2013-04-27

Peter Lagusen

Photo by Resim & Fotoğraf

Há algo no ar,
é transparente,
inodoro e insonoro.
Noto-o
quando choco com ele,
como se precipita um pássaro voando
contra um vidro.
A minha imagem especular está
na janela –
vejo-me
com um aspecto que não tenho,
e atrás de mim na cozinha
ficam os rolos de papel
como peles caídas de serpente
e o casulo da borboleta
em tapetes voadores
de amor e solidão.
O lago é um olho azul
no rosto verde da terra
e os terraços suspendem-se
como barcos salva-vidas
na medida das casas grandes
O tempo plana
à sombra de comboios de mercadorias e de gatos,
correm-se as cortinas
a luz apaga-se atrás delas.

Tudo flutua em calma pelo espaço
ao longe brilham cinco estrelas
e o céu para o sul está turquesa.

Peter Lagusen
Himmel Kœrlighet Frhed, 1982

Tradução de Amadeu Baptista

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Praia da Boa Nova

Photo by Resim & Fotoğraf.

Mar. Chuva. Ventania.
No denso canavial
(em ligeiro sobressalto)
o doce golpe das palavras,
a desordem dos corpos,
o caos das línguas
na preia-mar das bocas.
Labaredas de fogo
entre enganos e afectos.
No horizonte de neblina,
o voo insondável e branco
de uma gaivota.

António José Queirós

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Adeus

photo by Esradan forResim & Fotoğraf.

Penso em ti.
Há uma voz que se repercute
no coração do poema
com a cadência de um látego incansável.
Oiço os acordes obscuros
de uma música descompassada,
o rumor de um mar intranquilo.
Regressa à memória
o desastre de um desejo envelhecido.
Está frio.
Um tímido sol anuncia
o lento suicídio do Inverno.
Penso em ti,
na vertigem súbita das falésias,
no verde e húmido
olhar da despedida.

António José Queirós

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A divina imperfeição



Photo: autor desconhecido

Caminho sem pressa pelas veredas
de um labirinto que parece não ter fim.
Oiço o som dos meus passos solitários
e sinto as fragrâncias de um jardim que se perdeu.
Entre ser livre ou ser feliz, escolhi
a liberdade de construir outro destino.
Sei agora que a minha vocação
é o silêncio íntegro das sementes
nos campos tranquilos e lavrados.
É tarde. Do pó vim, ao pó quero regressar,
liberto, enfim, da geometria cruel do labirinto.
Dia após dia, procuro a secreta passagem
para a morada longínqua do mundo inicial.
Se Deus projectou em mim a sua imagem
em mim negou a sua divina perfeição.

António José Queiróz.

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Sena-Lino


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf

uma doença infecta, provocada
por balas tracejantes e episódios
retirados do acaso, ora domésticos,
sublinhados por discussões violentas,

ora fortuitos como um acidente
em que uma parte da nuca bate contra o chão
e o sangue corre, fervente, pelo passeio
em que um menino de bibe e sapatilhas pretas

leva as mãos aos ouvidos para não ter que ver
mais do que vê, insustentadamente.
um pavor de doença, que amplia

a legião de fantasmas que nos segue
e nos piores pesadelos admoesta
o sono leve com que a noite passa.


Pedro Sena-Lino
(in Negrume, Lisboa, & Etc, 2006)

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2013-04-26

Éramos deuses


Photo by Tourism in Turkey.

Éramos deuses
e fizeram-nos escravos.
Éramos filhos do sol
e consolaram-nos
com medalhas de lata.
Éramos poemas
e puseram-nos a
recitar uma esmolinha
por amor de Deus.




GONZALO ARANGO (1931-1976)

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2013-04-16

José Emílio-Nelson1

Photo by Sandra (Resim & Fotoğraf)

MINA SAN JOSÉ

Rezo pelos mineiros chilenos.
As almas soltando labaredas de El Greco.
Ciclopes à espera de subirem ao céu azul pelos tubos dum
órgão de luzes que os ressuscita no sepulcro.

Estes mineiros extraem Deus.




José Emílio Nelson

[in Pesa um Boi na Minha Língua, Afrontamento, 2013]

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O que não se sabe



Photo by Sandra (Resim & Fotoğraf)

(glosa oblíqua de um verso de Ferreira Gullar)
Murmuras
Só o que não se sabe é poesia
e eu vejo-te à janela,
observando o movimento das coisas
na rua Duvivier, seu lento desfile,
sua prodigiosa vertigem, sua incerta glória,
uma miríade de coisas simples e pequenas
que desembocam numa grandeza cósmica,
coisas que se agitam, que se inflamam,
que brilham, coisas já matéria verbal
a aninhar-se no poema ainda no limbo,
esse novelo crescendo algures no
labirinto das circunvoluções cerebrais,
acendendo-se na tua consciência durante
o simples acto de olhar a rua, o poema
à espera de encontrar quem não saiba
o suficiente para o escrever, para o dizer.
Estás à janela, com o poema
expandindo-se dentro da cabeça,
poema silencioso, pés de lã, a erguer-se
do nada para uma espécie diferente
de silêncio, o som áspero das palavras
agora no papel, andaimes de tinta, carena
de um navio invisível mas que flutua
e avança leitor adentro, com os porões
carregados da melancolia que julgavas
só tua, mas que cedes agora ao
estranho comércio da poesia,
esse tráfico de ouro e pólvora,
brilho e deflagração.
Estás à janela, a cabeleira branca
reflectida no vidro, consciente
de cada um dos teus ossos,
e sobre os telhados do Rio de Janeiro
o céu que escurece é o de São Luiz
do Maranhão, paira no ar o cheiro
das bananas apodrecendo na tua infância,
a sombra das mil faces da miséria, a violência
venenosa do jasmim, o passado inteiro
com a sua carga ora sublime, ora abjecta,
e tudo isso cai no buraco do poema ainda
por existir, ainda buscando a sua forma
mas já em aproximação brusca
a quem um dia o lerá, compreendendo
ou não todos os sinais, a ordem
dentro da desordem, as asas da mosca
pousada no parapeito e a espiral
da mais longínqua das galáxias.
A rua Duvivier, não a conheço.
Fica numa cidade, o Rio de Janeiro,
onde nunca estive. Por isso, o teu
prédio, a tua janela, assumem na minha
imaginação uma forma que nasce
dos prédios todos de que me lembro
(prédios que não ficam na rua Duvivier)
e de todas as janelas que não são janelas
de prédios que fiquem na rua Duvivier.
É imaginária a janela em que te imagino,
no alto de um prédio também ele imaginário,
mas reais ambos, janela e prédio, porque
és tu e a tua cabeleira branca que se
reflectem no vidro enquanto o poema
ganha forma no labirinto das minhas
circunvoluções cerebrais.
Agora sou eu que murmuro:
Só o que não se sabe é poesia.
Não há poucos poetas porque
saibamos pouco. Há poucos
poetas porque sabemos demais.
Escrever é levantar uma cerca,
arame farpado na planície:
para cá da cerca, as nossas certezas;
para lá da cerca, o que desconhecemos.
Se tivermos sorte, o poema vem ter
connosco quando insones,
sonâmbulos, abrimos o portão
sem fazer barulho e nos perdemos lá
fora, nessa noite que escurece sobre
a nossa ignorância, sobre o Rio,
sobre a verdadeira rua Duvivier
e sobre a que imagino, sobre ti
e sobre mim, perdidos os dois
no reflexo da janela que não há.

José Mário Silva
[Poema escrito, na Póvoa de Varzim e lido na mesa 3 das Correntes d'Escritas]

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Só o que não se sabe é poesia



Photo by (Resim & Fotoğraf.)

FICA O NÃO DITO POR DITO

o poema
antes de escrito
não é em mim
mais que um aflito
silêncio
ante a página em branco

ou melhor
um rumor
branco
ou um grito
que estanco
já que
o poeta
que grita
erra
e como se sabe
bom poeta (ou cabrito)
não berra

o poema
antes de escrito
antes de ser
é a possibilidade
do que não foi dito
do que está
por dizer

e que
por não ter sido dito
não tem ser
não é
senão
possibilidade de dizer

mas
dizer o quê?
dizer
olor de fruta
cheiro de jasmim?

mas
como dizê-lo
se a fala não tem cheiro?

por isso é que
dizê-lo
é não dizê-lo
embora o diga de algum modo
pois não calo

por isso que
embora sem dizê-lo
falo:
falo do cheiro
da fruta
do cheiro
do cabelo

do andar
do galo
no quintal
e os digo
sem dizê-los
bem ou mal

se a fruta
não cheira
no poema
nem do galo
nele
o cantar se ouve
pode o leitor
ouvir
(e ouve)
outro galo cantar
noutro quintal
que houve

(e que
se eu não dissesse
não ouviria
já que o poeta diz
o que o leitor
– se delirasse –
diria)

mas é que
antes de dizê-lo
não se sabe
uma vez que o que é dito
não existia
e o que diz
pode ser que não diria

e
se dito não fosse
jamais se saberia

por isso
é correto dizer
que o poeta
não revela
o oculto:
inventa
cria
o que é dito
(o poema
que por um triz
não nasceria)

mas
porque o que ele disse
não existia
antes de dizê-lo
não o sabia

então ele disse
o que disse
sem saber o que dizia?
então ele o sabia sem sabê-lo?
então só soube ao dizê-lo?
ou porque se já o soubesse
não o diria?

é que só o que não se sabe é poesia

assim
o poeta inventa
o que dizer
e que só
ao dizê-lo
vai saber
o que
precisava dizer
ou poderia
pelo que o acaso dite
e a vida
provisoriamente
permite




Ferreira Gullar

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Hélia 2



Photo by Sandra (Resim & Fotoğraf)



33.
De que armas disporemos, senão destas
Que estão dentro do corpo: o pensamento,
A ideia de polis, resgatada
De um grande abuso, uma noção de casa
E de hospitalidade e de barulho
Atrás do qual vem o poema, atrás
Do qual virá a colecção dos feitos
E defeitos humanos, um início.

Hélia Correia

in A Terceira Miséria

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Hélia1



Photo by Esradan (Resim & Fotoğraf)

32.

Estão as praças,
Como ágoras de outrora, estonteadas
Pela concentração dos organismos,
Pelo uso da palavra, a fervilhante
Palavra própria da democracia,
Essa que dá a volta e ilumina
O que, por um instante, a empunhou.
Oh, os amigos, os abandonados,
Esses, os destinados ao extermínio,
Esses os belos despojados, nus,
Os que, mesmo nascendo no Inverno,
Pouco sabem do frio, gente que dorme
Na sombra do meio-dia, ouvindo o canto
Das cigarras, o canto sobre o qual
Hesíodo escreveu. Gente do Sul,
Gente que um dia se desnorteou.

Hélia Correia
in A Terceira Miséria

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"Cinco Fragmentos Felinos"









Photo by Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.

A minha gata faz-se equilibrista em mim.
Ainda não caiu, mas guardo a memória
dos arranhões.

***

A minha gata sabe ser só um olho, rente ao chão,
ao dobrar de uma esquina. E de nada faz uma
esquina.

***

A minha gata enche-nos de pêlo.
Acha estranho que, pertencendo à
mesma família, tenhamos tão pouco.

***

A minha gata abre as garras como navalhas
em flor. Sabe fazê-lo surgindo do nada.

***

A minha gata não dorme nunca sem deixar
activa uma pequena orelha trémula, periscópio
das sonolências. E o meu olhar não a protege,
incomoda-a.


João Paulo Cotrim
[in A minha gata, Companhia das Ilhas, 2012]

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