2012-04-21

EXERCÍCIO (EM AMARELO) DE TEXTO E REESCRITA

Photo by Resim & Fotoğraf

Se a casa amarela fosse o que eu queria que ela fosse:
uma casa povoada de gente, louças e tempo,
e não assim junto ao forte, emoldurada por anjos
e cadeiras estofadas de minutos e segundos.
Se ela tivesse memórias perdidas pelas cornijas
ou por salas de veludo rodopiando no vento
do seu centro mais que centro: um narciso, uma papoula,
uma acácia muito bela desconjuntando o terreno,
invadindo o corpo todo dos seus jardins junto ao mar,
e uma louça azul e branca deixada por navegar
sobre a mesa da cozinha. Em vez das horas contadas
como pinhas ou agulhas de pinheiro, ou de metal,
servidas para vestir o fantasma mais igual
que invade devagarinho, que nos rouba sonos e sonho,
que entrelaça como a acácia o tempo que eu lá gostava,
um tempo feito de louças, de gente que fosse a sério, 
de mistérios e avessos, mais do que de avessos e de mistério.
E tão anti-Régio e eu, tão anti-rima e balada,
e tão contra o mais antigo que assim renasce outra vez:
de quando há anos falei de uma casa muito branca
rodeada de pinheiros, quase thor em demasia, 
de quando reli por ler a toada mais toada
que me dera que fazer, muito mais que a tabuada
que me custou a aprender, que me custou a saber
muito mais que a casa branca.

                                                   Por isso a casa amarela,
coitada, é o que se pode, nestes tempos mais modernos,
em que o verso foge e ruge, e range e teima em fugir.
Por isso estes anjos todos, por isso este tom tão surdo,
neste exercício esotérico que pode parecer absurdo,
mas que afinal mais prepara o final que eu queria novo,
mas que só consigo frouxo, um pouco delicodoce,
com seus veludos e louças de brincar.
Se a casa amarela fosse o que eu queria que ela fosse, 
nem pretexto para o texto, nem tanto texto a rimar.


Ana Luísa Amaral
in "Às vezes, o Paraíso", 1998

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