“Quarenta Graus”
O sol do meio-dia torna impossível caminhar na escaldante areia branca onde os poucos banhistas que se atrevem a cruzar os escassos metros que separam o refúgio sombrio das barracas verdes-escuras da água. E os poucos que se atrevem a fazê-lo saltitam como algumas espécies de insectos ou lagartos do deserto, ora num pé ora no outro, correndo para as escadas de madeira que vão dar ao bar da praia ou para a frescura da orla marítima em busca de humidade e alívio para as queimaduras nas plantas dos pés.
Sentada num rochedo, com os pés mergulhados numa poça, onde posso observar anémonas rosa-púrpura, mexilhões em tons antracite e lapas cor-de-cal, passo mais uma generosa camada de protector solar nos ombros, braços, pescoço e colo, onde a pele é sempre mais martirizada.
A sombra do chapéu de palha de aba larguíssima, a fazer lembrar um sombrero mexicano, torna-se bastante confortável àquela hora do dia, dispensando o uso de óculos de sol que, além de deixarem marcas na cara, transmitem-me uma desagradável sensação de ficar parecida com uma mosca de cada vez que me olho numa superfície espelhada….
…o que me faz ignorar a maior parte dos veraneantes que esboçam, de minuto a minuto, aqueles sorrisinhos ténues, vagamente trocistas – vulgo, “amarelos” – entre divertidos e invejosos, ante a aparente excentricidade de 180 cm de diâmetro das abas do chapéu.
Um autêntico guarda-sol portátil.
Espalhafatoso, mas eficaz.
Certamente mais do que um par de óculos de sol…
A sombra proporcionada pela minha extravagante toillette de praia permite-me perder o olhar no infinito azul que se estende à minha frente. O prazer inigualável de desfrutar da tonalidade turquesa que se funde com o azul-safira das águas profundas da linha o horizonte, onde se notam algumas sombras índigo e cobalto, para adquirirem uma transparência de água-marinha, que se alterna com a tonalidade verde-esmeralda das águas habitadas por sargaços é impossível de ser traduzido por palavras.
O fundo da água torna-se cristalino deixando ver corais, peixes multicores e outros animais marinhos.
Um ouriço-do-mar passeia perigosamente perto dos meus pés.
É melhor redobrar a vigilância.
Também não me apetece pisar nenhum peixe-pedra camuflado nas rochas…
A escassos metros de mim, está uma senhora de cerca de quarenta e cinco anos de idade que também observa o horizonte.
Mas algo contraria a atitude descontraída, típica de quem está a gozar férias…
…todos os seus gestos denunciam uma ansiedade quase que frenética, traduzida numa expressão angustiada nos olhos semicerrados e nas mãos, em pala, à altura da testa…
…que se alia à tensão dos músculos faciais, dos lábios contraídos num rictus de desespero, num esgar de preocupação e no franzir das sobrancelhas…
A gigantesca aba do meu chapéu permite-me manter o rosto na penumbra e estudar atentamente as feições da mulher, ainda jovem, que perscruta ansiosamente o mar.
Sem o receio de ser tomada por indiscreta, observo com atenção, para não deixar escapar o mínimo detalhe.
Trata-se de uma senhora dona de uma beleza deslumbrante. Uma beleza amadurecida, completa e inquestionável.
A pele dourada é a moldura de um corpo ainda na plenitude da feminilidade, com músculos firmes e delineados, provavelmente por sessões de natação diárias, dada a tonicidade que exibe nos ombros, braços e dorsais.
O cabelo brilha num dourado fulvo, salpicado de pouquíssimos fios prateados, sem estar ainda contaminado pelo artificialismo dos químicos comprados na cabeleireira. As feições correctas de testa alta, nariz estreito e vertical e queixo altivo fazem-na parecer uma Vénus esculpida por Fídias…
No entanto, as duas rugas de preocupação entre as sobrancelhas, insistem em estragar a harmonia de uma rosto perfeito. Também os olhos de água-marinha, da mesma transparência dos recifes, se movem frenéticos, perscrutando a costa e detendo-se nas inquietantes sombras que se aproximam, em velocidade crescente, da zona onde os banhistas desfrutam da água…
- Maria?! Mafalda?! João?!
Duas crianças traquinas, de cabelos castanhos e faiscantes olhares azuis com reflexos cinza-prata surgem detrás dos rochedos.
- Avó! Olha o que nós apanhámos!
Mafalda exibia, orgulhosa dois ouriços castanhos-avermelhados e João uma estrela-do-mar cor-de-laranja, ainda viva. Nas caritas cor de canela, emolduradas por rebeldes cabelos pretos sobressaem uns olhos marinhos, muito semelhantes aos da Avó.
- E a Maria?!
- Está dentro de água. A apanhar anémonas. Mais lá ao fundo…
A avó sente o pânico subir assustadoramente pelas veias e a galopar, desenfreado, em direcção às têmporas…
Volta a olhar o horizonte.
As sombras estão cada vez mais perto.
Uma barbatana triangular, denteada, surge à superfície.
Uma palidez de morte cobre-lhe o rosto à medida que sente as pernas ficarem cada vez mais moles. A visão parece querer fugir-lhe ao mesmo tempo que sente perder o equilíbrio.
- Vóvó?!
Uma criança de dez anos, surge do lado oposto, de entre as rochas mais afastadas. Bela como uma ninfa do mar. A pequena sereia de cabelos de um louro claríssimo, feérico, ofuscante como a luz solar, tinha uma expressão estranhamente contrariada. Os olhos, ligeiramente mais escuros que os da avó – de um azul-safira, precioso e rico como as águas profundas – estavam marejados de lágrimas reprimidas e contraídos por uma expressão de sofrimento. A pele do rosto – mais clara, apesar de já dourada pelo sol, apresentava uma palidez inquietante.
- Vóvó! Trago aqui as anémonas. Mas magoei-me! Olha! Tenho o pé a deitar sangue!
A avó quase desmaiava.
- Maria! Não sabes que é muito perigoso ires para o pé dos corais?! Podes picar-te ao calcar um peixe venenoso ou seres mordida por uma cobra coral…Elas andam por aí…Para não falar da possibilidade de fazeres um corte ao roçar nalguma pedra mais aguçada…Alguns corais também cortam como facas…e o cheiro a sangue pode atrair outras coisas também…
- O quê, Vóvó?
- Ora, o quê! – replica sadicamente o pequeno diabrete moreno de olhos azuis – Os Tubarões! Depois engolem-te inteirinha com espinhas, quer dizer, ossos e tudo! Já vi na televisão, num filme do Spielberg! Ficas uma autêntica papa, pior do que carne para hambúrguer!
- Não te preocupes com isso agora. Está na hora do almoço e precisamos de tratar desse pé. Vamos aproveitar que toda a gente está a fugir da água em massa e fazer uma corrida até à praia para ver quem chega primeiro. Tu, Maria, vens ao colo, porque não podes correr ao pé-cochinho. Está bem, meninos? Vamos lá, despachem-se!
As sombras negras, por debaixo da água, estão agora a escassos metros da praia.
Os banhistas saíram em debandada.
Foi instalada a bandeira vermelha, apesar da maré baixíssima.
Também para mim está na hora de ir almoçar…
…antes que me converta em almoço.
Pego nos meus livros e no trabalho, manuscrito, e encaminho-me para o restaurante onde deixei o meu gato de olhos esmeralda.
Ele odeia a água.
Lá terá as suas razões…
Desert Rose
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