

A BALADA DO SENA



Photo by Sandra to Resim & Fotoğraf.

Um rosto difuso passeia sob as pontes
espreita quilhas, o cinzento da madrugada,
vidas entrelaçadas, chuvosas raízes,
mil desejos que se perdem como luzes na água espessa.

São Luís reclinado na Sainte Chapelle.
Os anos passam a voar.
Uma senhora estrangeira penteia-se na parede
e uma rosa floresce no olho esquerdo do grácil unicórnio.

Voam os estandartes. Em Saint-Julien-le-Pauvre
dizem Missa perpétua pelos afogados nocturnos.
Sinto como sobe, agora, a maré.
Como sobe a maré.
E os lábios de Paris.

Algo de fosforecente passa sob a água.
E há um restaurante chinês na rua Grégoire de Tours.
Gertrud Stein morreu faz agora sete anos
com uma doce melancolia perfumada.
Au revoir, mes amours.

Quando o movimento devora este silêncio
uma voz declama, boulevard Saint-Germain,
os versos de uma balada misteriosa e obscura.
Mas sobe-me pelos pés a relva, o mato,
e também o sangue do meu país.

Debruço-me a olhar o Sena.
Os pássaros de Abril fugiram tristemente.
Penso na minha vida,
alguns dias alegres e distantes.
Outros olhos contemplarão o Sena, penso.
A terra, nos meus olhos, florirá alegremente.

Joan Perucho
in "Os Luggares da Poesia"

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ELEGIA À TERRA E AOS MORTOS DE GANDESA

Photo by Heidi RogersBEAUTIFUL PLANET EARTH

Triste flôr de Dezembro
no vento enraizada
nutrida pelo sangue de tantos mortos que nesta terra
foram crescer
em mato e em arbustos;
que na casa paterna
e nss chuvas de Inverno
foram hóspedes alegres
ares cinzentos, miúdas flores do bosque
que, com o aroma do tempo,
perderam os júbilos agrestes da Primavera
tristes alegrias que foram outrora graciosamente concedidas.

Seca e miserável terra. Avaramente apostada em
sobreviver ao pó
daquelas torrentes desoladas
e à infinita melancolia do camponês que chora
sob o grito do abutre.
Dura terra que amo na sua agonia
dura agonia minha
dentro do peito guardada.

Não, não há semente que possa fertilizar a rocha.
Alimentada pelo sangue destes mortos que floriram
em ásperos tomilhos
nada te acompanha a não ser o silêncio,
a espera abandonada,
a imensidade augusta e muda do firmamento.

Joan Perucho
in "Os Lugares da Poesia"

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O PAÍS DAS MARAVILHAS




Photo by BEAUTIFUL PLANET EARTH.




A uma hora de caminho da montanha sagrada
quando os dentes riem sozinhos de forma glacial
e as palmas das mãos voam pelo ar
desafia-se o que é imprevisível
o lamento dos violinos
a íntima tragédia.


Não há escola como a da vida.
Mas há o restaurante económico,
aquele das palavras cozinhadas, recozinhadas,
e os beijos na face com pública virtude.
Amanhã, Senhora minha, partiremos em viagem.
Não sei se jamais nos voltaremos a encontrar.

Joan Perrucho
in "Os Lugares da Poesia"

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OS SOLDADOS


Photo by © Pete Oxford to Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.


Avançam lentamente pelo caminho enlameado
mas agora já não pensam na mulher nem nos filhos
nem na casa que deixaram para trás, abandonada.
Macilentos
avançam e cantam hinos de violência sob o sol
duma terra áspera e enegrecida. A morte, contudo,
empurra-os para a frente
nas suas longas fileiras de tristes destinos, sombras
do que foram outrora. Jamais voltarão a encontrar
a paz daquelas horas que viveram, longínquas
como o écran branco do cinema, como na sede
daquele domingo em que ofereceram o seu tímido amor.

Joan Perucho
in "Os Lugares da Poesia"

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AS FIGURAS DE CERA

Photo de Masaustu-resimleri para Resim & Fotoğraf.

Reinvindicam um amor eterno e imarcescível.
Paradas no tempo descem às paragens
que causam horror aos humanos. Mas ficam sempre
com os seus sorrisos extáticos, com desvelo seguro
e não com esta vida impura que envelhece e deforma.
“ O mort, vieux capitaine, il est temps, levons l’ancre”.

Mas estes lábios femininos que suspiram imóveis
não podem dizer todo o horror de Carlota Corday
nem o da Belle Heaulmière que amou o poeta.
Um grito, o pestanejar, o suave gesto daquela mão
tudo agora permanence imutável na sua aparência mais profunda
O crime é na verdade sangrento; o amor esta cera amarelecida.

Joan Perucho
in "os Lugares da Poesia"

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Liberdade


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.


Este animal
que trago no peito, por dentro, acocorado
remordendo o silêncio
- como salalés roendo o barro -
perfurando as sombras com os seus olhos grandes
Escavando sulcos no silêncio,
Acocorado.

Este animal que trago nervoso
No peito,
Retesando os músculos, pronto para saltar
Este animal que no estreito
Silêncio de mim se agita
E abre a enorme boca pronto para gritar.

Este animal que em mim se move
Em mim habita
Este animal que ninguém poderá jamais domesticar.

José Eduardo Agualusa

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O Bosque Cintilante # 33







Wolfgang Amadeus Mozart: Rondo alla Turca


Há uma linha entre o arco e o violoncelo.
E essa linha é pura e transfigura as coisas
e sobe mais alto, para além do céu.
E risca o ar como uma quimera.


Uma mulher possessa emerge dessa treva.
A linha cruza a terra com a água.
E o fogo propaga-se a essa sombra negra
onde a mulher canta para além do mundo.


A intensidade da chama levanta-se no rosto,
vibra e amplia-se sobre o universo:
uma linha negra que no vento alastra.


O silêncio arde nesse vendaval.
Em silêncio arde na mulher que canta
e transfigura as coisas para além do mundo.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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Daniel Faria

Photo by Mourad Braham.


As mulheres aspiram a casa para dentro dos pulmões.E muitas transformam-se em árvores cheias de ninhos - digo,
as mulheres - ainda que as casas apresentem os telhados
inclinados ao peso dos pássaros que se abrigam.
É à janela dos filhos que as mulheres respiram
sentadas nos degraus olhando para eles e muitas
transformam-se em escadas.
Muitas mulheres transformam-se em paisagens
em árvores cheias de crianças trepando que se penduram
... nos ramos - no pescoço das mães - ainda que as árvores irradiem
cheias de rebentos.
As mulheres aspiram para dentro
e geram continuamente.
Transformam-se em pomares.
Elas arrumam a casa.
Elas põem a mesa
Ao redor do coração.

Daniel Faria

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2012-05-05

Filipa Leal 1


[foto © Allan Wallberg] através do mural de João Costa

Era uma mulher que estava dentro de uma sala muito branca.
Ouviu: - Não fujas. Não esqueças.
Era uma mulher lívida de medo de não conseguir esquecer.

Filipa Leal
in "A Inexistência de Eva"

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A respiração avança através de um gladíolo

Photo by Blanc & Noir - 黑與白

A respiração avança através de um gladíolo, as mãos
encrespam-se de silêncio, minerais dolorosos asfixiam a noite, riscam
como se fossem fósforos as sardas do teu rosto. Vens


com os dentes branquíssimos, o peito aberto aos ninhos, barco
que balouça na névoa, é tecto, casa, cama. Dar-te-ia


a cereja do bolo, a serenidade do mar, uma praia de colmo,


se os dias não fossem transitivos e os objectos íntimos, ó ave,
insuportáveis.


(in As Passagens Secretas, Coimbra, Fenda Edições, 1982)


Poema: © de Amadeu Baptista

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Hay mensajes cuyo destino es la pérdida


‎Photo by Barry Bland for captada através de J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)

"Hay mensajes cuyo destino es la pérdida,
palabras anteriores o posteriores a su destinatario,
imágenes que saltan del otro lado de la visión,
signos que apuntan más arriba
o más abajo de su blanco,
... señales sin código,
mensajes envueltos por otros mensajes,
gestos que chocan contra la pared,
un perfume que retrocede
sin volver a encontrar su origen,
una música que se vuelca sobre sí misma
como un caracol definitivamente abandonado.

Pero toda pérdida es el pretexto de un hallazgo.
Los mensajes perdidos
inventan siempre a quién debe encontrarlos."

R. Juarroz

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2012-05-04

CENA NA MARGEM







As crianças perscrutam
sementes, conchas, moscardos
e o caminho do coelho


Perante a fadiga aparente
da imensa montanha
despertam as pedras
e o grão de areia
- preâmbulo da rocha –


O largo caminho
do diminuto ao gigantesco
abre-se perante elas, levantando três dedos.
Próximo dali, o vento
amarra os tectos
e toca as fragrâncias


As mulheres aguardam
também as borboletas
e alguém quer levar a erva
e o cerro
para os cuidar em casa


Todos se prendem
ao caminho de regresso
resolutos, inconclusos
como cada eternidade dos deuses
verdes e encarnados.



Alejandra Flores Bermúdez
Tradução de - © Amadeu Baptista


Alejandra Flores Bermúdez, nasceu em Tegucigalpa, Honduras, em 1957. Estudou Antropologia na Universidade dos Andes, em Bogotá, Colômbia. Publicou: Destinoultrajado (poesia, 1992), Exilios Interiores(poesia, 1996), Cantos de Barro (contos para crianças, ilustrados por si mesma, 2000) Sobretodo (poemas, 2001), Rimas Y Rondas (poemas para crianças, 2005), Sol Petreo (poemas2007), Por la Vereda (narrativa, 2007), Cartas al Mago (poesia,2008), Viaje a la Guaira (poesia, 2009), En Busca de Polaris nn Norte Imaginario (poesia, 2010), Este Cultivo De Anemonas (poesia, 2011).

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RESSUREIÇÃO


Photo by © Simon Littlejohn for Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.

A carne que
se enreda
de carne
as bestas
revolvem-se
no instante
eterno
a fome
somos imortais
como um louco
que venera
a verdade.


Alejandra Flores Bermúdez

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Ode an die Freude (Choral)


Imagem partilhada do mural de Ivo Machado
German original[10]English translation
O Freunde, nicht diese Töne!
Sondern laßt uns angenehmere an stimmen,
und freudenvollere.
Freude! (men's chorus: Freude! )
Freude! (chorus again: Freude! )
Oh friends, not these tones!
Rather, let us raise our voices in more pleasing
And more joyful sounds!
Joy! (Joy!)
Joy! (Joy!)
Freude, schöner Götterfunken*
Tochter aus Elysium,
Wir betreten feuertrunken,
Himmlische, dein Heiligtum!
Deine Zauber binden wieder
Was die Mode streng geteilt;
Alle Menschen werden Brüder,
Wo dein sanfter Flügel weilt.
Joy, beautiful spark of the gods*
Daughter of Elysium,
We enter, drunk with fire,
Heavenly one, your sanctuary!
Your magic reunites
What custom strictly divided.
All men become brothers,
Where your gentle wing rests.
Wem der große Wurf gelungen,
Eines Freundes Freund zu sein;
Wer ein holdes Weib errungen,
Mische seinen Jubel ein!
Ja, wer auch nur eine Seele
Sein nennt auf dem Erdenrund!
Und wer's nie gekonnt, der stehle
Weinend sich aus diesem Bund!
Whoever has had the great fortune
To be a friend's friend,
Whoever has won a devoted wife,
Join in our jubilation!
Indeed, whoever can call even one soul
His own on this earth!
And whoever was never able to, must creep
Tearfully away from this band!
Freude trinken alle Wesen
An den Brüsten der Natur;
Alle Guten, alle Bösen
Folgen ihrer Rosenspur.
Küsse gab sie uns und Reben,
Einen Freund, geprüft im Tod;
Wollust ward dem Wurm gegeben,
Und der Cherub steht vor Gott.
Vor Gott!
Joy all creatures drink
At the breasts of nature;
All good, all bad
Follow her trail of roses.
Kisses she gave us, and wine,
A friend, proved to the end;
Pleasure was given to the worm,
And the cherub stands before God.
Before God!
Froh, wie seine Sonnen fliegen
Durch des Himmels prächt'gen Plan,
Laufet, Brüder, eure Bahn,
Freudig, wie ein Held zum Siegen.
Glad, as His suns fly
Through the Heaven's glorious design,
Run, brothers, your path,
Joyful, as a hero to victory.

Seid umschlungen, Millionen!
Diesen Kuß der ganzen Welt!
Brüder, über'm Sternenzelt
Muss ein lieber Vater wohnen.
Ihr stürzt nieder, Millionen?
Ahnest du den Schöpfer, Welt?
Such' ihn über'm Sternenzelt!
Über Sternen muss er wohnen
.
Be embraced, millions!
This kiss for the whole world!
Brothers, above the starry canopy
Must a loving Father dwell.
Do you bow down, millions?
Do you sense the Creator, world?
Seek Him beyond the starry canopy!
Beyond the stars must He dwell.
Finale repeats the words:
Seid umschlungen, Millionen!
Diesen Kuß der ganzen Welt!
Brüder, über'm Sternenzelt
Muss ein lieber Vater wohnen.
Seid umschlungen,
Diesen Kuß der ganzen Welt!
Freude, schöner Götterfunken
Tochter aus Elysium,
Freude, schöner Götterfunken
Götterfunken!
Finale repeats the words:
Be embraced, you millions!
This kiss for the whole world!
Brothers, beyond the star-canopy
Must a loving Father dwell.
Be embraced,This kiss for the whole world!
Joy, beautiful spark of the gods,
Daughter of Elysium,
Joy, beautiful spark of the gods
Spark of the gods!

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