Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)
Georges! anda ver meu país de romarias 
E procissões! 
Olha estas moças, olha estas Marias! 
Caramba! dá-lhes beliscões! 
Os corpos delas, vê! são ourivesarias, 
Gula e luxúria dos Manéis! 
Têm nas orelhas grossas arrecadas, 
Nas mãos (com luvas) trinta moedas, em anéis, 
Ao pescoço serpentes de cordões, 
E sobre os seios entre cruzes, como espadas, 
Além dos seus, mais trinta corações! 
Vá! Georges, faz-te Manel! viola ao peito, 
Toca a bailar! 
Dá-lhes beijos, aperta-as contra o peito. 
Que hão-de gostar! 
Tira o chapéu, silêncio! 
Passa a procissão
Estralejam foguetes e morteiros. 
Lá vem o Pálio e pegam ao cordão 
Honestos e morenos cavalheiros. 
Altos, tão altos e enfeitados, os andores, 
Parecem Torres de David, na amplidão!
Que linda e asseada vem a Senhora das Dores! 
Olha o Mordomo, à frente, o Sr. Conde. 
Contempla! Que tristes os Nossos Senhores, 
Olhos leais fitos no vago... não sei onde! 
Os anjinhos! 
Vêm a suar: 
Infantes de três anos, coitadinhos! 
Mãos invisíveis levam-nos de rastros 
Que eles mal sabem andar.
Esta que passa é a Noite cheia de astros! 
(Assim estava, em certo dia, na Judeia! 
Aquele é o Sol! (Que bom o Sol de olhos pintados!) 
E aquela é a Lua-Cheia! 
Seus doces olhos fazem luar... 
Essa, acolá, leva na mão os Dados, 
Mas perde tudo se vai jogar. 
E esta que passa, toda de arminhos, 
(Vê! dentre o povo em êxtase, olha-a a Mãe) 
Leva, sorrindo, a Coroa dos Espinhos, 
Criança em flor que ainda não os tem. 
E que bonita vai a Esponja de Fel! 
Mas ela sabe, a inocentinha, 
Nas suas mãos, a Esponja deita mel: 
Abelhas de oiro tomam-lhe a dianteira. 
Lá vem a Lança! A bainha 
Traz ainda o sangue da Sexta-Feira... 
Passa o último, o Sudário! 
O Corpo de Jesus, Nosso Senhor... 
Oh que vermelho extraordinário! 
Parece o sol-pôr...
Que pena faz vê-lo passar em Portugal! 
Ai que feridas! e não cheiram mal...
E a procissão passa. Preia-mar de povo! 
Maré-cheia do Oceano Atlântico! 
O bom povinho de fato novo, 
Nas violas de arame soluça, romântico, 
Fadinhos chorosos da su'alma beata.
Trazem imagens da Função nos seus chapéus.
Poeira opaca. Abafa-se. E, no céu, ferro e oiro, 
O Sol em glória brilha olímpico, e de prata, 
Como a velha cabeça aureolada de Deus!
Trombetas clamam. Vai correr-se o toiro. 
Passam as chocas, boas mães I passam capinhas.
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas! 
Pão-de-ló de Margaride! 
Aguinha fresca de Moirama! 
Vinho verde a escorrer da vide!
À porta dum casal um tísico na cama, 
Olha tudo isto com seus olhos de Outro-Mundo, 
E uma netinha com um ramo de loireiro 
Enxota as moscas do moribundo.
Dança de roda moças o coveiro. 
Clama um ceguinho: 
«Não há maior desgraça nesta vida, 
que ser ceguinho!» 
Outro moreno, mostra uma perna partida! 
Mas fede tanto, coitadinho... 
Este, sem braços, diz «que os deixou na pedreira...» 
E esse, acolá, todo o corpinho numa chaga, 
Labareda de cancros em fogueira, 
Que o sol atiça e que a gangrena apaga, 
Ó Georges, vê! que excepcional cravina...
Que lindos cravos para pôr na botoeira!
Tísicos! Doidos! Nus! Velhos a ler a sina! 
Etnas de carne! Jobes! Flores! Lázaros! Cristos! 
Mártires! Cães! Dálias de pus! Olhos-fechados! 
Reumáticos! Anões! Delíriums-trémens! Quistos! 
Monstros, fenómenos, aflitos, aleijados, 
Talvez lá dentro com perfeitos corações: 
Todos, à uma, mugem roucas ladainhas, 
Trágicos, à uma, mugem roucas ladainhas, 
Trágicos, uivam «uma esmolinha plas alminhas 
Das suas obrigações!» 
Pelo nariz corre-lhes pus, gangrena, ranho! 
E, coitadinhos! fedem tanto – é de arrasar...
Qu'é dos Pintores do meu país estranho, 
Onde estão eles que não me vêm pintar?
Fernando Nobre
Paris, 1891-1892
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