“Uma noite poética de Verão”
Sentado no canto da janela que dá para o extenso jardim onde se vê o salgueiro choramingas a mergulhar os ramos no pequeno regato que corre na direcção Norte-Sul, observo as andorinhas que volteiam, lá em cima. Por vezes, surpreendem-me com os seus voos rasantes em busca de insectos, velozes como flechas disparadas pelo arco de Arthemis.
A vidraça ocupa toda a parede que dá para Sul, e pela manhã, bem cedo, pode-se observar, daqui do parapeito, o sol-nascente a surgir por entre as colinas.
No interior da loja, as mesas reservadas para os convidados – brancas como todo o resto da decoração, onde as paredes imaculadas contrastam com o vermelho sanguíneo dos quadros e das almofadas do banco que ocupa todo o comprimento da parede perpendicular à janela – estão dispostas junto à vidraça.
Começam a chegar os poetas. Mas antes de se sentarem à mesa, onde será servido o jantar, os seus olhares detém-se, gulosos, a admirar as prateleiras de onde lhes sorriem provocantemente as compotas – de pêssego, amora preta, figo, abóbora com amêndoas, mirtilo, maçã, creme de cenoura – e os requintadíssimos chocolates parisienses; do lado oposto estão os patês, os vinagres aromáticos e, junto à porta de entrada, os melhores vinhos, das castas mais raras vindas de todo o país.
É altura de se dirigirem para a mesa.
Porque hoje é noite pertence à Poesia. E à poesia subordinada aos prazeres da mesa.
Uma orgia de sabores em nome do Pecado da Gula…
Os amigos de Luna, escolheram este lugar para se reunirem e “colocar a conversa em dia” enquanto se degustam des plus exquisites gourmandises.
Solta-se o aroma da poesia ao som dos acordes da guitarra do Sr. Carlos, enquanto que a lua avermelhada de Agosto se ergue, cheia, no horizonte.
Os intervalos são preenchidos com a beleza nostálgica da música de Zeca Afonso…
Ou com os versos de Neruda, em castelhano, pela voz de Luna.
Ele, sombrio, observa-a a um canto. Gosta de ouvi-la declamar, embora não seja amante de poesia.
Ele é somente o amante de…
…Luna.
Pelo canto do olho observo como a amiga de Luna se insinua tentando cativá-lo enquanto que e minha dona, de vestido sanguíneo como as figuras das telas dos quadros da que enfeitam as paredes, declama Los Muertos de la Plaza..
Luna tem garras afiadas, que exibe discretamente.
O amante só tem olhos para ela.
Esgotado o repertório sibarita, dionisíaco, e recheado de fina ironia, criteriosamente seleccionado pelo Professor, surge o momento dos “espontâneos”.
Após um momento de silêncio, ouvem-se os primeiros acordes da Habanera de Georges Bizet e eia que entra…
Carmen.
Luna Carmen.
Como um cravo vermelho vestida. De lábios carmim e cabelos negros entre os quais espreita uma rosa mais rubra que o mais rutilante dos rubis de Caxemira.
A sua boca abre-se e ela canta:
L’amour est un oiseau rebelle
Que nul ne peut aprivoiser
Et c’est bien en vain qu’on l’appelle
S’il lui convient de refuser.
Rien n’y fait ménace ou prière
L’un parle bien l’autre se tait
Et c’est l’autre que je préfère
Il n’a rien dit mais il me plaît.
L’amour…l’amour…l’amour…l’amour…
L’amour est un enfant de Bohéme
Il n’a jamais, jamais connu de loi
Si tu ne m’aime pas, je t’aime,
Si je t’aime, prends garde à toi.
L’oiseaux que tu coyais surprendre
Batit de aile et s’envola
L’amour est loin tu peux l’attendre
Tu ne l’attends plus il est lá.
Tout autour de toi vite, vite
Il vient s’en va puis il revient
Tu croyais le tenir il t’evite
Tu crois l’éviter il te tient.
L’amour…l’amour…l’amour…l’amour…
L’amour est un enfant de Bohême
Il n’a jamais, jamais connu de loi
Si tu ne m’aime pas je t’taime
Si je t’aime…prends garde à toi.
O amante cora.
A rosa cai-lhe no colo.
Todos os olhares convergem para Luna. Ou Carmen.
A rival abandona a sala, batendo com a porta.
Lá fora, um carro arranca, ouvindo-se o cantar dos pneus.
A festa continua.
Desert Rose
Etiquetas: Luna e o gato