Poemas de Caravaggio - Três elegias (I)
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É em manhãs assim que não sei como escrever
elegias, vou ao ágora do poema e só encontro
cães, e os cães estão sôfregos pelo que paira no ar,
a extensa litania que submerge a cidade e irrompe
do sentido para prevalecer. É uma manhã napolitana,
com fumarolas e lâmpadas a crescer pelas praças,
e os cães estão a céu aberto a marcar com as patas
o exíguo território a que se confinam os mortos,
os mortos amontoados nas ruas, como se fossem
uma barreira para o mar, uma barreira de coral
com pés e mãos, e bocas hiantes no sobressalto
do mundo. É em manhãs assim que alguma coisa pica
o sangue, e me lembro de ti um pouco antes de seres
definitivamente mulher, e és uma rapariga camponesa
a enumerar as ondas, a descer sobre os campos
onde todas as batalhas decorrem, todos os clarões.
És hoje esta elegia, mas não sei, ainda, como hei-de
escrever-te, permaneces no templo e guardas na luz
o teu contorno marítimo, onde há colinas nuas
e arbustos pequenos como os teus dentes miúdos.
Os cães aguardam, e uivam, e rosnam, e é esse o sinal
para o arrebatamento, vem um braço de vento tocar-te
o rosto e sou eu que toco os teus cabelos, numa carícia perfaço
um juramento em que estás presente, ainda que estejas
ausente, e só saibam os cães onde, e como, procurar-te.
Encontro-te, talvez, um pouco acima do céu, um pouco abaixo da terra,
encontro-te exactamente onde Nápoles se olha no escuro
e onde tenho a boca em fogo para pronunciar o teu nome,
ainda que em manhãs assim não saiba como escrever
elegias e a partida seja um rio intranquilo em que tudo
te lembra. Eu e os cães ouvimos vozes nocturnas, e, de repente,
apareces, e a manhã estremece, e vibra, muito branca,
sendo que os cães sabem tudo de ti e eu te choro
sob esta sombra, ainda que o sol brilhe sobre o mar,
ainda que a janela entreaberta enquadre a nitidez de uma silhueta
com o teu rosto, e eu não seja mais que um navio votivo, perdido a jusante.
Etiquetas: poemário
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