O passarinho Lá-Si-Dó vivia numa árvore muito grande, enorme. Era uma pereira de folhas muito verdes, carregada de flores brancas e diáfanas que caíam no chão durante a Primavera, formando um espesso tapete, macio como a seda da longínqua China. No Verão, a pereira dava frutos grandes e sumarentos com que o passarinho Lá-Si-Dó se deliciava. A árvore erguia-se no meio de um grande jardim povoado de margaridas, branquinhas como flocos de neve, rosas perfumadas de todas as cores, deslumbrantes narcisos brancos e amarelos-dourados, elegantes e altaneiras tulipas e papoilas de um vermelho brilhante, cor-de-sangue.
Lá-Si-Dó era pequenino, amarelo, de peito branco, com um bico de uma cintilante tonalidade laranja dourada, que reflectia o sol nascente da alvorada de Junho. Possuía, ainda, uns inimagináveis e sonhadores olhos azuis celestes.
Todas as manhãs, ao romper do dia, Lá-Si-Dó tratava de divulgar, a plenos pulmões, as notícias da manhã aos seus amigos: os melros, os pintassilgos, o rouxinol cinzento do bosque, a cotovia e a calhandra.
Mas quem gostava, realmente, de acordar ao som daquele chilrear, semelhante ao das aves do paraíso, das ilhas do Pacífico, era o cãozinho, Puffy, e o pequeno hamster, Kikito, da Quinta das Amendoeiras, em Vila Alva, situada nos arredores de Cuba, uma pitoresca Vila a norte de Beja. Estes eram os seus dois melhores amigos.
Puffy costumava ser, um cachorrinho muito brincalhão. Adorava fazer travessuras: roer os chinelos da pequena Ângela, a menina da casa, trazer a manta de lã, que costumava estar no seu quartinho privado, para o quarto da dela, mantendo o hábito lá dormir todas as noites. Se os donos insistiam para que ele ficasse no seu próprio quarto, na arrecadação, ele chorava de tal maneira e toda a noite, que se tornava impossível dormir em qualquer das divisões da casa da quinta.
Puffy tinha uns olhos intensamente negros, brilhantes como cetim, focinho achatado, tricolor: castanho-claro, castanho-escuro e preto e, também, um rabo curtinho. Era um cão muito “fofo”, com aquele aspecto felpudo e redondo como uma bolinha tigrada. Um belo exemplar de rafeiro alentejano.
Em casa da Ângela, num buraco por detrás da parede da despensa, vivia um animal muito sinistro, o Grande Rato Carambol, da família das Ratazanas. Carambol é um grande e gordo Ratão, castanho com pintas pretas, um enorme rabo de um rosa muito escuro – assim mais para o vermelhusco –, olhos pretos e pequeninos, grandes orelhas, compridos bigodes e, por fim, um longo e bicudo nariz. Devido a estas duas últimas características – era impossível escapar-lhe fosse o que fosse enquanto viveu na casa da Quinta das Amendoeiras – nada lhe escapava. Nem a mais pequena migalhinha de bolo. E mesmo os mais leves passinhos de Kikito, na alcatifa, raramente lhe passavam despercebidos. Sabia de todos os movimentos de todos os habitantes da casa, pelo que, por vezes, Puffy, Kikito e Lá-Si-Dó chegavam mesmo a pensar se este bicharoco não teria poderes mágicos ou sobrenaturais.
Todas as noites, Carambol saía para visitar a despensa, tirar tudo o que lhe apetecia e pregar partidas pela casa toda. A cama onde dormia era feita de uma lata de atum, com pedaços de algodão sujo a fazer de colchão e folhas semi-apodrecidas. O tecto tinha buracos, por onde entrava a chuva, nos dias de mau tempo. A toca de Carambol estava ligada à rede de esgotos do Município que, por sua vez, se ligava com a capital de província, a sul. Era através desse gigantesco e complicado labirinto de esgotos que aquela descomunal ratazana comunicava com os seus parentes. Esse esgoto vai, também, dar ao mar, onde vivem, ainda, alguns dos amigos de Lá-Si-Dó, que é um passarinho muito viajado.
Mas isso fica para mais tarde. Voltemos, por agora, então, ao sinistro Carambol.
Devido às más condições habitacionais em que vivia, Carambol odiava Puffy e Kikito, por considerá-los injustamente privilegiados. Kikito sempre foi, normalmente, um hamster muito bem comportado. Quase nunca saía da gaiola, onde tinha todos os brinquedos de que mais gostava e a sua ração diária de sementes de girassol.
Um dia, Carambol, farto da situação, que considerava injusta e discriminatória por parte dos donos da quinta que nunca o convidaram para morar dentro de casa, decidiu engendrar um plano, de maneira a que os dois amigos fossem expulsos de casa e ele se tornasse senhor absoluto de toda a mansão.
«Eh!Eh!Eh! Vocês não perdem pela demora! Esta casa será toda para mim e para a minha família, com todas as coisas boas e quartos quentinhos por onde vocês passeiam e dormem. O vosso reinado tem os dias contados…».
E, nessa noite, quando todos estavam a dormir, a Grande Ratazana saiu sorrateiramente da sua toca imunda e abriu silenciosamente a porta da gaiola do Kikito... Este, de vez em quando, gostava muito de saltitar durante a noite, abriu os olhitos e, vendo a portinhola aberta, decidiu dar um passeio pela casa, como há muito tempo não fazia…
Entretanto, Carambol já estava há algum tempo no quarto da Ângela a fazer das suas…
De repente, ouviu uns passinhos, muito leves, no soalho. E pensou, enquanto ria cinicamente:
«Hum…! Já estive aqui tempo suficiente. Agora está na altura de fazer uma visitinha mais demorada à despensa…»
De manhã, os pais da Ângela levantaram-se para irem para o trabalho. O pai saiu apressadamente, sem tomar o pequeno-almoço, porque já estava atrasado como sempre. A mãe levantou-se um pouco mais tarde uma vez que, sendo professora primária do primeiro ano da escola da aldeia, só dava aulas à tarde. Ao chegar à janela da sala, viu a porta da gaiola de Kikito aberta. Preocupada, aproximou-se e viu que a comida do hamster estava suja com excrementos. Em seguida, dirigiu-se para a despensa pensando que o odor da comida tivesse atraído Kikito.
Qual não foi o seu espanto ao encontrar o suculento queijo da serra todo esburacado em vários sítios com grandes túneis, roídos a partir da casca lá para dentro. Catacumbas de queijo! A seguir olhou para a prateleira onde estava a tarte de framboesas e o bolo de chocolate para o aniversário da Ângela. Completamente estragados!
De seguida, foi inspeccionar o quarto da menina e ficou de boca aberta ao verificar que Kikito e Puffy estavam a dormir, ambos, juntamente com a pequena… Ao olhar para a cadeira, junto à cama, reparou também que o vestido novo e os sapatos, comprados na véspera para a festa de aniversário, estavam roídos e irremediavelmente estragados. Quanto aos chinelos de quarto, novinhos em folha, estavam completamente rotos e com um desagradável e pestilento cheiro a xixi…
A mãe da Ângela, a Professora Matilde, ficou mesmo furiosa. Decidiu então, no auge da irritação, colocar os dois amigos de castigo.
Kikito voltou para a gaiola sem comer – uma vez que, supostamente, já se teria deliciado a fazer estragos na despensa –, Puffy ficou fechado no quarto durante todo o dia. Os dois amigos ficaram sem entender nada do que se passava.
Ângela passou o dia todo, com o coração apertado e um nó na garganta, dominada pela angústia, com medo que os seus dois amigos fossem expulsos de casa…
A mãe colocou a gaiola de Kikito na janela aberta para arejar a gaiola e para que ele se distraísse e não pensasse muito em fazer asneiras.
O dia estava bonito. Os ramos da cerejeira – outra das árvores do jardim – estavam já a dar os frutos suculentos vermelhos-escuros que Lá-Si-Dó adorava devorar até ficar com dores de barriga. Entretinha-se a saltitar desta para o pessegueiro com os ramos ainda cheios daquelas florzinhas, cor-de-rosa como mousse de morango, que tocavam na janela onde estava a gaiola de Kikito. Num desses ramos perfumados, Lá-Si-Dó entretinha-se, nesse dia, a ensaiar mais uma das inúmeras variações do seu canto aflautado. Até que reparou no amigo, que estava invulgarmente quieto.
«Que se passa contigo, Kikito, que não estás a correr de um lado para o outro, como sempre?»
Kikito, desesperado por desabafar com alguém, contou-lhe as peripécias da noite, após o que Lá-Si-Dó tomou a firme decisão de ajudar o amigo.
«Não te preocupes, porque hei-de arranjar uma maneira de vos ajudar….»
Resolveu dar uma volta para espairecer. Porque Lá-Si-Dó pensava muito melhor quando sentia o vento a passar-lhe por debaixo das asas. Decidiu voar até ao litoral. Chegou à praia e começou a inspirar o cheiro a maresia. Apeteceu-lhe sobrevoar um pouco o mar.
De repente, viu um vulto surgir por entre as ondas e dar um salto mortal, mergulhando em seguida. Ao voltar à superfície, a criatura marinha interpelou-o, numa voz risonha:
«Entaaaão, Lá-si-dó, meu malandreco, que é feito de ti que não apareces há tanto tempo?»
«Pois…tenho andado um pouco ocupado…quero ver se arranjo tempo para fazer ninho…!»
«Bem, no mar, também andamos sempre de um lado para o outro! Não dá para estar parado!»
«Sabes, para dizer a verdade, tenho um assunto a preocupar-me muito ao ponto de me tirar o sono e o apetite: preciso de ajudar um amigo. Aliás, dois amigos. Por isso, lembrei-me de ti. Pensei que, juntos, pudéssemos encontrar uma solução para o problema deles.»
«São aqueles teus dois amigos de Cuba, não é verdade? Claro que, se estiver ao meu alcance farei tudo para os ajudar! Só tenho pena que a na tua terra não tenha mar para que eu possa visitar o local onde tudo indica ter nascido o Grande Almirante Colombo…»
E Lá-Si-Dó contou, então, a história ao golfinho Ariel. Este decidiu investigar, transmitindo informações aos seus primos, Cetáceos – as baleias, os golfinhos e as orcas – através do canto subaquático, que percorreu rapidamente os sete mares.
Até que, por fim, surgiu Sati, a avó-baleia, cheia de novidades para contar:
«Imaginem só, o que me disseram os meus amigos Peixinhos, que costumam passear lá para os lados da saída de esgoto, por altura da Maré-Viva…!»
«A sério?! E o que foi que ouviste?»
«Bom, sabes que, a família das Ratazanas costuma passear por lá, quase até à saída. O que os meus amigos ouviram, foi que a Ratazanas – os tios e os primos desse Carambol –, em várias cidades do Sul do país, estão muito entusiasmados com a ideia de irem morar para uma casa enorme, quentinha e cheia de coisas boas, depois de os animais que lá vivem, inclusive os humanos, serem todos expulsos. O pai de Carambol chegou a gabar-se de ter um filho muito inteligente, capaz de preparar uma armadilha tão perfeita contra o “cachorro mimado” e o “detestável hamster” que lá vivem, de maneira a que a culpa recaia sobre eles! Chegou mesmo a afirmar que esse nojento Carambol mereceria um prémio Nobel da Criatividade por conseguir tal proeza!»
Ao que Lá-Si-Dó respondeu:
«É revoltante…! Até dá vómitos só de ouvir! Vou agora mesmo contar tudo ao Kikito e ao Puffy».
O passarinho ficou realmente muito indignado. E, já de volta ao seu ninho na pereira do jardim, pensou:
«Caramba…andam aí tantos gatinhos na rua…cheios de fome…tanta que até chegam a comer passarinhos como eu…quando não andam a virar latas de lixo…hummmm…! Acho que vou ter de cantar um bocadinho aos ouvidos de alguns deles…tenho a certeza que se eles aparecessem lá por casa, no jardim, a pedir um pouco de leite, os pais de Ângela não teriam coragem de os mandar embora…Até pode ser que deixem a Mãe Gata e os quatro gatinhos do Bairro de Lata, na periferia da Cidade Grande, dormirem lá dentro para ficarem mais abrigados…e, se há coisa que a Mãe Gata detesta é um grande Ratão perto dos seus pequeninos…»
Lá-Si-Dó decidiu, então, voar até a um dos subúrbios Cidade, onde habitam os gatinhos pobres.
E faz um discurso, do alto de um poste de alta tensão, lançando-lhes um desafio:
«Caros amigos: tenho algo a propor-lhes. Existe a possibilidade de, uma vez que estão com muita dificuldade em arranjar comida e emprego, poderem encontrar um espectacular terreno de caça, se quiserem vir comigo até à Quinta das Amendoeiras.
«E, se conseguirem prender ou desmascarar o Grande Ratão Carambol, pode ser até que consigam um lar com jardim para ficarem…»
Os gatos do Bairro de Lata fizeram uma reunião geral. Conversaram, discutiram, argumentaram, pesaram prós e contras e, por fim, decidiram pôr as patas ao caminho. A primeira foi logo a Mãe Gata, que precisava urgentemente de emprego para sustentar os seus quatro gatinhos, recém-nascidos. Até porque os outros dois já tinham morrido e ela queria muito que estes sobrevivessem.
Chegados a casa, ou melhor, ao jardim da Quinta das Amendoeiras, a Mãe Gata e mais três outros Gatos de Rua, começaram a palmilhar o terreno. Os outros três gatos, além de alguns ratitos, que andavam por ali, andavam também atrás de coelhos, toupeiras e também… passarinhos! E alguns deles eram seus amigos…até que Lá-Si-Dó começou a questionar-se se teria realmente adoptado a solução certa…
Mas a Mãe Gata foi mais esperta. Começou a procurar exclusivamente no jardim da Quinta das Amendoeiras, definindo-a como seu território, enquanto que os demais gatos se espalharam pelas quintas da vizinhança.
Nos primeiros dois dias, Dona Gata caçou logo duas grandes toupeiras, três ratitos pequenos mais um casal de ratazanas. Todos eles tinham sido trazidos à Casa Grande pelo maléfico Carambol, é claro…
A Mãe Gata, sempre com muito empenho, exibia orgulhosamente o produto da caça à dona da casa para que ela tomasse conhecimento do trabalho feito.
A mãe de Ângela ficou muito satisfeita. Tão contente que começou a pôr, todos os dias, um grande prato de leite, pela manhã, e uma bela pescada cozida, à noite, para a Dona Gata ganhar força para sustentar os gatinhos.
Além disso, Dona Gata podia entrar à vontade na Casa Grande pela mesma portinhola por onde entrava Puffy.
Mas, uma noite, os residentes da Casa Grande da Quinta das Amendoeiras ouviram cair um frasco, lá para os lados da despensa. Ao mesmo tempo, notaram estranhos ruídos de luta. Dona Gata bufava e soltava miados arrepiantes. Parecia tomada por uma fúria mitológica. Ouvia-se, também, um outro animal que guinchava horrivelmente. Todos se levantaram e foram a correr ver o que se passava. Dona Gata, com o pêlo todo em pé, lutava corajosamente com um gigantesca e gorda Ratazana, quase do tamanho dela própria. Então, o pai da Ângela deu uma forte pancada no Ratão Carambol com o cabo da vassoura, que estava mesmo ali à mão de semear, deixando-o momentaneamente atordoado para, em seguida, fugir a sete pés!
A professora Matilde examinou a despensa e viu um grande buraco por detrás de uma das prateleiras. Olhou para os frascos e viu o mesmo que antes: alimentos roídos e estragados, excrementos que, dias antes, pensara serem obra de Kikito, e um cheiro nauseabundo por todo o lado.
«Oh, não…Bem pelo menos parece que o Kikito e o Puffy não têm culpa nenhuma por aquilo que se tem passado nesta casa…! E eu a castigá-los daquela forma…pelos vistos, o único responsável pelos estragos que se têm visto por aqui é esta horrível Ratazana. E, se calhar, há mais por aí…»
A partir de então, Dona Gata ficou como hóspede definitiva em casa de Ângela, Puffy e Kikito. Livre para entrar e sair quando quisesse, com um confortável cantinho, num anexo, junto ao celeiro, para estar à vontade com os seus gatinhos. Estes cresceram com um enorme espaço para brincar e amigos para partilhar os seus jogos.
Nunca mais se ouviu falar de um rato naquela casa.
Claudia de Sousa Dias