2012-04-30

Imitação do Outono




Se é um tronco posso imitar-lhe a robustez
e copiar-lhe o castanho forte;

Se é uma raiz posso pedir-lhe a força
e ligar-me veementemente ao chão; somos irmãs.

Depois virá Zéfiro e levar-me-á nas folhas douradas,
abanando-me os ramos mansamente.

Com elas irei, asas sábias de aves migratórias,
ou tapete estaladiço sob os pés de meninos em corrida.




"Elipse"

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Olhares de Pedra





Photo by Misha NoghaBlack Cats are NOT Bad Luck

Olhares de Pedra


Todo o caminho para os deuses é um labirinto
Percorrê-lo pode demorar a vida toda
Para ter como prémio a pedra dos olhos.


"Elipse"
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Tempo




Vestiu-se de folhagem o Outono e era verde o sol nos intervalos.
Percorríamos ainda os labirintos em busca de deuses impossíveis.
Ficou suspenso o tempo enquanto as estações se sucederam.

"Elipse"
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Se alguma coisa rompesse a penumbra

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


A mão que escreve tem a mesma exigência que macera a alma
como se fosse uma respiração mal conquistada
ou um coágulo maldito a bloquear a veia
que pulsa avassalando cada noite;

Nada me merece a vista; nada me aquece o frio dos olhos;
nada me surpreende a lassidão do estar,
nem tão pouco veneno que corre em regatos
ou a rosa branca pendente dos espinhos

Uma avenca rompe da fenda dos tijolos
e eu sinto-lhe o contorcer da força
como um pulsar exigente; o veneno da beleza
invadindo a penumbra que flagela a vida.




"Elipse"

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As cariátides


Photo by Esradan for  Resim & Fotoğraf


Sem cabeça seria apenas corpo;
corpo flexível, arrumado, curvo
corpo em movimento, girassol abrindo.

Sem cabeça não me deitaria fora
todos dias ao final da tarde
para no dia seguinte acordar fingindo.




"Elipse"

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Assimetrias

Photo by Emira for Resim & Fotoğraf


São ainda muitos os dias em que abençoamos o sol; contudo não conseguimos evitar as madrugadas frias, quem sabe se por um certo finalizar trazido pelo avançar dos anos, gelos mal distribuídos, quando antes era o calor a derreter os excessos. Lacrimeja um pouco a pálpebra, defendendo-se calada, e se fechamos os olhos nem tão pouco é para conservar o calor do lado de dentro mas para os poupar apenas.
Desconstrução maldita, diria a pessoa, enquanto o pintor se deliciava no desmantelar da realidade.
Criação, repartição, gozo fiel, sem tirar nem pôr; ou punha as cores, o artista e triangulava as formas de fugida.

No fechar dos olhos encerramos a bênção do sol que agora é um desejo, mais do que o calor que regenera, e pedimos ao dia seguinte que nos ceda um milímetro de espaço para minimizar a desengraçada e pungente assimetria dos gestos.



"Elipse"
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(Im) Perfeições

Photo by Emira for Resim & Fotoğraf




Os romances chegam sempre ao fim demasiado depressa
e os heróis estão caídos sob o efeito de um calor precoce;

No horizonte repousam as horas
e as esperas ansiosamente lentas
agitam-se num rumor de águas revoltas.


Os rios correm sempre para o mar demasiado depressa
E os peixes contorcem-se silenciosamente;

No céu as nuvens desfazem-se outra vez
sem forma que as contenha
nem rumo que as empurre.
"Elipse"
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Contemplação






Photo by Emira for
Resim & Fotoğraf




Ela tinha pena que do poço não jorrassem as palavras todas mas agora não podia, o momento era demasiado belo e a força das palavras fechá-lo-ia ao encanto da contemplação.
Foi em silêncio que lhe sentiu a pele fresca e, de olhos fechados, sorveu devagarinho o cheiro a menta.
As estrelas agitaram-se ao som da voz que entoou as sílabas onduladas da canção.
Depois nasceu o dia.


"Elipse"
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Regresso

Photo by Resim & Fotoğraf


Trago uma mala de encantos sem fecho nem cadeado, um cheirinho a noites quentes, um colorido

nos olhos, uma pulseira de cobre e uns pendentes caídos dos cabelos encrespados pelo vento da

planura, pelo sol que no deserto nos atravessa a loucura e nos encanta o sorriso copiado de outros

olhos; trago tâmaras e sons, vozes meladas, odores; trago rosas do deserto misturadas com o

mar; encantamentos de azul, mil e uma noites só numa.

Trago uma mala de encantos mas deixei o coração perdido nos palmeirais.



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Intervalo





Photo by Elipse



Desinquietou-me o silêncio e a penumbra dos meses frios.

Ocupou-me o pensamento, severamente gasto em coisas inúteis como a tristeza.

Aconchegou-se a mim, ou fui mais eu, saída da sombra, em busca do tempo que ficou atrás das ousadias.

Por momentos fechei a porta ao mundo e deixei adensar-se a névoa dos incensos.

Olhos nos olhos, tínhamos o corpo todo à espera e o fascínio triunfava.


"Elipse"
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Culto muito Antigo




Da primeira vez louvei-te os olhos
Se te lembrares ainda soa a minha voz surpresa
Ante a frieza aparente do teu rosto;

Mais tarde apreciei-te a divindade
Mas era em mim que morava a tentação;

Em ti nada sobrava; nada se deixava amar
Embora o fogo vivo dos silêncios
Chamasse o verso musicado do poema.

"Elipse"

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Claro/Escuro








Photo by Resim & Fotoğraf

Leio no céu o apelo, quase sempre
Indiferente às vozes de quem passa
Basta-me, agora, saber por onde vou.
Entre o preconceito e a asas
Resolvo a dimensão dos dramas
Dando passos certeiros
Ante a perplexidade dos que não ousam.
Dói-me apenas a pequenez dos dias
E a obrigação de colher frutos verdes.




"Elipse"

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Memórias Vivas



Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


Só sei que a memória nunca se embaciou, nem nos dias mais turvos nem nas noites mais brancas; hora a hora afaguei as lembranças, mesmo as dos lugares mais pálidos ou as dos tempos mais azafamados. E foi no presente daqueles dias – os dias que hoje ainda respiram na penumbra – entre quartos vazios e o luar abandonado, que sorvi o luto, gota a gota, bebendo as pedras, arranhando as vísceras e sangrando o suficiente para saber que quando o tempo passa sobre as horas de todos os presentes, a alma, solta do peso, cola-se ao corpo e chama-lhe matéria fúnebre.
Só sei que já me curei do teu cheiro dentro das paredes e do rumor da tua presença nos degraus da minha casa. Quando falo de amor, se falo, recuo muito mais do que esperava e mesmo assim já não sei preencher espaços vazios. É como se falasse de uma história de outras personagens e a fechasse depois numa lombada descosida, bolorenta.
Só sei que já não é a mesma lua, a que se levanta do lado do jardim e depois sobe para o centro dos meus olhos que antes assustavam o silêncio frio das madrugadas. E há dias em que já não sei se era o teu perfil que eu esperava, ou os nós dos teus dedos a baterem ao de leve na janela da cozinha; ou se esperava o perfil do teu perfil.

Se pudesses voltar não haveria nada de meu que te aguardasse junto à porta, esse lugar onde demorei a perceber a verdade da tua ausência.
Se pudesses voltar eu não voltaria a esse corpo que, sendo meu, me aleijava nos abraços; não voltaria ao silêncio amarfanhado das cedências e menos ainda ao desconforto das partidas.
Se pudesses voltar eu diria que te inventei; porque sempre inventamos a perfeição.








"Elipse"

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Entrando em Dezembro...




Não me dêem flores nem tecidos vermelhos.
As flores envelhecem em jarras depois do momento em que aqueceram as mãos.
As cores vivas alegram as noites e depois gelam, caídas pelo chão.

Antes não as ter …

Prefiro a realidade bruta das palavras, a cólera dos acentos agudizando a voz, o engaste da sílaba na frase espontânea, o gemido abraçado ao frio da madrugada, a banalidade que tilinta suave nos ouvidos, o murmúrio soprado sobre a luz de uma vela, o lugar-comum enraizado no espinho da inquietação ou o dizer acenado no instante da partida.


Não há flores que preencham os espaços gelados do silêncio.




"Elipse"

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Em Dezembro...


Photo by Resim & Fotoğraf



Devastam-me os silêncios que atravessam as tardes de Dezembro
e a pressa com que o sol se põe quando aparece;

Afunda-me a luz crua da razão que traz o tempo e o projecta sobre árvores
de ramos completamente despidos e sem pássaros.

Antes me surpreendessem as noites mas nem isso;
nem tão pouco o reflexo no vidro da janela que não dá para lugar nenhum;

Contudo as manhãs prometem dias longos
ou é talvez o nada a convertê-los em intermináveis labirintos.





"Elipse"

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Outono

Photo by Emily Cape for Resim & Fotoğraf

O Outono chegou, húmido e frio; os jardins cobriram-se de uma cor de ferrugem, e as florestas negras, direitas como ferro, mancharam-se, aqui e além, de castanho; um vento molhado soprava, empurrando para o rio pequenos ramos cortados. Todas as manhãs, chegavam ao alpendre carros cheios de linho, puxados por cavalos macilentos.
in Máximo Gorki, A Família Artamonov


Vinham num trotear desengonçado, eles e o mundo todo, queixosos de um cansaço sem sol, que homens e bichos sofrem da mesma privação, uns mais na alma e outros mais no corpo, quando a ferrugem cobre os jardins e o vento sopra molhado e fustiga o caminho que traz o rio às manhãs e as cobre de névoa.
E eu, sentada no alpendre, esperava a nesga de sol que me tirasse da letargia e me trouxesse as memórias. A garota pusera-me o xaile sobre as pernas e a bengala ao alcance da mão. Disse-me para não sair dali, que o chão estava escorregadio e o meu equilíbrio já conhecera melhores dias. Um lagarto entre as frinchas, pensava, enquanto esticava as pernas e olhava os troncos das árvores, direitas como ferro em desafio humilhante à minha curvatura.
Todas as manhãs a cor da ferrugem dos jardins me recordava a impossibilidade da renovação. Porque eu sabia, entre as muitas coisas que eles diziam que eu esquecia e perguntava repetidamente, eu sabia que havia um Outono que chegava húmido e frio e se instalava, teimoso, nos meus ossos deformados, empurrando para o rio pequenos ramos cortados à minha lucidez. E o que ficava era um esqueleto desarticulado, que me fazia repetir a pergunta todos os dias: e ele, a que horas chega?




"Elipse"

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Batem-me à porta e eu estou sentada




Photo by Flores


Batem-me à porta ao fim da tarde, sempre à mesma hora e eu não vou; sentada me contenho, apesar do sonho correr veloz até ao infinito e regressar ao quadrado gasto dos meus olhos, paredes brancas sem adornos e eu como flor plantada de raiz.
Batem-me à porta ao de leve, mesmo que o ferro toque o ferro, que os materiais ganham veludo quando lhes ordenamos o silêncio e ficamos presos na raiz dos pés e nas amarras de outros fios invisíveis que as paredes teceram no quadrado do silêncio.
Batem-me sempre à porta os fios das letras, com mão fechada em punhado de palavras e eu aguardo a noite, suspendo o ímpeto e fico sentada jogando as peças como se a vida fosse ainda a primeira onda no areal da manhã.
Batem-me à porta os caminhos de um mundo abraçado à vontade dos que podem partir e o fecho não descola da ferrugem do estar.




Elipse

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Perspectiva




Photo by Resim & Fotoğraf


Buscar a chave em círculos e cercos
Fechar as margens e estancar o pranto, o pântano, o silêncio
consumado na pálpebra cerrada
Trancar as sílabas na perfeição do dia,
Enfrentar o íngreme nocturno
Esmagar a raiva, anular o verbo descarnado
desmembrado, vazio, áspero.
Chave. Lugar do fim.

Ou o princípio?




"Elipse"

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Palavras (ainda) com Chuva


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf




Já se inclina para mim a melodia
embora o lastro pese ainda, trágico, incómodo, flagelante
e as palavras tenham chuva sobre as sílabas
dizem os poetas que as águas cantam os amores e correm calmas
mas nem sempre as janelas se abrem sobre os jardins;
às vezes o verso é demasiado profundo e cava
a própria natureza grita e as pedras rugem
a lembrar que abaixo há ainda a humana condição
e só depois a madrugada;
ou o uivo das folhas que o vento arrasta antes de derrubar as pontes
e só depois o regaço onde se curam as feridas.




"Elipse"

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Universos Vazios



Imagem partilhada por Sandra através de Resim & Fotoğraf


Sedes antigas. Ou antes, nunca uma sede igual a esta, nunca uma ânsia a agigantar-se assim na corrente dos dias, nunca uma desordem tão perfeita.
Sedes muito amplas e muito antes de todas as coisas perderem o sentido e o reverso; sedes de espuma e terra e oceano e astros.
Como posso ignorar a narrativa se ela e só ela me traduz o nunca de todas as coisas, o silêncio-rosário a correr entre os dedos.
Evadindo-se o pulso e o pulsar, restam as folhas de papel e as pausas, umas e outras matéria do mesmo universo vazio.




"Elipse"

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O poema da Dor


Photo by Emily Cape for Resim & Fotoğraf 


Trazes contigo toda a nostalgia e toda a dor e o meu entendimento ainda vive na penumbra.
Trazes a cruz dos dias e das noites e a mancha amarga da tristeza que os deuses não ouvem; o rastejo da flor esmagada e o pomar prematuramente seco, o dilúvio de uma chuva que secou na foz e a nuvem transfigurada do silêncio agredido.
Trazes contigo o medo e sobre ti o cardo maduro, as palavras da resignação e o porquê dos sentidos sempre acesos.
Transportas um penhasco roubado às marés vivas e uma espiral de pesadelos rubros, a lápide da força e a prudência dos segredos.
Migram em ti as asas e as penas, a folhagem primaveril e o pilar quebrado, a robustez da arquitrave e a triangulação por apagar.
Que serei eu face à variação devoradora do teu sentir? Que farei no terreno da fronteira com a dor?
Não sei se deveria ter entrado mas já me vi em aparição na encosta onde os cardos te ferem.
Serei caminho ou luz ou tão apenas mão encostada à tua.

"Elipse" 

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Precipício


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


coragem e desafio ou apenas rumor de asa sem traçado de rumo nem fronteiras;

colina de viço e delito ou apenas natureza fulgurante em dia de primavera;

tinir de silêncios e melancolia de muitos lutos ou apenas lábios cerrados a pedir acordes novos;

poema novo ou talvez muito mais do que apenas solidões e ecos presos nas margens enquanto as águas correm no leito sem desvios;

tempo de hospedar no peito o sonho...

ou apenas tempo de partir...

"Elipse"
in http://osentidodaspalavras.blogspot.pt/

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Saltos em Corrida


Photo by Resim & Fotoğraf 


Era para evitar o precipício, nem que fosse no sonho mal dormido.

Acabei sentada no fio dos gumes.

Era para usar sapatos rasos e caminhar serena.

Acabei ofegante na inclinação do plano.

Era para deixar o registo de cada queda.

Sem memórias não podia ceder ao pudor ou estranhar as repetições.

Era para não forçar nada a não ser a salvação.

Arrastei todas as águas e todos os rochedos.

Ao ficcionar corria o risco de apagar as marcas escondendo-me nas páginas como se disfarçasse a identidade.

A consequência é morrer na vertigem por não saber dosear os momentos.




"Elipse" de http://osentidodaspalavras.blogspot.pt

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JUNTO À LUZ


Photo by 

ольга гудима



que fracturada vem do alto

com débil ferocidade:


a neve que entre- dois-

crepúsculos trocava blafésmias,


bem nossa

é a palavra que ali se acrescenta,

e sem chama, os alvos,

quando lembranças não desejadas trazem dor,

os tão calados,

de súbito

caem

aqui.


Então será preciso suspender o cansaço

por horas, solidão.



( neige-en-dedans blancheur

occultée

où tourne le témoin

JEAN DAIVE)




Arnau Pons

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NOITES QUE FABRICAS



 









rigorosas;

as mãos na

clara-sementeira das centáureas

o sangue derramado exposto

ao vento,




Tantas estrelas quantas podes abarcar,

tanto negrume de nuvens, tantos

desastres de chuva, as imagens do mundo

destituídas,




tudo isto se abre,

decresce

extingue-se apenas




dentro da cesura, um corte

de miséria com

os tenros anos no cardal,

de novembro a novembro,

dentro das gaiolas,

como os tão vãos

ofiúros da videira, com a dormideira,

junto aos duplos reinos:




entre os dedos toda

aquela escuridão que estagna, eterna;

mais nada.




Arnau Pons

in "A Palavra que ofusca"

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a palavra que ofusca



Photo by Resim & Fotoğraf

CHEGAS, acreditas, ao fim,

que a água obtura

com a sua espectral maneira

do não dizer,

e lanças-te aí

para respirar a falta de ar,

fendida pelos vivos

tremores da emanação concêntrica

formada dentro de ti. Então voltas ao barro;

sobre os seixos crescem

os flocos de ninguém que lês e fazes teus.

Atravessas a hora,

a cicatriz gasta daquele olho;

persistes: dele extrais,

a pouco e pouco, a luz viscosa

da adormecida estrela que abandonas,

sonhando,

num ramo incertamente escrito.


Um peixe morto, desolhado,

rasteja pelo abismo, seguindo a invertida

Via Régia

rumo à promessa que quebraste.

Dois reis giram à tua volta;

és posto

fora

de todos os lugares,

e a ti mesmo te investes como rei.




Arnau Pons

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2012-04-29

RISCAS AS ÁGUAS







Photo: Lim Eng Hoo para Project Noah










Riscas as águas,

sob o umbigo, encerrado,


puxa-te a mão para um céu que chora,


e sais


entre dedos sedentos do teu negrume,


lodo fétido,


festa louca e de viver tão farto;


passas à beira das árvores, gritas


o monte de visco, a feia besta


que nasceu contigo;


estremece a água, dentro da casca


que te afogou retorces-te


qual morte dentro do olho que te criou.


De um mau sonho, de uma escuridão,


agora cospes fogo e escuridão, escuridão;


amendrontas-te, procuras


como uma serpente aquele mamilo de rocha:


até secá-lo.


Tens amargura no amargo da boca.


Tens o cheiro do pai.






Arnau Pons

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Camille Saint-Seans: O Cisne, de Carnaval des Animaux



Imagem: " O bosque de Berkana" partilhada por Sandra para Resim & Fotoğraf


Erguemos o sonho em cinco dias, tivemos o poder
da ilusão, a areia e o vidro partilharam
este elo de múltiplas interrogações, a eternidade
que se implanta na parte mais secreta do olhar e atravessa
a superfície da verosimilhança para que algo se destrua e frutifique.
Pensámos o sonho e acrescentámos ao silêncio algum fervor,
o sonho produziu pássaros e peixes num primeiro momento,
mais tarde alguns cavalos, agora
este silêncio que acrescenta à magia
o sobressalto e a fragilidade. Eis
o estremecimento, descemos pela sombra
e encontramos outras figuras adjacentes ao rosto, lágrimas
de cristal, asas azuis, a esfera luminescente
onde uma árvore evolui, evoca,
equidistante,
a arte do augúrio.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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Johann Strauss: Wiener Bonbons

Photo by Resim & Fotoğraf

Escutando o que escuto é impossível
deixar de verter em sortilégio o que o silêncio
vem entregar-me quando a noite principia.
Produz o encantamento esta desordem,
tão próxima da luz e do deserto.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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Franz Schubert: Standchen




Photo by Resim & Fotoğraf

Os pensamentos que me assaltam nesta madrugada
fria de Setembro
não estão longe da distância dos teus lábios
e do rumor suave das tuas mãos que tocam
as insígnias de Deus sob o dorso da terra.

Se olhasses para mim verias nos meus olhos
a lancinante expressão da solidão
e a esperança sem qualquer indecisão
de que é possível o teu nome ser maior
que o céu que me vela o silêncio da noite.

Amar-te desde sempre é mais que uma forma de estar vivo
e dar expressão à divindade que trago comigo
desde que atravessei a fronteira
que entre o mar e o mar estabelece
a luz mais verdadeira.

O mais sequer é tempestade que neste coração sangra,
ou dúvida subtil ou estremecimento,
sentindo o alvoroço em que te sinto
apenas peço que sejas tu o assombro
e me devolvas enfim a harmonia.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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2012-04-28

TERRA VERTIDA ONDE MENOS

photo by Flores


Estamos de passagem mas em caso algum
esqueceremos o orvalho (o rosto dela
húmido de luz). Os nossos poros ossificaram
o sangue, é o que a terra diz:
- o alcatrão não é o meu vestido de luto,
mas a pele irrespirável da minha carne.
Agora quem vai querê-la por noiva?
As grinaldas estão cheias de poeira e a
marcha nupcial desafina as estrelas.
O sol feito de gasolina na nossa pele
de verão apodrece depressa nas rugas.
Ainda ris por entre as frestas negras
e deixas entrever outro destino nas folhas
de chá. Mesmo assim o teu cadáver é belo
entre as flores do campo que resta
e o fumo dos incêndios que te cinzam.
O orvalho é uma palavra dócil (pensa ela).
À primeira hora quando os despojos quedam
invisíveis ainda me extasias como a uma princesa
a florar a erecção inicial antes da radiografia pulmonar.
Terra, é por nós que choramos quando te morremos?


Rosa Alice Branco
In Gado do Senhor, 2011

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AO VER AS COISAS


Photo by Flores

Ao ver as coisas com o seu instável
halo sobrevivente, acaso morto
porque já não o vê quem antes via,
a dor de olhar trespassa

e não apaga a jovem labareda
que é delas a não vida e foi a vida
dos que jovens as viram e através
de mim vêem ainda

Gastão Cruz, in «Escarpas»

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Sou o que sabe não ser menos vão



Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf

«Sou o que sabe não ser menos vão
Que o vão observador que frente ao mudo
Vidro do espelho segue o mais agudo
Reflexo ou o corpo do irmão.
Sou, tácitos amigos, o que sabe
Que a única vingança ou o perdão
É o esquecimento. Um deus quis dar então
Ao ódio humano essa curiosa chave.
Sou o que, apesar de tão ilustres modos
De errar, não decifrou o labirinto
Singular e plural, árduo e distinto,
Do tempo, que é de um só e é de todos.
Sou o que é ninguém, o que não foi a espada
Na guerra. Um esquecimento, um eco, um nada.»

Jorge Luis Borges, in «A Rosa Profunda»

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sim






Photo by Resim & Fotoğraf




sim. foi por um beijo em simples vendaval que morri. fazias-me setembros como se maios fossem na errante navegação da luz e da arquitectura do silêncio. era tudo fruição ao lado da sombra e nada me adivinhava o inverno de hoje. um desastre calmo e inevitável ao lado de uma epígrafe como se o enigma da vida não se expirasse de repente. e sim. a distinção entre o talvez e o nunca é agora um sentido instável. irredutível. e marca. e incompatibiliza-nos face à dispersão. é esta a diferença entre a pergunta omissa e a resposta explícita.________um murro a desatar os nervos e a abotoar o grito em rajadas de estrelas cerâmicas e in.serenas. a boca amarrada ao soalho do quarto estupidamente branco onde a parte é o todo sem idade certa para arder sofrer rir e vir ao de cima do lodo em pontadas agudas de cores e formas disformes e vorazes. flechas cegas a florirem as trevas. sim. foi por um não que me curvei na altíssima crueza do amado beijo sabor a gelo.e se o nunca for um selo fica o perfume do caos o pé de mármore e estarei só nessa hora mais de cal onde tudo não passou de um talvez.




Isabel Mendes Ferreira

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2012-04-27

Poemas de Caravaggio - Três elegias (III)





Photo by Beautiful Japan

3.
Não sei como pode um homem desolado conduzir
os exércitos e dar à emboscada um sentido preciso
no rumo do combate. Não sei como posso
ainda erguer-me e sentir o sol na cara,
ou ver, ao longe, os duzentos cavalos a desbravar
a montanha e sentir, com eles, o coração
acelerado e triunfal, não sei como posso
sentir a aljava de buxo nos meus dedos
ou desmontar a tenda na hora do regresso
sem que saiba de que sono e ausência precaveste
os mais íntimos enigmas que o teu corpo
fechou sobre ti mesma. Não sei como tolerar
o intolerável e ir à guerra e sentir vertigens
pela falta que me fazes cada dia e noite.
Não sei como pode a água ser clara e a trepadeira
florir assim, com luz vermelha, se a dor que me mantém
é a tua sombra imóvel, e inviolável, nesta casa. Não sei
como entender o que grita e ruge e se amotina
no meu peito porque não voltarás a encher o meu bornal
nem estarás comigo a ver a bruma densa
sobre os campos de feno. Não sei, não sei
sequer como erigir uma elegia em que te possa
lembrar na desvelada ternura que entregaste
aos prisioneiros que fiz na última batalha.
Não sei como suprir o que esta perda
me trouxe de frio e maldição, ou como adormecer
contigo na memória e a garganta áspera
do vinho negro e doce da libação amarga.

Amadeu Baptista
(in Poemas de Caravaggio, Maia, Cosmorama, 2008)

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Poemas de Caravaggio - Três elegias (II)




Imagem de RIo-Fotos partilhada também por Sandra para Resim & Fotoğraf


2.
Claro, o mármore transpõe o teu rosto para o tempo
e deixa-te a sorrir pelos séculos, sobretudo nas estações
do ano em que a luz é mais densa e a memória é, ainda,
um indício de como se trabalha na terra e como a terra
nos trabalha a nós. No mármore ficam todas as sedimentações,
todas as maçãs, todos os ritmos em que o apaziguamento
recobrou os sentidos e te leva pela casa a altas horas
da noite a murmurar canções indizíveis, às vezes coisas obscenas,
que tu cicias com um sorriso cândido quando há gente em volta
a insistir em ouvir a tua voz. No mármore ficam os filhos
que tiveste ou lamentaste não ter e, também, as noites de luar
em que te chamas madrigal e invocas os anjos para que sejas
tu mesma um anjo. E ficam os mantimentos que escolheste anos a fio,
a tua sombra magnífica sobre o fogão, e o teu perfume,
esse perfume dourado a conjecturar sobre o amor
como se o amor fosse não só uma essência mas todos os jardins
do mundo. Claro, o mármore cinge-te às coisas que só tu pudeste
ser, mas incredulamente, como tu dizes, e continuas a ser
nesta irremediável dimensão da pedra em que tudo se transforma
para que a sua fria dureza manifeste algo idêntico ao teu corpo
e tu te reencaminhes na eternidade sem outra vocação
que a de voltares a nascer logo que possível para vires mimar
o gato, as flores, a neve quase azul da primavera e, depois, reacenderes
a lareira com os teus finos gestos de adoradora do sol.

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Poemas de Caravaggio - Três elegias (I)


Photo by Resim & Fotoğraf.



1.
É em manhãs assim que não sei como escrever
elegias, vou ao ágora do poema e só encontro
cães, e os cães estão sôfregos pelo que paira no ar,
a extensa litania que submerge a cidade e irrompe
do sentido para prevalecer. É uma manhã napolitana,
com fumarolas e lâmpadas a crescer pelas praças,
e os cães estão a céu aberto a marcar com as patas
o exíguo território a que se confinam os mortos,
os mortos amontoados nas ruas, como se fossem
uma barreira para o mar, uma barreira de coral
com pés e mãos, e bocas hiantes no sobressalto
do mundo. É em manhãs assim que alguma coisa pica
o sangue, e me lembro de ti um pouco antes de seres
definitivamente mulher, e és uma rapariga camponesa
a enumerar as ondas, a descer sobre os campos
onde todas as batalhas decorrem, todos os clarões.
És hoje esta elegia, mas não sei, ainda, como hei-de
escrever-te, permaneces no templo e guardas na luz
o teu contorno marítimo, onde há colinas nuas
e arbustos pequenos como os teus dentes miúdos.
Os cães aguardam, e uivam, e rosnam, e é esse o sinal
para o arrebatamento, vem um braço de vento tocar-te
o rosto e sou eu que toco os teus cabelos, numa carícia perfaço
um juramento em que estás presente, ainda que estejas
ausente, e só saibam os cães onde, e como, procurar-te.
Encontro-te, talvez, um pouco acima do céu, um pouco abaixo da terra,
encontro-te exactamente onde Nápoles se olha no escuro
e onde tenho a boca em fogo para pronunciar o teu nome,
ainda que em manhãs assim não saiba como escrever
elegias e a partida seja um rio intranquilo em que tudo
te lembra. Eu e os cães ouvimos vozes nocturnas, e, de repente,
apareces, e a manhã estremece, e vibra, muito branca,
sendo que os cães sabem tudo de ti e eu te choro
sob esta sombra, ainda que o sol brilhe sobre o mar,
ainda que a janela entreaberta enquadre a nitidez de uma silhueta
com o teu rosto, e eu não seja mais que um navio votivo, perdido a jusante.

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2012-04-25

Grândola, vila morena




Grândola Vila Morena
Terra da fraternidade 
O povo é quem mais ordena 
Dentro de ti, ó cidade 

Dentro de ti, ó cidade 
O povo é quem mais ordena 
Terra da fraternidade 
Grândola, vila morena 

Em cada esquina um amigo 
Em cada rosto igualdade 
Grândola, vila morena 
Terra da fraternidade 

Terra da fraternidade 
Grândola, vila morena 
Em cada rosto igualdade 
O povo é quem mais ordena 

À sombra duma azinheira 
Que já não sabia a idade 
Jurei ter por companheira 
Grândola a tua vontade 

Zeca Afonso

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Maria


 Photo by Kathy Salerni partilhada por Sandra através de Resim & Fotoğraf

Nascida no monte
À beira da estrada
Maria
Bebida na fonte
Nas ervas criada

Talvez
Que Maria se espante
De ser tão louvada
Mas não
Quem por ela se prende
De a ver tão prendada

Maria
Nascida do trevo
Criada na trigo
Quem dera
Maria que o trevo
Casara comigo

Prouvera
A Maria sem medo
Crer no que lhe digo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo
Maria
Nascida no trevo
Beiral do mendigo

Maria
De todas primeira
De todas menina
Maria
Soubera a cigana
Ler a tua sina

Não sei
Se deveras se engana
Quem demais se afina
Maria
Sol da madrugada
Flor de tangerina
Maria
Sol de madrugada
Flor de tangerina
_____________________________

Letra e música de Zeca Afonso
Tema de 1964,
dedicado a Zélia, sua segunda mulher. 


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Endechas a Bárbara Escrava


Photo by Resim & Fotoğraf


Aquela cativa
Que me tem cativo
porque nela vivo
já não quer que viva
eu nunca vi rosa
em suaves molhos
que pera meus olhos
fosse mais fermosa

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar

Uma graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.
Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E pois nela vivo,
É força que viva.
________________________

(Luis de Camões/ José Afonso)


 
  

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Deus Te Salve, Rosa



Photo by Resim & Fotoğraf

Deus te salve, Rosa
lindo Serafim
Tão linda pastora
que fazes aí?

Que fazes aqui,
no monte c'o gado?
Mas que quer, Senhor,
nasci pr'a este fado.

No monte c'o gado,
corre grande p'rigo
Quer a menina
venir-se comigo?

Mas não quero, não, não,
tão alto criado
de meias de seda
sapato delgado.

Sapatos e meias
tudo romperei
por amor da menina
a vida darei.

Vá-se ó magano
Não me cause mais ódio
Que há-dem vir meus amos
Trazer-me o almoço.

Que venham os teus amos
Isso é o que eu gosto
Quero que eles vejam
Que eu falo com gosto.
______________________________

Popular Trás-os-montes/José Afonso

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Coro dos Caídos



phto by Emily Cape for Resim & Fotoğraf



Cantai bichos da treva e da aparência
Na absolvição por incontinência
Cantai cantai no pino do inferno
Em Janeiro ou em Maio é sempre cedo
Cantai cardumes da guerra e da agonia
Neste areal onde não nasce o dia

Cantai cantai melancolias serenas
Como trigo da moda nas verbenas
Canta cantai guisos doidos dos sinos
Os vossos salmos de embalar meninos
Cantai bichos da treva e da opulência
A vossa vil e vã magnificência

Cantai os vossos tronos e impérios
Sobre os degredos sobre os cemitérios
Cantai cantai ó torpes madrugadas
As clavas os clarins e as espadas
Cantai nos matadouros nas trincheiras
As armas os pendões e as bandeiras

Cantai cantai que o ódio já não cansa
Com palavras de amor e de bonança
Dançai ó Parcas vossa negra festa
Sobre a planície em redor que o ar empesta
Cantai ó corvos pela noite fora
Neste areal onde não nasce a aurora



José Afonso

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Elegia



Photo by Resim & Fotoğraf

O vento desfolha a tarde
O vento desfolha a tarde
Como a dor desfolha o peito
Como a dor desfolha o peito.

Na roseira do meu peito
Na roseira do meu peito
Senhora meu bem fermosa
Senhora meu bem fermosa.

Vai-se a tarde ficam penas
Vai-se a tarde ficam penas
Na roseira do meu peito
Na roseira do meu peito.

Senhora por quem eu morro
Senhora por quem eu morro
Senhora meu bem fermosa
Senhora meu bem fermosa.
_____________________________

(Luís de Andrade/José Afonso)

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Coro da Primavera

photo by Emira for Resim & Fotoğraf

Cobre-te canalha
Na mortalha
Hoje o rei vai nu

Os velhos tiranos
De há mil anos
Morrem como tu

Abre uma trincheira
Companheira
Deita-te no chão

Sempre à tua frente
Viste gente
Doutra condição

Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

Livra-te do medo
Que bem cedo
Há-de o Sol queimar

E tu camarada
Põe-te em guarda
Que te vão matar
Venham lavradeiras
Mondadeiras
Deste campo em flor

Venham enlaçdas
De mãos dadas
Semear o amor

Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

Venha a maré cheia
Duma ideia
P'ra nos empurrar

Só um pensamento
No momento
P'ra nos despertar

Eia mais um braço
E outro braço
Nos conduz irmão

Sempre a nossa fome
Nos consome
Dá-me a tua mão

Ergue-te ó Sol de Verão
Somos nós os teus cantores
Da matinal canção
Ouvem-se já os rumores
Ouvem-se já os clamores
Ouvem-se já os tambores

José Afonso

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Cantiga do Monte



photo by Resim & Fotoğraf


Fragrância morena
Portal de marfim
Ondina açucena
Chamando por mim

Cantiga do monte
Clareira do ar
Dançando na nuvem
Mudando em mar


Na flor da montanha
Na espuma a cair
Nos frutos de Agosto
Na boca a sorrir

Na crista da vaga
Tormento alonguei
No vento e na fraga
Só luto encontrei

Abriram-se as velas
Mal rompe a manhã
Na luz e nas trevas
Foi-se a louçã

Ai húmida prata
Meu sonho sem ver
Ai noite de Lua
Meu lume de arder


Ó finas areias
Ó clara manhã
Ó rubras papoilas
Da cor da romã

Ó rosto da terra
E abismos do mar
Ouvi o seu canto
De longe a arfar


Abriram-se as velas
Mal rompe a manhã
Na luz e nas trevas
Lá vai a louçã


José Afonso

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Chamaram-me Cigano

Imagem retirada do mural de Li Viana no facebook





Chamaram-me um dia
Cigano e maltês
Menino, não és boa rez
Abri uma cova
Na terra mais funda
Fiz dela
A minha sepultura

Entrei numa gruta
Matei um tritão
Mas tive
O diabo na mão

Havia um comboio
Já pronto a largar
E vi
O diabo a tentar
Pedi-lhe um cruzado
Fiquei logo ali
Num leito
De penas dormi

Puseram-me a ferros
Soltaram o cão
Mas tive
o diabo na mão

Voltei da charola
de cilha e arnês
Amigo, vem cá
Outra vez
Subi uma escada
Ganhei dinheirama
Senhor D. Fulano Marquês

Perdi na roleta
Ganhei ao gamão
Mas tive
O diabo na mão

Ao dar uma volta
Caí no lancil
E veio
O diabo a ganir
Nadavam piranhas
Na lagoa escura
Tamanhas
Que nunca tal vi

Limpei a viseira
Peguei no arpão
Mas tive
O diabo na mão

José Afonso

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Cantares de Andarilho










Imagem retirada do mural de Alice Macedo Campos no facebook

Já fiz recados às bruxas
do caselho à portelada
dei-lhes a minha inocência
elas não me deram nada.

Andei à giesta
ao lírio maninho
na Bouça da Fresta
no Casal Velido
erva cidreira
à erva veludo
na Lomba regueira
no Pinhal do Mudo.

Andei ó licranço
andei ao lacrau
no Monte do Manso
na Espera do Mau
vibra à carocha
ao corujão cego
na mata da Tocha
no rio Lágedo.

Fui andarilho das bruxas
moço de S. Cipriano
já fui morto e inda vivo
vendi a alma ao Diabo.

Era donzel e guardei-me
p'ras filhas da feiticeira
parti-me em metade à loira
noutra metade à morena.

(José Afonso)



 
 

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Balada do Outono












Photo by

Resim & Fotoğraf


Águas

E pedras do rio

Meu sono vazio

Não vão Acordar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto A cantar




Rios que vão dar ao mar

Deixem meus olhos secar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto A cantar




Águas

Do rio correndo

Poentes morrendo

P'ras bandas do mar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto A cantar




Rios que vão dar ao mar

Deixem meus olhos secar

Águas

Das fontes calai

Ó ribeiras chorai

Que eu não volto A cantar



José Afonso

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Canção do Mar


Photo by Emira for Resim & Fotoğraf


Ó mar
Ó mar
Ó mar profundo
Ó mar
Negro altar
Do fim do mundo

Em ti nasceu
Ó mar
A noite que já morreu
O teu olhar

Ó mar
Ó mar
Ó mar profano
Ó mar
Verde mar
Em que me irmano

Em ti nasceu
Ó mar
A noite que já morreu
No teu olhar


Zeca Afonso

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Ó Minha Amora Madura





 Photo by Resim & Fotoğraf

Ó minha amora madura
Diz-me quem te amadurou
Foi o sol, foi a geada
O calor que ela apanhou

(Popular/ José Afonso)

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