Na Savana
A savana africana é composta por uma vasta planície de terra macia, clara, com tamarindos e acácias, de cujas folhas se alimentam as girafas e os elefantes. Na lagoa, a água e tão doce e fresca que todos os animais vão lá matar a sede.
Porém, entre a vegetação que cresce nas margens, rasteja, nas noites de luar, uma cobra lindíssima, de escamas verdes escuras e com a língua de um vermelho vivo como o sangue arterial agita uma bela, comprida e sinuosa cauda que termina com um guizo.
A bela Cobra Carmela costuma esconder-se traiçoeiramente por entre os juncos, onde espera as suas vítimas: passarinhos, ratos e pequenos coelhos. Os seus olhos hipnóticos cintilam, brilhantes como topázios, iluminando a noite.
Furtivamente, Carmela, a bela cobra de olhos dourados, rasteja por entre as ervas, enquanto o coelhinho Raponzel brinca inocentemente com os irmãos.
De repente, Raponzel olha Carmela directamente nos olhos, duas pedras preciosas que a enfeitiçam, e a deixam paralisada. Os músculos estão flácidos, inertes. Carmela abre a sua enorme boca, de cujos dentes escorre um potente veneno, cravando-os nas suas costas. Raponzel grita.
Logo a seguir, ouve-se um rugido e a silhueta ágil do Leão João surge por entre a erva.
Munido de poderosas garras, o destemido Leão João, com uma única patada, atira a sedutora Carmela para o cimo de uma árvore.
João coloca Raponzel em cima de uma rocha, mas a pequena coelhinha está extremamente doente, deixando o Leão João muito preocupado, a pensar o seguinte:
- É necessário chamar um médico …
Entretanto, a Girafa Pernalta, que estava por ali a comer folhas de acácia, tinha ouvido o tumulto e, cheia de curiosidade, perguntou:
- Olá João! O que é que se passa?
Preocupado, João explica, sarcástico:
- A nossa querida e bela Cobra Carmela fez mais uma das suas gracinhas maléficas. Desta vez, deu-lhe para morder, a pequena Raponzel, que ainda nem sequer tem carne para encher a cova de um dente!
Face a isto, a Girafa Pernalta pôs-se a pensar em alta voz:
- É preciso chamar, então, o Doutor Ouriço Magriço antes do amanhecer, senão ela morre!
- Mas ele vive longe…
- Bem, nada que eu, com duas corridas nas minhas pernas altíssimas (ou não me chamasse eu Pernalta) não possa percorrer em menos de meia hora! A Planície da Maratona é, para mim, do tamanho da tua sala de jantar!
- Esta bem! Ficas, então, encarregue desta missão de salvamento!
E a girafa lá foi buscar o Doutor Magriço, trazendo-o às suas cavalitas para não se picar nos seus mil picos.
O Doutor Magriço era um ouriço gordinho e espinhoso mas, ao mesmo tempo, muito tímido e medroso, apesar da sua armadura. Tinha contudo, uma alma boa, pacífica. Era, também inteligente e muito generoso. Por isso, concordou imediatamente em viajar nas costas da Girafa Pernalta para visitar a sua pequena doente.
A viagem fez-se num piscar de olhos. Ao chegar, o Doutor Magriço olhou a coelhinha e abanou a cabeça:
- É preciso arranjar pomada-de-ranho-de-caracol para curar a ferida e neutralizar o veneno…
- E onde é que encontramos um caracol? – perguntou a Pernalta, toda preocupada – Aqui não vivem caracóis…
- Pois não – respondeu o Doutor Magriço – É preciso ir até ao pântano e trazer o meu amigo, o farmacêutico Caracol Marisol. Ele é uma pessoa muito estranha e tem de ser trazido às costas de alguém, porque anda mesmo muito devagar.
Sabem, ele tem um aspecto ranhoso, viscoso, remeloso, com uma casca castanha-esverdeada e uns corninhos muito pretos que gosta de expor ao sol. Também é muito agarrado às coisas materiais, quer sempre levar a casa para todo o lado… Tem medo que lha roubem. Além disso, é muito forreta e guloso. Devora todas as folhas de alface que encontra pelo caminho. Terão de lhe pagar com alfaces.
Ao que responde o vaidoso leão:
- Claro! Nem toda a gente pode ser tão belo e majestoso, sedutor e cavalheiro além de forte como Eu!
- E, já agora, modesto também, não? – riposta Pernalta, bem humorada.
- E para é que é preciso ser modesto?!
- Bem, não vamos discutir isso agora – disse diplomaticamente o Doutor – é necessário, antes de tudo, que a nossa amiga Pernalta atravesse para a outra margem do lago até ao pântano e nos traga o Marisol.
E Pernalta assim fez. Com muita coragem, ao atravessar a lagoa a nado, evitando cuidadosamente os crocodilos, entretidos a devorar alguns gnus de uma manada que tinha passado ali perto.
Duas horas depois, a Girafa Pernalta chegou cansadíssima e cheia de sede, com o rabugento feiticeiro-farmacêutico Marisol às costas.
O Doutor Magriço colocou, então, suavemente o Caracol nas costas feridas da pequena Raponzel, espalhando, assim, aquela serosidade viscosa ao andar…
Após algumas horas, as feridas de Raponzel começaram a cicatrizar e a fechar. Os músculos começaram a recuperar a sua força e movimentos.
Os amigos saíram, então, para festejar o acontecimento enquanto a maligna Carmela os observava a salivar:
- Hoje, ganharam vocês…Mas amanhã…bem…amanhã ver-se-à! Um dia é da caça e o outro dia…é do caçador! Eheheh…!
E o sol nasce no horizonte da savana, como uma gigantesca bola cor-de-laranja…
Cláudia de Sousa Dias
Preciosamente adjuvada na caracterização das personagens e na atribuição dos nomes pelos meninos da Escola de S. Torcato - Guimarães – na Oficina de Escrita Criativa, no âmbito do projecto Puerpolis:
Aqui vai um beijinho ao
Diogo
Ao João
E ao
José Luís
…que me ajudaram neste história africana (duma autora que nunca pisou solo africano) e um abraço especial a Ondjaki com quem tive o prazer de rir à gargalhada, no almoço de sábado, graças às suas anedotas cheias de gindungo…
Etiquetas: Conto
12 Comments:
olhar-te a história
escavar-te o traço
desfazer-te o laço
linda
serpente
nomes
história e método de
inventar
ou
construir
histórias...:))
beijO
Obrigada e beijo às duas...!
CSD
Este teu conto é excelente.
Deve fazer a delícia das crianças.
Se escreveres mais alguns para a mesma faixa etária, não faltarão editoras que os queiram publicar.
Vai em frente, escreve uma dúzia de contos deste calibre e terás sucesso quase garantido.
Digo quase, porque não é fácil vencer as barreiras que são normalmente colocadas aos novos autores.
Parabéns pela imaginação e pela qualidade linguística que conseguiste imprimir neste conto.
Bfs, beijinhos.
reli e agora lembrei-me de
uns contos que li há muito de
jacques prévert :)
beijO, cláudia ~
Obrigada, Nilson...mas não sei...a ver vamos.
Um beijinho e um óptimo fim-de-semana também para ti!
CSD
Que giro, Un Dress...
Mas nada chega aos calcanhares dos contos de Mia Couto ou de Odjaki...
CSD
esta escrita africana, deitou-me na savana da imaginação, eu que não conheço nem lá pus os meus pés voei voei voei até lá neste teu conto.
Beijinhos
Umbeijo para ti Dalaila...!
CSD
na dança da noite
no ser quase
nada
:))
Uma história de savana com tanta graça!
Obrigada Lápis!
beijinho
CSD
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