2012-11-27

A TIJELA DA SOPA


Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cupppens)

A TIJELA DA SOPA


Uma sopa de brancura fria
espera
que um retrato, sem dor ainda
se revele eterno, todo
o retrato é assim
preserva olhos discretos
e outros olhos mudos
abertos
que por uma vez percorrem
todas as distâncias
no meu corpo.


J. T. Parreira

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2012-11-26

DUAS ESTRELAS

Photo by Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.


DUAS ESTRELAS


Duas estrelas apagam
o brilho dos olhos, o branco
é quase intenso, fere
como fumo e cinza
nosso olhar desprevenido
Duas estrelas entram
pelas janelas da minha casa
e aí estremecem a água dos meus olhos.


João Tomás Parreira

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Pyotr Ilyich Tchaikovsky: Dança Húngara, de O Lago dos Cisnes






Photo by Project Noah

Sentou-se esta mulher no banco vermelho
do extremo sul da floresta
com a mão levemente soerguida
sobre o campo raso das palavras.


Ao longe o mar e os mortos perscrutava
com o olhar terrível iluminado
por anjos e demónios
no horizonte sem fim dos seus sentidos.


Possessa está no oiro da idade.
As aves conclama para que gritem
no infinito perene que na boca


lhe arde e queima o coração.
Uma fita de fogo a extasia.
E louca prevalece além da vida.

in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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2012-11-15

Antonio Vivaldi: Outono, de As Quatro Estações

Photo by Erkan Torunn for Resim & Fotoğraf


Que memória haverá da gôndola vermelha que atravessa o canal,
quando eu morrer?
Que sombras beneficiarão a Piazzeta
e iluminarão a noite,
quando eu morrer?
Quem consolará Beatrice, Belvidera
e Orietta,
quando eu morrer?
Continuarão a chamar-me demónio
e a condenar a angústia
que me afeiçoa às mulheres e me afasta do culto,
quando eu morrer?
Que música ondulará sobre Sant'Angelo,
quando eu morrer?
E as órfãs,
as órfãs do Pio ospedale della Pietà,
quem velará o sono das órfãs,
quando eu morrer?
Quem se debruçará da janela
para melhor escutar a plangência divina
que exprime o sublime,
quando eu morrer?


Deus?
Os anjos?
O próprio outono?


in O Bosque Cintilante, Maia, Cosmoroama, 2008
© de Amadeu Baptista

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ALLEGRO

Photo by Resim & Fotoğraf


Após um dia negro toco Haydn
e sinto um humilde calor nas mãos.


As teclas obedecem. Golpeiam doces martelos.
O acorde é verde, vivo e sereno.


O acorde diz que a liberdade existe
e que alguém não paga imposto a César.


Meto as mãos nas algibeiras haydn
e imito alguém que contempla o mundo com serenidade.


Faço bandeira de haydn – isso quer dizer
«Não nos rendemos. Mas queremos paz.»


A música é um edifício de cristal na encosta
onde voam as pedras, as pedras giram.


E as pedras atravessam a casa rolando
mas todos os vidros permanecem intactos.

Thomas Trantrömer
Den halvfädiga himlen, 1962

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2012-11-13

CARRILHÃO

Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


Madame despreza os seus clientes porque querem viver no seu
funesto hotel.
Eu estou no quarto da esquina do segundo andar: uma cama
miserável, uma lâmpada nua no tecto.
Surpreendentemente, pesados cortinados por onde desfilam um quarto
de milhão de ácaros invisíveis.


Diante do hotel, uma rua pedonal
por onde passam turistas lentos, velozes académicos, homens vestidos
com roupas de trabalho que levam pela mão bicicletas escandalosas.
Os que crêem que fazem girar o mundo e os que crêem que dão
voltas impotentes, sob a palmatória do mundo.
Um rua por onde andamos todos, onde desemboca?
A única janela do quarto dá para um lugar muito diferente:
a Praça Selvagem,
um chão que borbulha, uma extensa superfície palpitante, às vezes cheia
de gente e às vezes deserta.


O que levo dentro materializa-se nessa praça, todo o horror, todas
as esperanças.
Todo o inconcebível que no entanto vai ocorrer.


Tenho umas margens muito baixas, se a morte subisse dois centímetros
inundar-me-ia.


Sou Maximiliano. Estamos no ano de 1488. Têm-me fechado aqui
em Brujas
porque os meus inimigos estão indecisos –
são um perversos idealistas e o que fizeram no pátio de trás
dos horrores não o posso descrever, não posso converter
o sangue em tinta.


Sou também o homem macaco que arrasta a sua escandalosa
bicicleta pela rua.


Sou também aquele a quem se vê, o turista que caminha e se detém,
caminha e se detém
e passeia o seu olhar sobre os pálidos rostos queimados pela luz da
lua e as inchadas telas dos antigos quadros.


Ninguém decide aonde vou, e eu muito menos, no entanto cada passo
está onde deve estar.
Vagar pelas guerras fósseis onde todos são invulneráveis porque
todos estão mortos!


As pulverulentas massas de folhagem, os muros com as suas ameias, as
veredas dos jardins onde as lágrimas petrificadas rangem
sob os tacões…


Tão inesperadamente como se tivesse pisado o cordão que desencadeia
o alarme, os sinos começaram a tocar no campanário
anónimo.


Carrilhão! O saco rebenta pelas costuras e os acordes rodam sobre
a Flandres.
Carrilhão! O ferro fundido dos sinos, salmo e canção melódica,
tudo em um, escrito no ar tremulamente.
O trémulo doutor escreva sua receita que ninguém pode decifrar
ainda que reconheçam a sua caligrafia…


Sobre telhados e praças, sobre erva e hortos
soam os sinos para vivos e mortos.
Entre Cristo e Anticristo a distinção redunda indiferente!
Voando os sinos levam-nos a casa finalmente.


Calaram-se.


Regressei ao quarto do hotel: a cama, a lâmpada, os
cortinados. Aqui ouvem-se ruídos estranhos, o sótão
arrastando-se sobe as escadas.


Estou deitado na cama com os braços em cruz.
Sou uma âncora que se cravou profundamente e que domina
a sombra imensa que flutua aí em cima,
o grande desconhecido de que faço parte e que seguramente é
mais importante do que eu.


Fora passa a rua pedonal, a rua onde morrem os meus passos
assim como o escrito, o meu prólogo ao silêncio, o meu salmo voltado
de revés.




N. do T. Maximiliano: Maximiliano I de Habsburgo, Imperador do México; Brujas: cidade da Flandres.


Det vilda torget, 1983

Versão minha - © Amadeu Baptista

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2012-11-11

A CIÊNCIA DO AMOR

Photo by Emira for Resim & Fotoğraf

O amor é um acordo que nos escapa
premissas traficadas sem certeza noite fora
em casas devolutas, em temporais, em corpos que não o nosso
aluviões para tentar de forma contínua
num sofrimento corrosivo que ninguém consegue
não chamar também de alegria

Pensamos que quando chegasse as nossas vidas acelerariam
mas nem sempre é assim:
há emoções que nos aceleram
outras que nos abrandam

Um mês ou um século mais tarde
movem-se ainda,
tão subtilmente que não se notam

José Tolentino Mendonça

[in Estação Central, Assírio & Alvim, 2012]

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CARRIL





Duas da madrugada: noite luarenta. O comboio detém-se
no meio da campina6. Bem ao longe, pontos luminosos, urbanos,
tremulam friamente a perderem-se de vista.

O mesmo sucede quando sonhamos tão profundamente
que nunca havemos de nos recordar onde estivemos
ao regressar ao nosso quarto.

Ou como alguém com uma doença tão adiantada
que todos os anos vividos passam a ser pontos trémulos,
um enxame frio e sem importância no horizonte.

O comboio continua sem se mexer um milímetro.
São as duas da madrugada: luar intenso, poucas estrelas.




Thomas Trasntrömer

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