Photo by Sandra for 
Resim & FotoğrafMadame despreza os seus clientes porque querem viver no seu
    funesto hotel.
Eu estou no quarto da esquina do segundo andar: uma cama
    miserável, uma lâmpada nua no tecto.
Surpreendentemente, pesados cortinados por onde desfilam um quarto
    de milhão de ácaros invisíveis.
Diante do hotel, uma rua pedonal
por onde passam turistas lentos, velozes académicos, homens vestidos
    com roupas de trabalho que levam pela mão bicicletas escandalosas.
Os que crêem que fazem girar o mundo e os que crêem que dão
    voltas impotentes, sob a palmatória do mundo.
Um rua por onde andamos todos, onde desemboca?
A única janela do quarto dá para um lugar muito diferente:
    a Praça Selvagem,
um chão que borbulha, uma extensa superfície palpitante, às vezes cheia
    de gente e às vezes deserta.
O que levo dentro materializa-se nessa praça, todo o horror, todas
    as esperanças.
Todo o inconcebível que no entanto vai ocorrer.
Tenho umas margens muito baixas, se a morte subisse dois centímetros
    inundar-me-ia.
Sou Maximiliano. Estamos no ano de 1488. Têm-me fechado aqui
    em Brujas
porque os meus inimigos estão indecisos –
são um perversos idealistas e o que fizeram no pátio de trás
    dos horrores não o posso descrever, não posso converter
    o sangue em tinta.
Sou também o homem macaco que arrasta a sua escandalosa
    bicicleta pela rua.
Sou também aquele a quem se vê, o turista que caminha e se detém,
    caminha e se detém
e passeia o seu olhar sobre os pálidos rostos queimados pela luz da
    lua e as inchadas telas dos antigos quadros.
Ninguém decide aonde vou, e eu muito menos, no entanto cada passo
    está onde deve estar.
Vagar pelas guerras fósseis onde todos são invulneráveis porque
    todos estão mortos!
As pulverulentas massas de folhagem, os muros com as suas ameias, as
    veredas dos jardins onde as lágrimas petrificadas rangem
    sob os tacões…
Tão inesperadamente como se tivesse pisado o cordão que desencadeia
    o alarme, os sinos começaram a tocar no campanário
    anónimo.
Carrilhão! O saco rebenta pelas costuras e os acordes rodam sobre
    a Flandres.
Carrilhão! O ferro fundido dos sinos, salmo e canção melódica,
    tudo em um, escrito no ar tremulamente.
O trémulo doutor escreva sua receita que ninguém pode decifrar
    ainda que reconheçam a sua caligrafia…
Sobre telhados e praças, sobre erva e hortos
soam os sinos para vivos e mortos.
Entre Cristo e Anticristo a distinção redunda indiferente!
Voando os sinos levam-nos a casa finalmente.
Calaram-se.
Regressei ao quarto do hotel: a cama, a lâmpada, os
    cortinados. Aqui ouvem-se ruídos estranhos, o sótão
    arrastando-se sobe as escadas.
Estou deitado na cama com os braços em cruz.
Sou uma âncora que se cravou profundamente e que domina
    a sombra imensa que flutua aí em cima,
o grande desconhecido de que faço parte e que seguramente é
    mais importante do que eu.
Fora passa a rua pedonal, a rua onde morrem os meus passos
    assim como o escrito, o meu prólogo ao silêncio, o meu salmo voltado
    de revés.
N. do T. Maximiliano: Maximiliano I de Habsburgo, Imperador do México; Brujas: cidade da Flandres.
       Det vilda torget, 1983
Versão minha - © Amadeu Baptista
Etiquetas: Poemário; Thomas Tranströmer