2009-09-21

Cineliterário na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão













Na passada 6ªa feira, dia 18 de Setembro, a foi exibido o filme “Romeu e Julietta” de Baz Lurhmann, seguindo-se o debate relativo à obra homónima de William Shakespeare. O publico abrangia uma considerável heterogeneidade relativamente às idades, contando com a presença de jovens /adolescentes com idade muito próximas às das personagens principais, estendendo-se às faixas etárias entre os 40 a 50 anos.
A versão de Baz Luhrmann da mais conhecida peça William Shakespeare, a representar o arquétipo do amor juvenil, vem juntar-se a um número já considerável número de outras versões cinematográ ficas tais como a de 1936 (George Cukor), 1954 (Renato Castellani), 1966 (Paul Czinner) e 1968 (Franco Zefirelli), sendo, provavelmente, esta última a mais conhecida tendo utiliza actores de 17 e 15 anos como protagonistas. Existe ainda uma considerável lista de histórias inspiradas na obra de Shakespeare como "Romanoff and Juliet" de Peter Ustinov .
Luhrmann constrói a sua adaptação ao cinema com o mérito de manter a fidelidade ao texto original. Opta, no entanto, por transpor a trama para a actualidade utilizando uma linguagem visual – baseada nos gestos, postura corporal, atitudes e vestuário típica das sociedades urbanas no século XXI, facilmente assimilável pelas camadas mais jovens. A acção passa-se num bairro imaginário, fora do espaço físico e do tempo - Verona Beach nos EUA, que se parece com qualquer grande metrólope americana, onde os arranha-céus coexistem com elementos saídos da inspiração no período renascentista italiano, com imagens de santos, igrejas e outros símbolos religiosos. na realidade, parece retratar uma colónia de imigrantes italianos onde se destacam os edifícios das grandes empresas Capuletto e Montecchio - aqui dois grandes industriais, ou patriarcas de dois clãs de inspiração mafiosa – enquanto que, nas ruas, os habitantes envergam roupas, a relembrar um pouco o estilo trash /kitsch.

As espadas são substituídas por revólveres de marca “Sword” (espada), e o Príncipe que serve de mediador entre ambas as famílias, tentando fazer prevalecer a autoridade no meio do caos é o chefe da polícia local, que intervém nas rixas dos dois gangs rivais.
O realizador, num momento de inspiração e criatividade, cujo brilhantismo o aproxima dos parâmetros da genialidade, decidiu incluir sequências que colocam a obra na categoria de parente proximo dos filmes de animação, devido à aceleração da acção de algumas personagens e a introdução de cortes temporais súbitos, servindo para acentuar o lado cómico que Shakespeare tão bem sabia introduzir nas peças, ao alternar momento de drama e comédia.
Para culminar, este será um é um "Romeu e Julieta" que se situa entre pop e o clássico, devido a uma interessante fusão crida entre dois estilos musicais opostos que compõem a banda sonora, e ajudam a sublinhar o dinamismo do filme, tal como o contraste utilizado entre a linguagem arcaica de finais do século XVI com o visual típico da sociedade contemporânea.

A banda sonora inclui Garbage, Gavin Friday, Butthole Surfers, The Cardigans, Radiohead, The Wannadies, Des'ree e uma versão gospel de "When Doves Cry" de Prince, cuja interretação esteve a cargo de um grupo coral infantil.
Salienta-se a interpretação, irrepreensível, de Leonardo DiCaprio no papel de Romeu, da beleza da voz de Claire Danes ao declamar as frases mais líricas da peça, da hilariante expressividade dos actores secundários, sobretudo os intérpretes dos papéis de Benvólio e Mercucio.A verosimilhança colocada nas falas e atitudes de, praticamente, todos os membros do elenco, não deixaram de causar a emoção no público, rendido ao talento da equipa.

O debate prosseguiu, após a projecção do filme, incidindo nos aspectos temáticos da obro do dramaturgo de Stattford-on Avon e da sua intemporalidade, no contexto histórico e influências literárias.


Cláudia de Sousa Dias



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2009-09-12

Tudo o que não escrevi sobre "A Costa dos Murmúrios"





Publico aqui tudo aquilo que gostaria de ter escrito sobre o magnífico livro"A Costa dos Murmúrios" de Lídia Jorge e que deixei ficar de fora, citando as fontes como é da praxe: comecemos pelo magnífico texto de João de Mancelos.












A Costa dos Murmúrios de Lídia Jorge

Sempre adivinhei a leitura como uma espécie de cinema mental. Por qualquer insondável alquimia, aquele que lê deixa de, a partir das primeiras paginas, ver os rebanhos de letras e frases impressos no papel. Passa antes a ter projectadas nas folhas do livro florestas de imagens, sons, tonalidades, acções. Abstrai-se dos caracteres negros e encontra dentro de si o que o escritor ousou apenas rabiscar. Dois universos– o do autor e o do leitor – volvem-se assim íntimos. Apesar de apertados. E tanto mais quanto for o talento do escritor para evocar, transformar uma singela palavra num fotograma de imaginação.







Reside aqui a arte de Lídia Jorge. Profeta no manejo da prosa, puxa-nos pela gravata do real e arrasta-nos ao hemisfério da Ficcionalidade. A Costa dos Murmúrios é pródiga nesta florescência de evocações. Dir-se-ia que um sótão de memórias, ao despegar cores, sons e aromas, cria atmosferas susceptíveis de desenroscar a capacidade que o leitor tem de, segundo Barthes, re-escrever o texto.







A narradora da maior parte de A Costa dos Murmúrios, Eva Lopo, nota esse fluido de sensações no comentário a Os Gafanhotos (a primeira parte do romance ) :







"Esse um relato encantador. Li-o com cuidado e concluí que tudo nele é exacto e verdadeiro, sobretudo em matéria de cheiro e som." Esquece, a meu ver, o mais relevante – a pauta de cores, tonalidades e cambiantes com que, quer em Os Gafanhotos quer no restante do romance, se colorem cenários, personagens e até ideias. Como se Lídia Jorge fosse senhora de uma paleta que a falta de aquarelas se cumprisse pelas palavras.







Qualquer estudo exaustivo a lápis e sublinhador detectaria que dentre as cores, uma preside sobre a tela de A Costa dos Murmúrios: o Verde. É apresentado em todo o seu fulgor aguando da chuva de gafanhotos:







"Estão a ficar verdes. Completamente Verdes." (p. 32).
Fala-se no 'esverdinhar da atmosfera " (p. 32). Distingue-se "o suspiro Verde como as asas dos gafanhotos " (p. 33). Projecta-se a cor, até se diluir com outras :"as fogueiras também elas verdes " (p. 34), "o escuro verde" (p. 34, 35), o "verde em torno das lâmpadas" (p. 35) e até "clareiras de luz verde" (p. 37).







E como o bom e proverbial pintor, Lídia Jorge colhe com a ponta da esferográfica tonalidades intra-cromáticas – "e agora se via a luz das lâmpadas e as fogueiras passarem de verde-musgo a verde-coqueiro e a verde-esmeralda" (p. 36).







Os mais cépticos contra-argumentariam acerca da minha breve recolha. Provavelmente invocariam a supra-citada cor como sendo a mais natural para uma chuva de ortópteros. Acordaria, se não se repetissem estes factos / indícios ao longo de todo o romance, como é o caso. Exemplos esparsos: "a penumbra esverdeada das arvores " (p. 64), "as saladas esverdinhavam" (p. 108), "olhos castanhos, quase verdes (p. 127), "o verde dessa noite" (p. 137), "prisioneiro da luminosidade verde " (p. 142), "chuva verde " (p. 144) e outras infindas referencias cromáticas.







É o general quem decide aventurar-se, nas paginas derradeiras de A costa dos Murmúrios; aventurar-se a uma interpretação algo árida e sufocante a semiótica do leitor. Para ele o verde traça-se como sinónimo de "alia-se o mar, pela cor, a nossa esperanca". O próprio cego sinistrado dizia "lindo, lindo, como é verde" (p. 214), numa alusão as festas vitoriosas no Stella. Investiguemos: esta cor tem diferentes plurissignificações, no enredo. O verde é a frescura iniciática de Eva Lopo, a premonição do amadurecimento a distender na obra.
Oposto ao vermelho, que surgira a simbolizar a atmosfera de guerra perdida e de 'aftermath', o verde é, segundo a cromologia, uma chave que abre os cofres da memória. Ora, todo a costa dos Murmúrios se constrói como uma lembrança (o fim), de uma iniciação (o principio). É um rits-de-passage de Eva Lopo. Um círculo perfeito cujos términos se fundem quando ela devolve e anula o conto os gafanhotos, obtendo a paz de quem se reconcilia com o passado.
A uma consciência de cor na obra, de facto. E o AMARELO, o parente mais descorado do verde também tinge algumas páginas.







"África é amarela, minha senhora – disse o comandante (...). Amarela clara, da cor do whisky !" (pp. 11 e 12)." "Entornava-se de facto uma atmosfera amarela – clara, da cor do whisky" (p. 14). "Evita ficou a ver como de facto tudo era laranja e amarelo, mesmo o noivo " (p. 15). "A cidade da beira, prostrada pelo calor a borda dos cais, era tão amarela como o ananás e a papaia".







Curioso é reparar que as personagens mais alusivas a própria África parecem ser retocadas a limão. O major dos "dentes amarelos, um deles sustido por uma anilha de oiro" (pp. 10, 21, 22, 27, 30, 32...) é praticamente definido por essa cor física que se mescla com ideias de decadência. Debilidade. Corrosão psicossomática: " O doente. Estava amarelo" ou "A imagem amarela do tenente góis". (p. 110)







Precipitemo-nos para a antonímia do verde e do amarelo. A cor mais fulva do espectro de tons quentes – VERMELHO.







Uma das primeiras referencias significativas liga-se ao inicio da tragédia. Um presságio que emerge no rasto" não propriamente vermelho, mas da cor da ferrugem, a cor que o sangue toma diluído na água do sabão" (p. 19). Trata-se do afogamento dos negros, vestíbulo a indiciar o conflito. A noite que sucede é "vermelha e negra como um tapete que cai de uma janela sideral" (p. 31), apesar da relativa estultícia em que "o verde limo da luz conseguia "anular os objectos vermelhos do terraço" (p. 31). "Rosas", "Fio de sangue", "vergões", "tudo isso era vermelho", reparara o leitor.







Também as personagens, tal como no caso da cor amarelo, emergem como reflexos personificados de tons e cambiantes. "a mulher de cabelo ruivo" (p. 23), "a ruiva" (p. 28), "o cabelo encharcado de cor vermelha" (p. 121)... O próprio noivo, por contagio se afigura fulvo, ao surgir diante das aves cor de fogo" (p. 52), num intimismo com o cenário. De tal forma as cores se consorciam que Eva Lopo repara, a propósito de duas figuras relevantes no romance que "talvez o cabelo vermelho, talvez a pele leitosa (...) a união deles era um triunfo".







Interessante reparar que os interpretes mais antipáticos deste drama são definidos pelo colorido. E em tons fortes, a pedir inveja a um pintor "fauve". E não raras vezes associadas a tons de espectros diferentes. Helena é um exemplo franco – "ruivo-branco-cinzento" (p. 128). O vermelho é em suma uma cor ligada a cicatrizes, guerra, violência pelo acto e pela presença. A "cadeira vermelha" (p. 258), um símbolo que na antepenúltima pagina acaba por se ligar a imagem da capa, é a materialização certa. A variegada ilustração afirma-se até como prova de tudo que aqui se dilucidou Verde, amarelo, vermelho. Cores idênticas a bandeira nacional. Referencia a um pais fora do seu pais? Não importa. Os recônditos do detalhe são do domínio do autor. O que interessa são os tons que as palavras de humanidade, anti-militarismo e reflexão cumprem em Lídia Jorge.







Ao virar de cada página.











Agora os temas que me esqueci de abordar...






A Costa dos Murmúrios, um Filme de Margarida Cardoso

Discussão

1. É ou não um filme de guerra? Como é que a guerra entra / está presente no filme?

- o espaço não é o da frente de batalha: guerra a alguma distância
- o espaço é o da retaguarda, mas uma retaguarda intermédia, i.e., a colónia (Moçambique) e não a metrópole.
- história não é (só) a de um soldado – centrada na mulher do soldado (mas é porque Evita é mulher de um soldado que se conta aquela história) – a guerra tem muitas histórias, muitos protagonistas, e muitos espaços.
- Moçambique, final anos 60, guerra colonial
- contexto particular da guerra colonial portuguesa: mulheres e famílias inteiras que acompanhavam os soldados – fenómeno incentivado pelo regime
– cf. artigo de Margarida Calafate Ribeiro: http://www.ces.uc.pt/publicacoes/rccs/artigos/68/RCCS68-007-029-Margarida%20C.Ribeiro.pdf

- preocupação em evocar um contexto histórico concreto (no romance e no filme – imagens documentais iniciais):
-Kaúlza de Arriaga – campanhas para acabar com a guerra de uma vez por todas (Mueda)
- massacres (Wiriamu)
- a propaganda de guerra do regime; a censura dos jornais

- elementos mais evidentes da guerra no filme [e que já conhecemos]:
- o exército, as diversas patentes: do soldado ao general, passando pelo alferes miliciano; alguns feridos e estropiados (o cego)
- a omnipresença das armas, a cultura castrense
- os discursos e a propaganda de guerra (e a censura) – mas é um cego que discursa (o olhar)
- o soldado intrinsecamente violento – máquina de matar:
- Forza Leal (força e lealdade com ortografia deturpada)
- “o herói”
- as fotos e os relatos (divergentes) da frente de batalha (Mueda) – “fizemos guerra a fingir entre nós só para os jornalistas filmarem” – fotos sem palavras podem dizer coisas diferentes – ver relato de Helena, relato do soldado ferido; acto de queimar documentos de crime que podiam ter sido testemunhos de actos heróicos, se o contexto fosse outro (o contexto faz mudar o significado daqueles documentos supostamente imparciais) – queima é prova de que Forza Leal e Luís Alex sabem que tudo acabou.
- a transformação do soldado: de Luís Alex Galois, o matemático promissor, a Luís Galex, cujo alvo preferido é as galinhas e que coloca cabeças de “turras” espetadas em paus como troféus de caça em cima de palhotas; quer copiar Forza Leal e “fazer gosto ao dedo”. É cópia fraca e ironicamente trágica. Morre na roleta russa, incapaz do exercício de tal violência e de tal frieza no terror.
– algo que já conhecemos de “Braço Tatuado”,
excepto que, aqui, não é o soldado que se desconhece
– é a mulher que o desconhece / se desconhece / se divide (jogo de espelhos) – por isso, evolução psicológica da mulher
, mas também processo de conhecimento do que a rodeia: “Então a noiva que tinha chegado apenas na noite anterior, mas a quem todos já chamavam Evita, abriu os olhos”
– romper os silêncios, as falsas harmonias (ver “Os Gafanhotos”: beleza, harmonia – Eva Lopo diz ao narrador: deixe estar, não rompa essa harmonia).
Luís diz a Evita: Não olhes tanto.
Evita diz ao jornalista “Você tem os olhos bem abertos”

A Costa dos Murmúrios (Moçambique, a sociedade colonial, finalmente: Portugal – bainha das calças da Europa):







- quem mais (se) desconhece o quê? Que silêncios? Que murmúrios se ocultam / se tornam audíveis?

Percurso de Evita: a aquisição de lucidez acerca de Luís, acerca da guerra, acerca da sociedade colonial e patriarcal (de dominação masculina) é concomitante

O Império e a guerra:







1) A boda - exposição
- momento idílico cheio de murmúrios: onde estão um e os outros?
- terraço do hotel Stella Maris (Estrela do Mar / Virgem Maria) – típico da sociedade colonial
– significado deste espaço e dos espaços dentro deste espaço
- terraço: altura, sobre o Índico; varanda é espécie de amurada; espaço superior – festas dos portugueses, servidos por criados negros de farda branca; distanciamento da realidade; superioridade racial
- hall: piso térreo – onde chegam os relatos da guerra, as notícias do exterior (verdadeiras ou falseadas)
- quarto: espaço privado de Evita e Luís – a história dos encontros / desencontros a dois. (a casa-de-banho: a noite de núpcias num mar revolto de mármore).
- o baile, a orquestra (tudo brancos, um negro), o banquete, o beijo (05.00-06.00)
- as mulheres junto à varanda, mulheres sem nome, nomeadas pelos penteados ou em função das patentes dos maridos (06:00) + os homens fardados e também sem nome, só patentes (contexto de guerra, mas parece aproblemático)
- empregados negros de farda branca

Murmúrios:







Desfaz-se a boda e há um grito – não é o grito da noiva:
No mesmo terraço – cena 3 – todos de robe (perdem pose, mas ainda na posição superior) – mortos dão à costa – evocação de massacre colonial – descrição dos negros: “matam-se entre eles e culpam-nos a nós – a estratégia deles”. Notícias na rádio: vida colonial imperturbável, apesar do massacre.
- guerra está presente – massacre na cidade é espelho do que acontece no mato; ao mesmo tempo, mostra a guerra e indica a sua causa – o colonialismo. Quando o massacre atinge um branco, o mundo protegido da sociedade colonial sente-se ameaçado – violência redobrada na cidade.

Um idílio cheio de murmúrios, onde não há guerra (discurso oficial) - é a imagem que o regime quer dar de si mesmo para dentro e para fora (função das mulheres / família é absolutamente importante nisto – mas esta sociedade está em derrocada – está amarela e passará a verde)

Verde: a praga de gafanhotos – praga bíblica (destruição, devastação, castigo divino contra um povo usurpador e que escraviza outro) – mas ainda é dado como um idílio (mulheres que continuam a dançar no terraço – só uma não o faz). Eva Lopo diz (voz off): “não se preocupe agora com a verdade” – o idílio é cada vez mais falso: irrecuperabilidade do Império, só desgraça – muito mais relevo no livro do que no filme (1.31.17)
Sabino diz: “Isto vai tudo mudar. Acabou e não vêem. Têm os olhos fechados.”

Mais traços da sociedade colonial:
A cidade do asfalto e o musseque;
Os mainatos (mortos, fardados de branco, sem identidade ou com identidade transformada).
Os versos de Sabino: Europa violara África, mas a situação vai inverter-se.

O Masculino / O Feminino:
- “As mulheres do Stella” – vivem em função dos maridos, a espera, o crochet, os cabelos passados a ferro
- Forza Leal e Helena de Tróia
– a beleza como motivo de contenda – Guerra de Tróia – épicos guerreiros mais antigos (romance situado expressamente no paradigma ocidental da literatura de guerra)
- ruiva: o vermelho / sangue
- mulher raptada, violentada
- sociedade patriarcal – colonização da mulher (violência do soldado sobre o negro reproduz-se sobre a mulher, igual posição de dominação / submissão / exploração); Helena tratada como um recruta
Cena dos Flamingos (15: 37 – :
- “fazer gostinho ao dedo”
- tratamento paternalista, mas também humilhante e violento de Forza Leal sobre Helena de Tróia (vida de terror: as armas, como recordação constante da ameaça de morte e do assassinato do amante); Helena corre para os flamingos (identifica-se com ele, acto suicida)
- atirada para um relvado, esperneando no seu “fato caqui de caçadora” – comentário irónico de Eva Lopo: “imagem de harmonia”. (dualidade de todas as cenas, violência e destruição sempre latente)
- a prisão (in)voluntária de Helena de Tróia – a obsessão pelas estatísticas; o “poder da mente” como expressão de medo e impotência; Helena de Tróia que o herói encerra e nenhum herói vem libertar.

[- a Beleza / o Belo como leitmotiv do romance, que também aparece no filme (o narrado é tudo menos belo, mas fala-se constantemente em harmonias, transfigurações levadas a cabo pelas palavras), beleza é necessária]

Forza Leal: paradigma do machismo violento mais gritante: mulher como objecto de exploração e que se pode tratar com arbitrariedade e violência.

- Evita
- mulher culta, liberal, dotada de sentido crítico, filosófico, político (defende movimentos de libertação, solução política)
- emancipada (não corresponde à fada do lar salazarista, não casa virgem)
- relação com o marido em termos de igualdade e não de sacrifício: “faria tudo por ti, desde que fosse razoável” (o marido quer prendê-la, por imitação de Forza Leal)
- rejeita violência desde o início (cena dos flamingos – é por aí que começa a desconhecer Luís – alguém do espírito, do pensamento abstracto, transformado em cópia fraca e trágica de Forza Leal)
- tentativa de denúncia do massacre dos negros – procura jornalista
- a partir das fotos, procura o relato que as complementa, para conhecer o marido, agora Luís Galex.
- também em relação à sociedade, percorre as ruas, observando, procurando a verdade por debaixo da superfície: os musseques, “até as putas são tristes” (Álvaro Sabino: “Aqui não se lê, decifra-se”)
- atracção pelo jornalista – atracção por uns “Olhos que vêem”, libertação (mas jornalista também é explorador de mulheres)
- não sucumbe à violência patriarcal e da guerra, embora fique marcada. Capaz de discurso e de memória. Fica sozinha.

Elementos simbólicos:

- as cores (amarelo, vermelho, verde);
- os animais (flamingos – beleza / violência; os gafanhotos)
- espelhos, desdobramentos
- o olhar, os véus
- as danças (como danças de espectros)
- os espaços (Stella, o Índico, terra / céu)
- luz / sombra
- evocações intertextuais (bíblicas, homéricas)


e, para finalizar com chave de ouro

O filme
visto por Lídia Jorge


A Margarida Cardoso fez um filme comovente nos dias que correm, em que o olhar está já desgastado com o vermelho do sangue. Poupa-nos à exibição da violência, retirando até alguma brutalidade que o livro, optando por transferi-la para os efeitos psicológicos. Numa altura em que o cinema está saturado de violência, o grande recado é que ela seja dada com subtileza, porque afinal tudo se passa no coração.

Livro e filme teriam sido certamente diferentes se assinados por alguém que tivesse feito a guerra, tivesse passado pela experiência da morte e da decepação, ficando assim definitivamente aniquilado para a subtileza. É preciso dizê-lo: a guerra colonial foi violenta, com aspectos sádicos até. A sua componente trágica é que a família desses soldados estava lá, para que tudo aparecesse de forma natural, como se não passasse de um “acaso de soberania”. Eram pessoas que não combatiam mas ouviam as histórias, a quem acontecia almoçar com um piloto e vê-lo chegar horas depois morto, dentro de um saco. E essa experiência permite um outro tipo de leitura dos acontecimentos. O que me une à Margarida Cardoso foi o termos sido poupadas à experiência concreta da guerra, é isso que nos permite a subtileza.
Entre os vários olhares do livro, a Margarida Cardoso escolheu um, o olhar de descoberta sobre a realidade da violência. O filme poderia chamar-se “A instrução de Eva”.

Leva essa perspectiva a uma potência muito alta, fá-lo com uma extraordinária
coerência, e mantém-se fiel ao espírito do livro pois, no fim de contas, o recado é o mesmo. Este é um filme sobre aquela guerra mas, capaz de saltar por cima do tempo, é afinal um filme sobre todas as guerras.

Excerto de entrevista com Lídia Jorge, autora do romance “A Costa dos Murmúrios


























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2009-09-05

“Aqui na Terra” de Miguel Carvalho (Deriva)




Só para abrir o apetite para a apresentação do livro e leitura de estórias este Outono na Biblioteca Municipal de Famalicão com data ainda a definir...
Não percam.
A junção de uma série de reportagens, revistas e compiladas, a ilustrar o Portugal contemporâneo finalmente publicadas em livro, com a vantagem de incluir todos os ingredientes que poderiam servir de base para o argumento de um filme. Um filme de cuja narrativa principal se destacaria a arquitectura de uma aliciante teoria da conspiração, a qual pode perfeitamente constituir a base de um romance cuja trama ande à volta de uma intriga contemporânea com base em factos reais ocorridos nos últimos trinta anos: desde a investigação do assassínio do Padre Max à morte do Cónego Mello, girando à volta de um combate entre forças políticas atrás das quais se escondem as peças do tabuleiro de xadrez das super estruturas económicas que sustentam o poder no país.


Particularmente saborosa é a última das estórias deste mesmo livro, intitulada “O Imaculado” que expõe o triunfo de uma personagem que poderia figurar na célebre alegoria de Orwell, A Quinta dos Animais, adaptada ao cinema com o título O Triunfo dos Porcos.


Da leitura de Aqui na Terra pode-se contemplar uma paisagem social e económica onde parece triunfar o caciquismo, a radiografia de um país onde a falta de vitamina D , leia-se de Democracia e Desenvolvimento – dois dos três D’s que, a par da Descolonização, constituíam a linha de orientação política em Portugal após o 25 de Abril de 1974 –, implicando um evidente raquitismo no que respeita à assimetria de desenvolvimento regional.


Assumindo uma faceta que muito o aproxima da forma de olhar do antropólogo, pela forma de observar padrões de comportamento e de cultura, conforme refere a Autora do blogue “havidaemmarta”, Miguel Carvalho consegue, ainda assim, transmitir para o papel uma visão romântica, acerca do Portugal mais pitoresco, do qual faz parte a fatia da população de reduzido poder económico mas que vive a vida através da fruição dos pequenos prazeres: Miguel Carvalho dedica-se a explorar os lugares mais recônditos, onde por vezes falta algo tão básico como o saneamento ou a electricidade, onde a população vai, muitas vezes, desaparecendo para levantar voo em direcção a céus onde que abriguem terras que proporcionem melhores oportunidades.


Um país onde, apesar de tudo, existe a esperança (remota) de dias melhores como resultado de uma mudança significativa a implicar uma evidente melhoria de qualidade de vida. Em última instância, recorrendo à via do sobrenatural, obrigando muitas vezes a que se acenda, uma vela ao Criador e, também… ao Outro… só por via das dúvidas.


Os títulos das estórias estão, todos eles, relacionados referências religiosas: “O Pecador”; “O Altar”; “O Cónego”; “A Seita”; “A Purificação”; “A Celebração”; “O Pastor”; “A Cruz”; “O Ritual”; “A Agonia”; “O Santuário”; “O Martírio”; “A Aparição”; “A Devoção”; “A Via Sacra”; “A Romaria”; “A Relíquia” e “O Imaculado”.


A ironia subjacente aos títulos escolhidos para cada uma das estórias/narrativas, aponta para um país muito menos laico do que aquilo que se poderia pensar, atendendo a que estamos na em plena Europa do século XXI, conforme se adivinha pela leitura da epígrafe de Alexandre O’Neill:


O Padreca, o diabo, a criadita,
o tarata, avelha alcoviteira, o galã
e, às vezes, um verdadeiro rato branco trapezista
tramaram para nós a estafada estória
da nossa própria vida


Aqui o trabalho quase que de antropólogo efectuado por Miguel Carvalho funde-se com a missão do repórter, envolvendo as gentes do interior Norte e Centro de Portugal. A escrita é em Aqui na Terra é dotada de um toque de comicidade, que leva o colorido das personagens reais destas estórias e dá um sabor todo especial e pitoresco à obra. No entanto, Aqui na terra é um licvro onde sobressai humor, muitas vezes crítico e sarcástico, mas sobretudo humano, deixando, por vezes, transparecer alguma desilusão face a um vento de mudança que, nalguns recantos deste rectângulo do extremo ocidental do continente europeu nem chegou a soprar. Onde nos apercebemos que, por exemplo, que na meca do turismo religioso em Portugal existem contrastes chocantes, apresentando-se como um lugar onde se constata a cegueira de um povo dentre o qual, tal como no livro de José SaramagoEnsaio sobre a Cegueira -, só os santos mantém os olhos abertos mirando, com sobranceria, a humanidade.


Estórias como “O Cónego” ou “A Seita” evidenciam aqueles que detêm a audácia de remar contra a maré ideológica terão de pagar a factura com juros de agiota. Tanto em 1976 como nos dias de hoje. Sobretudo nas localidades onde governadas por gangsters e onde o tempo parece não correr, onde tudo permanece tão imutável como no tempo em que Eça de Queirós escreveu A Cidade e as Serras.


O monólogo do narrador na crónica do Festival de vilar de Mouros é, definitivamente, brilhante em termos de dotação de qualidade literária, pela fina ironia empregue de forma magistral ao longo de todo o texto, característica de que se serve o Autor para pintar todo um quadro de comportamentos sociais e, ao mesmo tempo, comparar de forma crítica e lúcida os gostos musicais de várias gerações cujos valores, formas de estar de estabelecer comunicação com o outro se projectam na música…


Logo a seguir, o Autor faz-nos chegar um apetitoso estudo sobre o universo da chamada “música pimba” a confirmar o gosto colectivo e secular, tradicionalíssimo e cultural, bem português, pelas cantigas de escárnio e mal-dizer.


Por último, a pérola negra da obra: a crónica “O Imaculado”, ou a dissecação de uma figura ávida de poder e, também, a mais sinistra personagem do livro, cuja leitura aponta alguns indícios acerca da extensão do poder do vil metal, na consolidação e expansão de pessoas individuais que se colocam acima da lei e se infiltram nas esferas do poder através de ameaças, intimação e violência, verbal e física, actuando como algumas personagens “O Polvo” , uma popular série italiana de há algumas décadas atrás, a causar a asfixia da estrutura daquele que deveria ser o poder legítimo.


Que os deuses tenham piedade.


Se puderem.


Se conseguirem.


Se os deixarem.




Cláudia de Sousa Dias

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