"A Cidade dos Mortos" de Sergio Tréffaut em Vila Nova de Famalicão
No passado dia 26 de Maio, o Cineclube de Joane apresentou o documentário sobre a vida num cemitério da cidade do Cairo. O filme foi realizado por Sérgio Tréfaut, que esteve presente na sessão para uma troca de impressões com os espectadores. Tréfaut é filho de pai português e de mãe francesa, tendo vivido em Portugal, Brasil e França. No entanto, a cidade onde passou mais tempo foi Lisboa – cerca de 25 anos. É formado em Filosofia, pela Sorbonne, foi jornalista, fez cinema e teatro, assim como programação cultural - organização de festivais e exposições.
Tréfaut já não é um estreante em matéria de realização de documentários tendo, inclusive, já efectuado vários trabalhos do género sobre a imigração em Lisboa. Mas n’ “A Cidade dos Mortos” o objecto de análise é a vida que circula pelas encruzilhadas do Grande Cemitério – Necrópole – do Cairo, uma micro-cidade dentro da capital egípcia, um cemitério muito especial, habitado por gente… viva.
O realizador após ter situado a execução do trabalho entre 2007 e 2009, antes da tão mediatizada Revolução Jasmin, chamou a atenção para o facto de o tema tratado no filme não ser um fenómeno típico nem do Islão, nem do próprio Egipto, tendo apenas e só a ver com os fenómenos demográficos que se verificaram naquela cidade nos últimos cem anos e que deram origem ao aparecimento deste “nicho social.” Para o realizador, este filme foi uma autêntica viagem alucinatória e a sua execução uma verdadeira saga cheia de obstáculos, atrasos e restrições de toda a espécie.
“Nos anos 1960, deu-se o boom demográfico no Egipto (acompanhando a tendência do pós-guerra) acompanhado de um grave problema de habitação no Cairo: as casas escasseavam e o cemitério passou a acolher desalojados da guerra isrelo-árabe. Os governos que se sucederam tentaram, ao longo das décadas seguintes, realojar os habitantes que, entretanto, foram ocupando as casas do cemitério, mas o número de habitantes era tal que tornou aquela resolução particularmente difícil. É, também, uma zona muito próxima do centro nevrálgico da cidade, o que a torna muito apetecível às pessoas que ali se estabeleceram instalando lá, também, a sua forma de sobrevivência (lojas, cafés, oficinas…). Aos olhos de um estrangeiro aquela necrópole não parece um cemitério.”
Quanto ao fenómeno insólito de haver no Cairo um lugar onde o quotidiano dos vivos é acompanhado pelos rituais que envolvem o tratamento dos mortos, instalando as suas casas nos túmulos das famílias que os alugam, Sérgio Tréfaut comenta:
“No Egipto, houve sempre uma tradição antiga, de origem faraónica, de visitar os mortos, de “acampar”, no cemitério, junto aos túmulos, de cozinhar no local…Durante o século XIX, deu-se uma fase de grande enriquecimento o que fez com que fossem construídas “casas” junto às sepulturas, onde os familiares habitavam temporariamente com os seus mortos”.
O realizador fez notar, ainda, que este foi um filme “clandestino”, tendo sido inclusive inspirado por um amigo egípcio a residir em Lisboa.
“A dificuldade em obter a autorização para fazer este filme deveu-se ao facto de o povo egípcio ser um povo bastante orgulhoso do seu passado e da sua história, não querendo ser exibido no estrangeiro apresentando uma imagem miserável. Depois, há os constrangimentos culturais…”
“Foi um vai-e-vem de uma repartição para outra, durante quinze dias. Nunca obtive resposta. Tentou-se obter parcerias com produtoras locais, tentámos ao longo de doía a três meses e, no fim, desistimos. Optámos, então, pela via clandestina. Quando fomos abordados pela polícia, mostrámos o formulário do requerimento da autorização para filmar, dando a ideia que estávamos a tratar do processo. Para todos os efeitos estávamos a tomar providências para obtê-la…”
O realizador prosseguiu o debate, em conversa amigável com os espectadores, durante a qual deu a entender que a intenção do filme não foi a de explorar numa perspectiva etnológica, ao estilo National Geographic, mas antes entrar no quotidiano das pessoas que escolheram o cemitério para viver. Para Sérgio Tréfaut, o que sobressai no filme é aquilo que ele pretendia realçar: que aquele é um lugar “vivo”, ao contrário do que é habitual em se tratando de cemitérios.
“Ali, o que é interessante é o facto de as pessoas conviverem com a morte de uma forma completamente desdramatizada. E de terem, também, a consciência da desmaterialização do corpo.”
Falando da relação que se estabeleceu entre os locais e a equipa de filmagem o realizador fez notar que:
“Um facto curioso é que, independentemente da minha vontade, a relação que se estabelecia com as pessoas é uma relação carinhosa, eles tratam as pessoas por “querido” (habib). Em relação aos estrangeiros, convém desmistificar: os egípcios não são nada anti-cristãos. Embora, para eles, os Judeus sejam o Diabo. No entanto, eu não lhes posso dizer que sou ateu. Eles não conseguem compreender o não-crente. Isto para eles é pior do que ser judeu. No Islão, para lá do Diabo, são os ateus…”.
Após a sessão, a conversa ter-se-ia prolongado pela noite dentro, não fosse o adiantado da hora. Soube a pouco. Ficámos a saber um pouco mais do Egipto profundo. O Egipto que não vem anunciado nos guias turísticos, numa altura em que ainda não sopravam os ventos da mudança…
Cláudia de Sousa Dias