2010-12-20

Crónica de uma confeitaria "moderna" II


Hoje vejo a confeitaria recheada de gente bonita. Pessoas que gozam da tranquilidade e boa disposição a quem a crise económica parece não afectar. Comentam o tempo primaveril na Grécia, junto à beira-mar, enquanto cá o vento álgido ameaça voltar a fazer-se sentir, após o sopro quente e bestial do tornado que lançou o terror e Tomar e a dissipação das pesadas nuvens de tempestade.
Também hoje a confeitaria está recheada das velhas elites , os descendentes dos antigos leões e leopardos de quem falava Paretto e o Príncipe de Lampedusa em Il Gattopardo: arqueólogos, investigadores, a família de um empresário de bolachas, biscoitos e chocolates que enchem as prateleiras das grandes superfícies - pelo menos enquanto o racionamento não se generaliza a todos os bens alimentares.

E aui, nesta confeitaria "moderna" pelo menos posso levar as natas que eu quiser para casa. Desde que as pague. No dia seguinte fazem mais. Aqui os doces são confeccionados com requinte. o creme das natas é suave e com um travozinho a limão. Depois dos pastéis de Belém, são as natas desta confeitaria de paredes espelhadas como no Majestic na Rua de Sta Catarina as que mais me seduzem. Os éclairs, também. Com o mesmo travo limonado no creme e cobertura de chocolate negro. só espero continuar a ter trabalho para continuar a poder comprar o direito de os desfrutar.



CSD


11.12.2010

2010-12-17

Numa confeitaria "moderna"


Sento-me no canto de uma pastelaria antiga onde, à minha direita tenho um espelho que me permite espiar discretamente os gestos dos outros e verificar, não tão discretamente assim se estou a fazer boa figura. A vaidade - que também a tenho - é uma boa camuflagem para uma curiosidade felina. A decoração faz lembrar aquela pastelaria húngara descrita num dos livros de Sándor Marái - algures entre a belle époque e os anos 1920/1930. As mesas e as cadeiras, no entanto, introduzem um pouco do estilo kitsch da década de 1970, contrastando o requinte dos mármores nos lambris, os cristais dos candeeiros com os estofos em napa e as mesas de fórmica...Os clientes habituais são um pouco o reflexo desta decoração. Falam normalmente das vidas dos outros enquanto bebem chá com torradas. Casamentos, baptizados, divórcios funerais. De como fulano e sicrano gasta o próprio dinheiro, ou deveria gastar. Uma delas arroga-se acaloradamente de um discurso anti-imigração e da necessidade de limitar o número de universitários no país - bastariam um cinco a dez por cento, o país não precisa de mais - para manter o status quo ao mesmo tempo que suspira pela antiga ditadura. Outra, carregada de jóias, fala, num registo vocal uma oitava acima do normal, de forma a fazer-se ouvir em todo o salão que "são necessários é cursos técnico profissionais que garantam emprego aos jovens mal entrem no mercado de trabalho", parecendo esquecer-se que antes é preciso que as empresas e os postos de trabalho se multipliquem de forma sustentável. Que haja dinheiro para salários para sustentar o poder de compra das famílias e gerar impostos e criar ainda mais emprego...Para ela tudo é preto ou branco, ou há trabalhadores, que o devem ser trabalhando até sem retribuição ou há mandriões. Sem meio-termo. No grupo de senhoras bem postas que agora saboreiam as iguarias da pastelaria fina só os próprios filhos ou os filhos das pessoas próximas, da elite local, conseguem ser brilhantes e obter mérito para conseguir uma colocação que os posicione acima da mediocracia: o filho mais velho, que acaba agora o doutoramento nos EUA, o mais novo que entra em Medicina no próximo ano. Findo o chá, levanta-se para ir à missa rezar para que não aumentem as vagas nas Universidades públicas que formam os clínicos.

Suspiro e continuo a leitura. A pele de Curzio Malaparte. Mas a paciência ficou pelo caminho, perdida no chauvinismo dos diálogos alheios.
Também para as medíocres elites portuguesas, tal como para os Napolitanos de Malaparte, o que importa é salvar a pele.