2012-04-27

Poemas de Caravaggio - Três elegias (II)




Imagem de RIo-Fotos partilhada também por Sandra para Resim & Fotoğraf


2.
Claro, o mármore transpõe o teu rosto para o tempo
e deixa-te a sorrir pelos séculos, sobretudo nas estações
do ano em que a luz é mais densa e a memória é, ainda,
um indício de como se trabalha na terra e como a terra
nos trabalha a nós. No mármore ficam todas as sedimentações,
todas as maçãs, todos os ritmos em que o apaziguamento
recobrou os sentidos e te leva pela casa a altas horas
da noite a murmurar canções indizíveis, às vezes coisas obscenas,
que tu cicias com um sorriso cândido quando há gente em volta
a insistir em ouvir a tua voz. No mármore ficam os filhos
que tiveste ou lamentaste não ter e, também, as noites de luar
em que te chamas madrigal e invocas os anjos para que sejas
tu mesma um anjo. E ficam os mantimentos que escolheste anos a fio,
a tua sombra magnífica sobre o fogão, e o teu perfume,
esse perfume dourado a conjecturar sobre o amor
como se o amor fosse não só uma essência mas todos os jardins
do mundo. Claro, o mármore cinge-te às coisas que só tu pudeste
ser, mas incredulamente, como tu dizes, e continuas a ser
nesta irremediável dimensão da pedra em que tudo se transforma
para que a sua fria dureza manifeste algo idêntico ao teu corpo
e tu te reencaminhes na eternidade sem outra vocação
que a de voltares a nascer logo que possível para vires mimar
o gato, as flores, a neve quase azul da primavera e, depois, reacenderes
a lareira com os teus finos gestos de adoradora do sol.

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