2012-09-26

Catulo1








Photo by Jaime lart et la nature Flora (Josiane-Cuppens)

Pássaro, delícia da minha miúda,
com quem brinca, que aperta contra o seio,
a quem dá a ponta do dedo,
e provoca valentes bicadas,
quando, ardendo de desejo por mim,
lhe agrada divertir-se com não sei quê de querido
como pequeno consolo para a sua dor,
julgo, para assim acalmar o ardor intenso –
pudesse eu, como ele, contigo brincar
e do coração afastar os tristes cuidados.




Gaio Valério Catulo

in "Carmina"

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2012-09-17

ABRIL E O SILÊNCIO

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


A primavera mostra-se deserta.
A valeta, de um escuro aveludado,
rasteja ao meu lado
sem reflexos.
A única coisa que brilha
é o amarelo de flores.
Sou levado na minha sombra
como um violino
no seu estojo negro.
O que apenas quero dizer
tremeluz fora do meu alcance
como prata
em montra de casa de penhores.

Thomas Tranströmer
[in 50 Poemas, tradução de Alexandre Pastor, Relógio d'Água, 2012]

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UM CÉU POR ACABAR

Photo by ORAR,SORRIR,AMAR

O desânimo interrompe o seu curso.
A angústia interrompe o seu curso.
O abutre interrompe o seu voo.
A luminosidade impaciente escoa-se,
até os fantasmas pedem um copo de três.
Pinturas rupestres vêm à luz,
animais em ocre vermelho de um ateliê glaciar.
Todo o existente olha à sua volta.
O astro-rei é adorado.
Cada ser humano é uma porta entreaberta
que conduz a um quarto para todos.
O solo imenso no qual caminhamos.
Por entre o arvoredo, a água da chuva ilumina.
Lagos são janelas com vista para a terra.

Thomas Tranströmer
[in 50 Poemas, tradução de Alexandre Pastor, Relógio d'Água, 2012]

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O CASAL



Apagam a luz, o globo branco treme
um instante antes de se desvanecer
como um comprimido num copo de escuridão. Às escuras,
as paredes do hotel elevam-se, atingem o negrume celeste.
Os movimentos do amor esmorecem, eles dormem,
mas os pensamentos mais íntimos encontram-se
como duas cores que esbarram e se misturam,
tal papel humedecido da pintura de um garoto na idade escolar.
Ainda não é dia e há silêncio. Esta noite, porém, a cidade acercou-se.
Com janelas apagadas, as casas estão ali.
Juntas umas às outras, à espera, muito perto,
uma multidão com rostos sem expressão.

Thomas Tranströmer
[in 50 Poemas, tradução de Alexandre Pastor, Relógio d'Água, 2012]

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MEADOS DO INVERNO


Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens).



Um rasto de luz azulada
irradia da minha roupa.
Decorrida está metade do inverno.
Música de choques de mil blocos de gelo.
Fecho os olhos.
Há um mundo sem ruídos,
uma fissura,
onde os mortos,
como contrabando, são passados para o além.




Thomas Tranströmer

[in 50 Poemas, tradução de Alexandre Pastor, Relógio d'Água, 2012]

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TUDO CONTINUA

Photo by Project Noah


Aí se erguia uma parede em que toquei.
A parede foi demolida. O entulho
Serviu mais adiante de fundamento.
Uma árvore plantei no meu jardim.
Que foi asfaltado. A cinco metros
De fundo, a raiz contém-se, amuada.
Meio milénio se preciso. Um dia
Chega a Marte a pneumónica porque tossi.
Houve um amigo a quem escrevia,
Uma rocha onde gravei o meu nome.
Somos parte de tudo enquanto vivemos
E tudo continua quando morremos.

Gerrit Komrij
(de: Luchtspiegelingen [Miragens], 2001)»

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2012-09-13

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Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf.


É com mãos, olfacto, dentes, boca
que procuro o cheiro dos animais à mesa,
da roupa amarrotada duma antiga
posse viva e de criança,
da comida espessa na sua longa espera,
a mais reconfortante,
o rumor entontecido dos pássaros,
os amigos seguros, a ternura dos tios, a pancada cega,
sempre repetida,
e pelo amor da mãe desmoronada.

Armando Silva Carvalho

[in De Amore, Assírio & Alvim, 2012]

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2012-09-05

Symborska2

Photo by Emily Cape for Resim & Fotoğraf

A MÃO

Vinte e sete ossos,
trinta e cinco músculos,
cerca de duas mil células nervosas
em cada uma das pontas dos cinco dedos.
É quanto basta
para escrever ‘Mein Kampf’
ou ‘A Casinha do Ursinho Puff’.



Wislawa Symborska

Tradução de Teresa Swiatkiewicz.

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Symborska1

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens); Poema partilhado do blogue Poesia & Lda.

ADOLESCENTE

Eu – adolescente?
Se, de repente, aparecesse aqui, agora, diante de mim,
saudá-la-ia como pessoa que me é próxima,
embora seja, para mim, estranha e distante?

Verter uma lágrima, beijar-lhe a testa
pela simples razão de termos
a mesma data de nascimento?

Tão poucas semelhanças entre nós,
quiçá, apenas os ossos são os mesmos,
a caixa craniana, as órbitas.

Já que os olhos dela parecem maiores,
as pestanas mais compridas, ela mais alta
e todo o seu corpo revestido
com uma pele lisa, sem mácula.

Na verdade, ligam-nos parentes e conhecidos,
no mundo dela, porém, quase todos estão vivos,
enquanto no meu já não há quase ninguém
deste círculo que tínhamos comum.

Somos tão diferentes uma da outra,
pensamos e falamos sobre coisas tão diferentes.
Ela pouco sabe –
mas com uma teimosia digna de melhores causas.
Eu sei muito mais –
mas sem nada saber ao certo.

Mostra-me uns poemas,
escritos com letra clara e cuidada,
como já há muito eu não escrevo.

Leio esses poemas e leio.
Bem, talvez este daqui,
se o reduzirmos
e corrigirmos aqui e ali.
O resto nada de bom augura.

A conversa está difícil.
No seu pobre relógio,
o tempo ainda é vacilante e barato.
No meu, já é muito mais caro e preciso.

Na despedida nada, um breve sorriso
e nenhuma comoção.

Somente quando se afasta
e, apressada, se esquece do cachecol.

Um cachecol de pura lã,
às riscas coloridas
feito em croché para ela
pela nossa mãe.

Ainda hoje o tenho.




Wislawa Symborska

Tradução de Teresa Swiatkiewicz.

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Daniel Faria 4



Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf

Examinemos também a escrita
O solo negro deixado pelo fogo
O mecanismo semelhante às queimadas
Deixando a terra arável na sua devastação.
Tudo isto interessa para retomarmos a pedra onde está escrita
A palavra nova
A pedra onde corre o sangue.
Enquanto perguntas pelas dez palavras.
Põe a boca na palavra líquida
Examina o coração de carne em vez da escrita antiga
O verbo onde jorra a palavra incessante

Há dentro dela uma pedra nupcial




Daniel Faria

[in Poesia, Assírio & Alvim, 2012]

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Daniel Faria 3



Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf




Amo-te nesta ideia nocturna da luz nas mãos
E quero cair em desuso
Fundir-me completamente.
Esperar o clarão da tua vinda, a estrela, o teu anjo
Os focos celestes que a candeia humana não iguala
Que os olhos da pessoa amada não fazem esquecer.
Amo tão grandemente a ideia do teu rosto que penso ver-te
Voltado para mim
Inclinado como a criança que quer voltar ao chão.


Daniel Faria

[in Poesia, Assírio & Alvim, 2012]

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Daniel Faria 2

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)

Trabalho a partir da existência da luz
E de certos minerais
Mesmo se não mereço a matéria luminosa
Da terra soprada donde o homem vem. A ânfora, o vidro. E recolho
O fogo
Quando como no princípio a manhã se abeira
Trabalho a partir da ceifa matinal. Experimento
A paveia antiga do homem vergado, o rumor enxugado do líquido
Na névoa, no orvalho, na carne
Da palavra calculando o voo
Pelo reflexo sobre as águas: no início
Trabalho na água que a voz movimentou
Gerando os sismos: e sou
O húmus, o barro nas margens
O homem que nunca compreendeu

[in Poesia, Assírio & Alvim, 2012]

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Daniel Faria 1


Photo by Livraria Centésima Página


Sabes, leitor, que estamos ambos na mesma página
E aproveito o facto de teres chegado agora
Para te explicar como vejo o crescer de uma magnólia.
A magnólia cresce na terra que pisas – podes pensar
Que te digo alguma coisa não necessária, mas podia ter-te dito, acredita,
Que a magnólia te cresce como um livro entre as mãos. Ou melhor,
Que a magnólia – e essa é a verdade – cresce sempre
Apesar de nós.
Esta raiz para a palavra que ela lançou no poema
Pode bem significar que no ramo que ficar desse lado
A flor que se abrir é já um pouco de ti. E a flor que te estendo,
Mesmo que a recuses
Nunca a poderei conhecer, nem jamais, por muito que a ame,
A colherei.

A magnólia estende contra a minha escrita a tua sombra
E eu toco na sombra da magnólia como se pegasse na tua mão


[in Poesia, Assírio & Alvim, 2012]

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