"Melro de Penas azuis"
O meu gato observa atentamente o melro indiano da minha mãe, dentro da gaiola. Um melro de de penas azuis escuras, safiras iridiscentes, como o pescoço de um pavão. A curiosidade e o instinto de caçador são activados pelos pulinhos nervosos do pássaro, que vem comer à minha mão. No Inverno, as suas patitas negro-azeviche estão, normalmente, geladas, pelo que o animal se sente bem ao empoleirar-se na minha mão, para fugir ao frio do poleiro, que está, mesmo assim, cuidadosamente forrado a tecido.
Se calhar, devíamos trocar a seda por veludo no Inverno…
Trata-se de um melro que não canta como os outros melros – pretos, de bico alaranjado – europeus. É um melro que grasna. E que quase fala. Também gosta de assobiar ao desafio com o pessoal da casa. É aquilo a que se pode chamar de um pássaro interactivo.
Chamei-lhe Júlio.
Por causa do gato da minha avó.
Júlio, também.
O gato mais inteligente de todos os tempos.
E bravio. Como um lince.
Indomável e independente. Completamente senhor do seu nariz.
Um gato que esperava cautelosamente a minha avó sair de casa para se enfiar na cama onde dormiam a minha mãe e as minhas tias, que o adoravam.
Apesar das pulgas.
Inteligente, também, pela precisão com que calculava a exacta fracção de segundos de distracção da minha avó e roubar o carapau de cima da banca de granito na cozinha onde ela preparava o jantar.
Ou quando empurrava um ovo cru de cima da mesa para que este se estatelasse no chão da cozinha, que ele limpava cuidadosamente, deixando apenas as cascas como prova do crime!
Mas a capacidade de raciocínio do Júlio-pássaro, o de penas azuis-safira – que se tornam esmeralda ou ametista consoante a intensidade da luz, penas onde apenas ao sol do meio-dia se distinguem os ocelos, quase negros, nas extremidades das asas – não lhe fica nada a dever.
Mal ouve a porta do frigorífico a ser aberta ou a gaveta dos talheres, põe-se logo a grasnar, como que a dizer: “Não se esqueçam de mim! Sou tão gente como vós!”
O que é verdade.
Pelo menos na necessidade de comunicar, os pássaros tornam-se tão gregários e sociáveis quanto os homens.
Ou até mais.
O que tenho observado leva-me a concluir que, quanto mais conversa se dá a um pássaro, mais homem ele se julga.
Até se esquece que está prisioneiro. Porque o amor que lhe temos impede-o de definhar.
De tristeza.
De solidão.
De saudade…
O meu gato de olhos verdes tem ciúmes.
Logo que me vê dar de comer ao Júlio, pela manhã, vem roçar-se nas minhas pernas, nuas.
Não sabe que os amo aos dois. De forma igual. Mas por razões diferentes.
Ambos se assemelham.
Na astúcia. E na inteligência, manifesta na capacidade de memorizar e associar elementos. E na dedicação àqueles de quem recebem amor.
O gato nunca esquece quem o maltrata. Mais cedo ou mais tarde terá de dar o troco.
De preferência quando o agressor já tiver esquecido.
Ama as pessoas que o mimam, mas esquece-se delas, se elas o esquecerem.
Olho por olho…
Já o pássaro prisioneiro precisa da atenção humana para sobreviver. Mesmo tendo companheira.
Mas, na verdade, mesmo tendo nascido em cativeiro, sem possibilidade de sobreviverem sozinhos, nunca precisarão tanto de nós como nós deles…
Do seu canto.
Da sua beleza.
Do seu amor.
Desert Rose
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