"No Restaurante das Orquídeas"
Adorei o peixe que me cozinharam para o almoço.
Luna deliciou-se com a caldeirada de frutos do mar com camarões-tigre e amêijoas brancas gigantes, servida num púcaro de barro e regada com um vinho branco, maduro e adocicado, como ela gosta.
O cheiro é delicioso mas eu prefiro o meu peixinho.
Neste momento estou encostado aos pés de Luna , que estão deliciosamente frescos e parecem cheirar levemente a algas e a maresia…
Ela escreve, sentada à mesa, de laca preta, enquanto espera pela sobremesa. O tapete, macio, de veludo vermelho, contrasta vivamente com as sandálias de tiras, pretas e brilhantes, como a laca da mesa de estilo oriental.
Reparo, agora, que toda a decoração faz lembrar um restaurante chinês, ou japonês, onde dominam as madeiras aromáticas, cujo penetrante cheiro a sândalo e a cânfora me faz pensar em lugares exóticos e distantes como a Malásia ou Madagáscar. As cores do pau-preto e pau-rosa sugerem um ambiente fresco e intimista, onde o verde espreita em cada recanto, uma vez que o dono do restaurante é, para além de chef gourmet e um decorador de talento, um apaixonado por orquídeas raras, que colecciona e expõe no restaurante de forma a deslumbrar os clientes (sobretudo os do género feminino).
O resultado é uma vaga sensação de se estar a almoçar ou jantar debaixo dos jardins suspensos da antiga Babilónia ou numa clareira, habitada por humanos, no meio de uma floresta tropical…
Estar neste lugar é como saborear um festival de cor e frescura para fugir ao inferno do sol mordente do meio-dia que transforma os humanos de pele mais sensível em autênticas lagostas grelhadas…
É aqui que Luna aproveita as horas de maior calor para se refugiar e escrever os seus textos…
Acho que o último é sobre o andorinhão negro que encontrou na rua e resolveu adoptar há alguns meses atrás…
Se fosse eu a encontrá-lo o seu destino seria bem diferente…
Enquanto ela escreve vou aproveitar para dormir uma soneca, encostado às suas pernas…
O Falcão-Andorinha
Falki entrou na minha vida como um prelúdio de uma noite poética, onde eu teria de declamar um trecho de um livro de uma jovem escritora, a ser lançado nesse dia.
O poema seleccionado era um hino ao amor e às coisas belas.
Mas antes de entrar para o recinto os meus olhos detiveram-se numa figurinha negra, caída na berma da estrada, junto ao passeio.
Um pássaro. Pequeno e escuro, com malhinhas cinzentas, no pescoço, nas extremidades das asas e na cauda.
Não voava. Parecia em estado de choque. Peguei nele, cuidadosamente. Ao contacto com a malha da minha blusa, trepou imediatamente para o meu ombro e tentou esconder-se no meu cabelo que, naquela noite usava solto.
Voltei a pegar nele para o observar melhor. O bico e as asas curvas fizeram-me pensar tratar-se de uma ave de rapina. Mas o tamanho era o de uma andorinha. Seria um filhote de falcão?
Na altura, fiquei convencida que sim.
Nessa noite, a poesia ficou, para mim, em segundo plano.
Só conseguia pensar no bem-estar da pequena ave. Dei-lhe de beber e coloquei-a numa espécie de ninho de guardanapos de papel. Mas ela parecia estar contente na minha mão.
Tanto que até conseguiu adormecer.
Ao chegar a casa, os meus pais apaixonaram-se por ela.
Imediatamente.
Perdidamente.
Tentámos alimentá-la de várias formas.
Primeiro, com papa insectívora, com uma minúscula colherzinha de café.
Que ele cuspia, quase na totalidade. Depois experimentámos carne de bife de peru, cortada aos bocadinhos. Que ele engolia, de olhos fechados.
Depois, deixava-mo-lo voar pela casa. A princípio, executava voos curtos, hesitantes.
Mas depois que ficou a conhecer as coordenadas da casa, os cantos, as esquinas, os locais onde havia plantas, orientava-se pelas variações de luz e pelo cheiro a terra.
Cedo ficou a conhecer onde ficavam todas as janelas.
Falki tinha a loucura das vidraças.
Ia de um lado ao outro da casa, certeiro como um raio ou uma seta, disparada por uma besta. Desferia curvas, contornava esquinas, desde a janela da marquise, passando pelo corredor sombrio, virando à esquerda, após o que disparava, em seguida, para a janela do quarto como um míssil.
Certa vez estava eu no meu quarto com ele, a examinar-lhe o comprimento das asas. Ao soltá-lo, ele descreveu um semi-círculo , a partir do meu lado esquerdo contornando o quarto, ao passar por detrás das minhas costas poisando, depois, no meu ombro direito, lançando-se, depois, impetuosa e alegremente em direcção à janela.
Passou-se uma semana.
Duas semanas.
A cada dia que passava, amávamos Falki um pouco mais.
Talvez porque tivéssemos de o alimentar a mão, cerca de quatro vezes ao dia, tendo de lhe abrir o bico para lhe introduzir a carne, cuidadosamente cortada aos bocadinhos, enquanto que os outros pássaros olhavam, ciumentos, dentro das gaiolas.
Mas também notámos que a sua vida era o Vento.
Que soprava lá fora.
Que o chamava.
Ele imaginava-se, sem dúvida, a passar-lhe por debaixo das asas durante o voo que lhe era tão ou mais necessário do que a comida ou o afecto que lhe dávamos…
Começava eu, então, a pensar seriamente se não estaria na altura de o levar ao parque ornitológico…
…mas ele ainda não conseguia comer sozinho…
…e também não crescia, conforme o que seria de esperar, tratando-se de um falcão- peneireiro, como julgávamos.
Ou então lévá-lo para a quinta dos meus tios, no Cartaxo, onde poderia caçar à vontade…
Um dia, ao chegar a casa, fui ver como estava ele, como sempre fazia desde que o trouxe para casa.
Ao que a minha mãe respondeu, com um ar sombrio:
- Olha, não está lá muito bem…Não me parece muito bem disposto…Vomitou a comida…Não quis voar…Dei-lhe de beber…mais logo dou-lhe daquela carne mais tenrinha, a ver se ele melhora…
No dia seguinte, logo pela manhã, a primeira coisa que fiz logo que me pus a pé foi ver como ele estava. Parecia melhor.
Fui um pouco mais alegre para o trabalho, mas pelo sim pelo não, procurei o contacto do parque ornitológico de Gaia, porque sentia que estava na altura de procurar um lugar onde ele se sentisse feliz.
Ao chegar a casa , à noitinha, volto a perguntar pelo meu filhote com asas.
A minha mãe responde-me, com voz trémula:
- Está a morrer…
Não pude acreditar. Olhei para ele, prostrado, caído. Todo ele exprimia dor. Tomei a resolução de o levar ao parque logo pela manhã, numa corrida contra o tempo.
Foi a pior noite da minha vida. Dei voltas e mais voltas na cama, levantei-me vezes sem conta. Mas todos os pássaros, lá em casa dormem com coberturas leves por cima das gaiolas para não serem incomodados pelas luzes das lâmpadas eléctricas da rua.
O gato olhava-me inquieto, da janela do quarto.
Mas, pela primeira vez na minha vida, não conseguia dar-lhe atenção.
Mas ele sentia a minha angústia.
Contudo não consegui fazer-lhe uma única festa naquela noite.
Voltei a deitar-me. Sonhei que apanhava um comboio em pleno andamento. A certa altura, tinha de saltar e apanhar outro comboio que fazia a ligação ao destino que eu pretendia. Apanhei o segundo comboio por uma unha negra.
Ao viajar neste segundo comboio, vi entrar a dada altura na carruagem uma pessoa da minha família com um carrinho de bebé. Ela estava de luto. A alcofa era negra. As cobertas negras. Os lençóis negros também. Espreitei e vi um carita cinzenta, com uma touca negra. Levantei-me. Fitei os seus olhos negros e os cabelos de viúva e exclamei:
- Não…
Acordei nesse instante.
Corri para a marquise onde a minha mãe já estava a tentar alimentar Falki.
Peguei nele. Senti-lhe o pequeno estômago, duro como pedra. Agarrei numa caixa de sapatos e coloquei-o lá dentro, sem tampa.
Peguei na carteira e saí disparada em direcção à estação. Apanhei o comboio para Campanhã e perguntei à Irene se me levava a Gaia. Disse-me logo que sim.
No comboio, toda a gente olhava, compungida o pequeno falcão moribundo, do tamanho de uma andorinha.
Ao chegar a Campanhã dirigi-me para a porta da estação. A Irene e os filhos chegaram no mesmo instante. Falki sentia-se melhor na minha mão do que na caixa. As duas crianças quiseram imediatamente ver o Falcão, curiosas e entusiasmadas. Queriam participar do salvamento.
Entrámos no carro e pusemo-nos a caminho. Ao entrarmos em Gaia, virámos duas vezes na direcção errada e perdemo-nos. O abdómen de Falki relaxava na minha mão mas não abria os olhos.
Uma das crianças observou:
- Parece que está com dificuldades em respirar…
Irene encontra finalmente a estrada que vai dar ao parque ornitológico.
Falki vira a cabeça na minha direcção e volta à posição inicial para descansar. O portão do parque está a escassos metros de distância.
Sorrio, com a esperança a chegar-me aos olhos.
Olho para Falki.
Está a dormir.
Não se mexe.
O coração não bate.
- Irene…
Irene examina-o.
Em seguida, olha-me nos olhos.
Abana a cabeça.
Olho o portão do parque.
Não consigo reagir.
- Levámo-lo na mesma?
- Claro que sim.
Ao chegar, mostro o meu filhote falcão ao porteiro.
- Olhe, eu trazia aqui uma ave, um falcão peneireiro para entregar ao parque…Falei ontem com o tratador pelo telefone…já tinha avisado que vinha…mas quando cheguei a casa ele já não estava nada bem…e só consegui vir hoje…
- Fez a sua obrigação. Mas olhe que este não é um peneireiro…É um andorinhão…O peneireiro é muito maior…
- Mas é igualzinho...o bico… as garras…
- Pois…há muitas aves parecidas. Mas este é insectívoro. Pode comer carne. Mas o grosso da alimentação, são insectos…Sempre que encontrar um passarinho destes, ponha-o a voar a partir de um sítio alto, para que ele ganhe impulso para o voo.
- Pois…ele tinha verdadeira loucura pela janela e por sítios altos…
Saí daquele lugar paradisíaco cheios de aves, cantos e chilreios de toda a espécie, com a alma envolta em escuridão.
Afinal, foi a primeira vez que perdi um ser a quem amei como a um filho.
Voltei as costas ao Paraíso e preparei-me para enfrentar o Inferno do Remorso e da Culpa…
por: Luna
Parece que Luna terminou de escrever. Os seus olhos estão marejados de lágrimas. Algumas caem-lhe no papel, manchando-o de tinta. Na mesa ao lado está uma família, composta por três crianças e uma senhora de cerca de quarenta e cinco anos de idade. Penso que são primos afastados.
Duas das crianças têm cabelos negros, mas a menina mais velha que deve rondar os dez anos de idade tem o cabelo louro como milho, mais claro que o da avó, fulvo como uma juba leonina. Todos eles têm olhos claros.
Como os gatos siameses.
A menina loira levanta-se da mesa e vem ter com Luna.
- Tenho uma coisa para ti...
- A sério, amor? E de que se trata? – Luna sorri, enquanto limpa os olhos.
- Uma estrela, que apanhei entre as rochas, debaixo de água! Gostas?
A menina tira de uma bolsinha cor-de-rosa, uma estrela-do-mar, enorme, de um laranja vivo.
- É linda, Maria. Obrigada!
- Feliz aniversário! – Maria abraça-a efusivamente.
Luna esconde a cara no pescoço da criança.
Diamantes de sal, rolam-lhe pela cara.
O gelo quebra-se e transforma-se e desfaz-se em água do mar.
É Verão.
Desert Rose
Etiquetas: Luna e o gato
15 Comments:
acabo de limpar as lágrimas.
chorei da beleza das palavras
que toco.
e arrumo.
cuidadosamente:
no baú
do
coração.
...
Beijinho, ~pi!
CSD
Fizeste-me lembrar de um melro que eu tive em condições idênticas ao teu andorinhão. Como ele não comia, metia-lhe a comida no bico e empurrava-a com um pauzinho. Pois, durou 2 ou 3 dias... mas eu teria uns 6 ou 7 anos.
Gostei do conto, é muito bonito.
Bfs, beijinhos.
pois...
...Obrigada.
Um bom fim-de-semana para ti.
Beijinho
CSD
Luna?! Not the one I know... it can't be she! ;)
Mas as aves amam a liberdade... está no céu sua verdade!
Como humanos somos mais felizes... que é na alma que este céu tem raízes.
Logo, mesmo presos toda a vida...
Rui leprechaun
(...livres sempre somos sem medida! :))
do luto
e
da mais profunda regeneração...
bela bela escrita de emoções!!
/é outono agora cláudia...:)
beijO
Sim, agora é Outono!
Mas o conto passa-se no Verão...
Beijo para ti, UnDress!
CSD
Faz-me bem (re)pousar nas tuas palavras :)
obrigada, linda.
Obrigada linda, mais uma vez!
Beijo grande!
CSD
Emocionante. Tocante. Sensível. Profundo.
Escrita límpida, fresca e perfumada.
Como uma nascente na montanha.
Obrigado pela partilha.
Obrigada eu, Lupus.
Pelas palavras.
Abraço.
CSD
o que acho mais belo nos pássaros:
a pequenez.
a comovente pequenez...
beijO
O movimento, olhar agudo, o voo, o ouvido, a perspicácia...
CSD
... estava a dar uma vista de olhos nos comments deixados na inominável e li algo como isto (mais letra menos palavra): "Figos com nozes, salmão fumado? estou cá com uma fome... "
Foi assim que aqui cheguei. Ao " Restaurante das Orquídeas". Repeti a "refeição" de tão bem que estava preparada e só não comi mais porque o meu médico está sempre a avisar-me para ter tento na boca...
Gostei muito.
Que bom, legível...
:-)
Há muito tempo que não posto nada no rendez-vous...
Vou temñtar recyperar o tempo perdido durante o final da semana...
CSD
Enviar um comentário
<< Home