As "Correntes" na Póvoa - Odisseia 2011 (Parte I)
Fotos: Cortesia cm-pvarzim
Tenho de confessar que uma das das maiores dificuldades que tenho, depois de assistir religiosamente aos debates nos encontros anuais de escritores e escrever furiosamente uma série de gatafunhos, semelhantes à escrita árabe no afã de registar aquilo que de mais fulgurante se disse durante os debates, é de "pegar", depois, nos meus hieróglifos e convertê-los em escrita legível, resumir ao máximo o que foi dito, sem fugir ao conteúdo. Isto porque quando saímos do evento é como se tivéssemos acabado de percorrer uma maratona, apoderando-se de nós, então, um estado letárgico, semelhante ao estado de prostração, após intensa actividade física. Para quê nos cansarmos então?
Eu explico: o festival Correntes d'Escritas consegue ser ainda melhor do que o sexo sobre o qual tanta publicidade se faz nos romances, na televisão e no cinema. Porque há partilha, há camaradagem, há a aproximação entre o escritor e o público, podendo-se trocar impressões sobre as obras, enquanto se assina um autógrafo. Este ano tive o prazer imenso de verificar as afinidades que tenho com a herdeira das sufragistas Maria Teresa Horta, de constatar a doçura de Aida Gomes, a simpatia do casal de escritores de língua castelhana a viver em Portugal José Manuel Fajardo e Karla Suárez, a aparente ingenuidade de Valter Hugo Mãe, que nos conta as coisas mais escabrosas com a candura irresistível de uma criança. E a simplicidade do Grande Senhor da Poesia do Correntes d'Escritas 2011, o Premiado Pedro Tamen.
Para mim as Correntes d'Escritas são o acontecimento do ano, uma autêntica corrente marítima que passa diante do porto poveiro a unir três continentes, não já como no tempo do comércio triangular mas, desta vez, sob o signo da cultura e dessa grande invenção do Homem que é a Escrita.
Este ano, só consegui estar presente entre os dias 24 a 26. Mas mal posso esperar para o ano que vem.
Entretanto, aqui fica a impressão geral, obtida a partir da primeira mesa a que assisti, a segunda do evento, moderada por Carlos Vaz Marques na qual participaram Ignacio del Valle, João Paulo Cuenca, Julio Gonzaga, Karla Suárez, Maria João Martins a partir do verso Eu começo depois da escrita, retirado do poema de Luís Quintais Mais espesso que a água.
Para Ignacio del Valle, a literatura está em constante transformação, mas na sua óptica, aquilo que continua a obter o protagonismo nos vários géneros literários são as emoções onde o amor ocupa, a posição cimeira. Salienta que «numa sociedade tão frágil e mutante como aquela em que vivemos, em que se diz que a família está acabada e onde domina a síndrome da rápida circulação de artigos (livros incluídos), esbate-se a fronteira entre aquilo que se chama de "alta cultura" e "cultura de massas"», obrigando à coexistência de géneros tão div
ersos como a escrita fragmentária e o romance" (tradução livre). Segundo Ignacio, «a literatura é como um jogo, com as suas regras e os seus códigos, mas multifacetada ».
«O romance é um género distinto de todas as outras formas de escrita, pela estrutura, argumento e linguagem - "a santíssima trindade" do Romance». Refere Enid Blyton, Alexandre Dumas, numa priomeira fase, Roth e outros mestres alguns anos mais tarde - os pilares que primeiro, suscitaram o desejo de escrever e, depois, aqueles que lhe foram que lhe foram elevando a fasquia, no desejo da escrita. Assim se começa a escrever. Depois de devorar a escrita dos outros.
João Paulo Cuenca, natural do Brasil optou pela via da sátira a que já nos ahabituou com publicações como O Dia Mastroianni e, agora, com O único final feliz para uma história de amor é um acidente, afirma que um dos maiores desafios que lhe costumam apresentar é precisamente os títullos "esfingéticos" das mesas do Correntes d'Escritas. Ao pensar no título, apercebe-se que "nós temos a compulsão por narrar desde que começamos a falar. Uma das coisas que nos dá mais conforto é quando somos crianças e nos sentamos no colo de alguém a ouvir uma estória. Por outro lado, nada é mais artificial do que escrever. E este artificialismo extrapola, muitas vezes, os limites da escrita. O escritor só tem experiências reais na infância. Quando descobre a representação, descobre, também, que pode transformar a dor em mel. Isso é um autêntico vírus. A simulação de uma história é como uma boneca insuflável - é o amor que se inventa."
João Paulo Cuenca prosseguiu a sua intervenção combinando, habilmente, o realismo com a sátira, falando quase como escreve: um discurso ininterrupto, onde mistura o racional com o irracional, adicionando-lhe o catalisador das emoções. E é esta a forma que escolhe para demonstrar como nasce a personagem, depois da escrita que se inventa na imaginação e nem sempre se passa para o papel.
Julio Gonzaga fala de geografia sentimental, ao recitar um poema da sua autoria, em resposta ao verso de Luís Quintais que faz as vezes de título do painel, em homenagem ao poeta, cuja escrita inspirou o debate - um exemplo concreto de produção da escrita depois da escrita intitulado "Poema acróstico sobre um verso de Luís Quintais".
Karla Suárez, cubana de nascimento, surpreende e cativa o público, ao dirigir-se à audiência em português. Fala da dificuldade inicial ao defrontar-se com a fonética portuguesa e os sons palatais. Dificuldades vencidas com esforço de vontade, após ter-se apaixonado pela luminosidade de Lisboa, a ponto de escolher aquela cidade para viver. Confessa ter querido ser actriz, mas decobriu que a riqueza da escrita é muito maior do que representar, por lhe permitir ser qualquer tipo de personagem. E poder dizer tudo o que deseja mesmo que não possa , despir-se sem tirar a roupa. Faz questão de realçar que a escrita é uma forma barata (e eficaz) de fazer psicoterapia. E que, por vezes, o autor espreita nas entrelinhas quando os personagens passam para segundo plano. As emoções são, no entanto transportadas para os personagens, afirma a escritora, ao falar de transferência. A escrita provém da transcrição do texto escrito na mente.
Seguindo a mesma linha de pensamento, Maria João Martinho, faz questão de dizer que tudo é literatura e até os sonhos são literatura. Cita Browning, a propósito da existência depois e através da escrita como forma de livre expressão e reacção ao apertado espartilho da moral vitoriana.
Para Miguel Miranda, escrever é uma espécie de máquina de pensamento. A verdadeira escrita é interior numa Biblioteca de Alexandria que temos na cabeça. É, antes de tudo, uma processo mental.
Miguel Miranda continua o raciocínio através de uma divertido jogo de linguagem onde mistura o sagrado e o profano, acabando por concluir ser a escritas uma partilha de estados de alma, indo ao encontro da ideia de Ignacio del Valle, uma arte da fuga da vida efémera, em que depois da escrita se começa a escrever de novo. Descreve este processo de escrita e reescrita como nebuloso, numa primeira fase, onde depois o texto em bruto, ou em rama é fiado na roca da escrita.
E assim foi, o meu primeiro contacto com as Correntes d'Escritas de 2011.
A partir daí, colei os glúteos aos bancos ou às escadas do auditório, sem perder um único painel. Ainda bem que o fiz.
Por favor, não percam os próximos episódios.
Cláudia de Sousa Dias
2 Comments:
Muito obrigada, Cláudia! És um espanto!
entao, mas não fiz nada de mais...
Ainda tenho tanto para publicar...
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