Cineliterário de 17 de dezembro: "A Pele" de Liliana Cavani. Baseado na obra homónima de Curzio Malaparte
O Cineliterário de 2010 decidiu acabar o ano com uma provocação.
Para tal nada melhor do que a contundente obra de Curzio Malaparte que põe em causa alguns mitos sobre a suposta evolução das sociedades humanas ao mostrar a brutal realidade na Europa num dos piores períodos de depressão económica onde rapidamente se volatilizam TODOS os princípios da dignidade humana.
«Há uma profunda diferença entre a luta para não morrer e a luta para viver. Os homens que lutam para não morrer conservam a sua dignidade, defendem-se ciosamente - todos: homens, mulheres, crianças - , com feroz obstinação. Os homens não dobravam a cerviz. Fugiam para as montanhas, para as florestas, viviam nas cavernas, lutavam como lobos contra os invasores. Lutavam para não morrer. Era uma luta nobre, digna, leal. As mulheres não lançavam o corpo no mercado negro para comprarem bâton, meias de seda, cigarros ou pão. Sofriam a fome, mas não se vendiam. Não vendiam os seus homens ao inimigo. Antes queriam ver os próprios filhos morrer de fome do que venderem-se, que venderem os seus homens. Somente as prostitutas se vendiam ao inimigo. Os povos da Europa, antes da libertação, sofriam com maravilhosa dignidade. Lutavam de cabeça erguida. Lutavam para não morrer. E os homens, quando lutam para não morrer, agarram-se com a força do desespero a tudo o que constitui a parte viva, eterna, da vida humana, a essência, o elemento mais nobre e mais puro da vida: a dignidade, o orgulho, a liberdade da própria consciência. Lutam para salvar a alma.
Mas depois da libertação os homens tiveram de lutar para viver. É uma coisa humilhante, horrível, é uma necessidade vergonhosa lutar para viver. Só para viver. Só para salvar a própria pele. já não é a luta contra a escravidão, a luta pela liberdade, pela dignidade humana, pela honra. É a luta contra a fome, é a luta por um pedaço de pão, por um pouco de lume, por um farrapo para cobrir os filhos, por um pouco de palha onde estender o corpo. Quando os homens lutam para viver, tudo, até uma panela vazia, uma ponta de cigarro, uma casca de laranja, uma côdea de pão seco apanhado no lixo, um osso esburgado, tudo tem para eles um valor enorme, decisivo. Os homens são capazes de todas as velhacarias para viver; de todas as infâmias, de todos os crimes, para viver. Por um pedaço de pão, cada um de nós está pronto a vender a própria mulher, as filhas, a macular a própria mãe, a vender os irmãos e os amigos, a prostituir-se a um outro homem. Está pronto a ajoelhar-se, a arrastar-se pelo chão, a lamber os sapatos de quem pode matar-lhe a fome, a dobrar a cerviz sob o chicote, a limpar, sorrindo, a face onde lhe escarraram. E tem um sorriso humilde, doce, um olhar cheio de uma esperança famélica, bestial, uma esperança espantosa.»
Curzio Malaparte, "A Pele", Edição "Livros do Brasil", 1980
2 Comments:
Pois tenho para mim que "o homem" sempre teve em si muito de reles, tanto agora como dantes. Não todos, obviamente, mas boa maquia deles. E isso tem atravessado os séculos, os milénios.
Bjsss, bom domingo!
Madalena
Obrigada, M.
Penso que tens razão, sim senhor...
csd
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