2012-10-13

Maria do Rosário Pedreira4

Photo by Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.

Lembrava-se dele e, por amor, ainda que pensasse
em serpente, diria apenas arabesco; e esconderia
na saia a mordedura quente, a ferida, a marca
de todos os enganos, faria quase tudo

por amor: daria o sono e o sangue, a casa e a alegria,
e guardaria calados os fantasmas do medo, que são
os donos das maiores verdades. Já de outra vez mentira

e por amor haveria de sentar-se à mesa dele
e negar que o amava, porque amá-lo era um engano
ainda maior do que mentir-lhe. E, por amor, punha-se

a desenhar o tempo como uma linha tonta, sempre
a caira da folha, a prolongar o desencontro.
E fazia estrelas, ainda que pensasse em cruzes;
arabescos, ainda que só se lembrasse de serpentes.

Maria do Rosário Pedreira
[in Poesia Reunida, Quetzal, 2012]

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Maria do Rosário Pedreira3

Photo by Resim & Fotoğraf




Lê , são estes os nomes das coisas que
deixaste – eu, livros, o teu perfume
espalhado pelo quarto; sonhos pela
metade e dor em dobro, beijos por
todo o corpo como cortes profundos
que nunca vão sarar; e livros, saudade,
a chave de uma casa que nunca foi a
nossa, um roupão de flanela azul que
tenho vestido enquanto faço esta lista:

livros, risos que não consigo arrumar,
e raiva – um vaso de orquídeas que
amavas tanto sem eu saber porquê e
que talvez por isso não voltei a regar; e
livros, a cama desfeita por tantos dias,

uma carta sobre a tua almofada e tanto
desgosto, tanta solidão; e numa gaveta
dois bilhetes para um filme de amor que
não viste comigo, e mais livros, e também
uma camisa desbotada com que durmo
de noite para estar mais perto de ti; e, por

todo o lado, livros, tantos livros, tantas
palavras que nunca me disseste antes da
carta que escreveste nessa manhã, e eu,

eu que ainda acredito que vais voltar, que
voltas, mesmo que seja só pelos teus livros.

Maria do Rosário Pedreira
[in Poesia Reunida, Quetzal, 2012]

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Maria Rosário Pedreira2

Photo by Emily Cape for Resim & Fotoğraf

Vejo brilhar uma estrela que,
pelos vistos, já morreu – assim
a minha vida: luminosa e, porém,
assombrada pela escuridão. Sorte a

daqueles que só conhecem a morte
pelas mãos frias – toda a vida fiz luto
por corpos ainda sãos. A felicidade

faz-me, apesar de tudo, infeliz –
é sempre a ideia do fim que traz
a música certa para os meus versos.


Maria Rosário Pedreira
[in Poesia Reunida, Quetzal, 2012]

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Photo by Esradan for Resim & Fotoğraf




As palavras começam a ficar velhas: têm
dores nas articulações e rangem, de vez
em quando, sem razão; reclamam óleos
e resinas, tempo e açúcares mais lentos.

Mas também eu estou velha demais para
oficinas, tão cansada de livros e papéis,
morta por viver outras coisas – por amor,

talvez espreitasse de novo nas mangas do
mundo e escrevesse uma fiada de búzios
no pulso da areia. Mas quantos dos teus
beijos perderia? Perdoem-me os que

ainda esperam por mim. Não sei se volto.

Maria do Rosário Pedreira
[in Poesia Reunida, Quetzal, 2012]

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2012-10-02

Rui Baião5

Photo by Project Noah.

Três janelas e um pântano.
Falemos de casas devolutas,
das muitas pontes especulativas,
da renovação das veias e dos gritos,
do dedo no gatilho dentro da cabeça,
dos fungos que escureçam tudo à volta.
Falemos de nós, do rastilho que do pulso vá
à idade do olhar, e daí à sebenta da infâmia.


Rui Baião
[in Rude, Averno, 2012]

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Rui Baião4

Photo by J'aime l'art et la nature Flora(Josiane Cuppens)

O homem é o medo com uma dor altiva lá dentro.
Um homem é tudo e nada, tão próximo de não saber.
Um homem não se lembra de desaparecer.
Depois, as dúvidas e o nojo. Depois, é só tu quereres
o rude rigor em acção.

Rui Baião
[in Rude, Averno, 2012]

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Rui Baião 3

Photo by Pete Oxford for Lince Ibérico (Lynx Pardinus) S.O.S.


Entre arames e ruínas até ao carreiro das formigas.
Sempre uma última vez: mesa posta sem um único idioma
ou a glória de nada querer. À noite,
com os dentes na cal. À noite,
com a força das ancas. À noite,
com feridas lácteas pela pequena face,
ou bátegas quase gestos.


Rui Baião
[in Rude, Averno, 2012]

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Rui baião2


Photo by Resim & Fotoğraf

Os dois sem palavras, a noite sem luvas nem nuvens,
o ruído à ponta da corda. O gelo fulmina, cerca
a fêmea e o erro, a boca fula a entrar
numa lua de pedra.




Rui Baião

[in Rude, Averno, 2012]

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Rui Baião 1


Photo by Sandra for Resim & Fotoğraf


Perder tudo ao jogo das ofensas,
ser ravina, antiga noiva dos céus.
Ter o mal à mão, a foice no sangue,
a gárgula que o auge dissesse
a nenhuma divindade: sub-
trair o nada ao nada, subsistir,
buscar razia e razão, acreditar: hoje
menos que ontem, amanhã
menos que hoje…

Rui Baião
[in Rude, Averno, 2012]

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2012-10-01

Catulo2




Photo by Emily Cape for  Resim & Fotoğraf.

Vivamos, Lésbia minha, e amemos.
A má-língua dos velhos mais sisudos
para nós não valha mais do que um tostão.
Podem os dias morrer e nascer:
quando a breve luz de vez morrer
noite perpétua devemos juntos dormir.
Dá-me beijos mil, e depois cem,
e depois mil outros, e depois mais cem,
e depois ainda mais mil, e depois cem.
Depois, quando muitos dermos,
baralhá-los-emos para não sabermos quantos,
ou não possa homem mau invejar-nos
ao saber que tantos beijos demos.

Catulo
in "Carmina"

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