2012-03-30

FÁBULA DE JOAN MIRÓ












Photo by Emira for Resim & Fotoğraf.



O azul estava imobilizado entre o vermelho e o negro.
O vento ia e vinha pela página da planície,
acendia pequenas fogueiras, revolvia-se na cinza,
saía com a cara tisnada gritando pelas esquinas,
o vento ia e vinha abrindo e fechando portas e janelas,
ia e vinha pelos crepusculares corredores do crânio,
o vento com má letra e as mãos manchadas de tinta
escrevia e apagava o que tinha escrito sobre a parede do dia.
O sol não era senão o pressentimento da cor amarela,
uma insinuação de plumas, o grito futuro do galo.
A neve extraviara-se, o mar perdera a fala,
era um rumor errante, umas vogais em busca duma palavra.

O azul estava imobilizado, ninguém o olhava, ninguém o ouvia:
o vermelho era um cego, o negro um surdo-mudo.
O vento ia e vinha perguntando: por onde anda Joan Miró?
Estava aí desde o princípio, mas o vento não o via:
imobilizado entre o azul e o vermelho, o negro e o amarelo,
Miró era um olhar transparente, um olhar de sete mãos.
Sete mãos em forma de orelhas para ouvir as sete cores,
sete mãos em forma de pés para subir os sete degraus do arco-íris,
sete mãos em forma de raízes para estar em toda a parte e ao mesmo tempo em Barcelona.

Miró era um olhar de sete mãos.
Com a primeira mão batia no tambor da lua,
com a segunda semeava pássaros no jardim do vento,
com a terceira agitava o covilhete das constelações,
com a quarta escrevia a lenda secular dos caracóis,
com a quinta plantava ilhas no peito do verde,
com a sexta fazia uma mulher misturando noite e água, música e electricidade,
com a sétima apagava tudo o que fizera e começava de novo.
O vermelho abriu os olhos, o negro disse algo incompreensível e o azul levantou-se.
Nenhum dos três podia crer no que via:
eram oito gaviões ou eram oito guarda-chuvas?
Os oito abriram as asas, deitaram-se a voar e desapareceram por um vidro quebrado.

Miró começou a queimar as suas telas.
Ardiam os leões e as aranhas, as mulheres e as estrelas,
o céu povoou-se de triângulos, esferas, discos, hexaedros em chamas,
o fogo consumiu inteiramente a granja planetária plantada no centro do espaço,
do montão de cinzas brotaram borboletas, peixes-voadores, roucos fonógrafos,
mas entre os agulheiros dos quadros chamuscados
surgiam o espaço azul e a risca da andorinha, a folhagem de nuvens e o bordão florido: era a primavera que insistia com verdes ademanes.
Perante tanta obstinação luminosa Miró coçou a cabeça com a sua quinta mão, murmurando para si mesmo: Trabalho como um jardineiro.

Jardim de pedras ou de barcas? Jardim de roldanas ou de bailarinas?
O azul, o negro e o vermelho corriam pelos prados,
as estrelas andavam nuas mas as friorentas colinas meteram-se debaixo dos lençóis, havia vulcões portáteis e fogos-de-artificio a domicílio.
As duas raparigas que guardam a entrada à porta das percepções, Geometria e Perspectiva
foram passear de braço dado com Miró, cantando Une étoile caresse le sein d'une négresse.

O vento voltou a página da planície, ergueu a cara e disse: mas onde anda Joan Miró?
Estava aí desde o princípio e o vento não o via:
Miró era um olhar transparente por onde entravam e saíam atarefados abecedários.
Não eram letras as que entravam e saíam pelos túneis do olho:
eram coisas vivas que se juntavam e se dividiam, se abraçavam e se mordiam e se dispersavam,
corriam por toda a página em fileiras animadas e multicolores, tinham cornos e caudas,
umas estavam cobertas de escamas, outras de plumas, outras andavam vestidas de peles,
e as palavras que formavam eram palpáveis, audíveis e comestíveis mas impronunciáveis:
não eram letras mas sensações, não eram sensações mas transfigurações.

E tudo isto para quê? Para traçar uma linha na cela dum solitário,
para iluminar com um girassol a cabeça de lua dum camponês,
para receber a noite que chega com personagens azuis e pássaros de festa,
para saudar a morte com uma salva de gerânios,
para dizer bons-dias ao dia que nasce sem nunca lhe perguntar de onde vem nem para onde vai,
para recordar que a cascata é uma rapariga que desce as escadas morta de riso,
para ver o sol e os seus planetas balançando-se no trapézio do horizonte,
para aprender a olhar e para que as coisas nos olhem e entrem e saiam pelos nossos olhares, abecedários viventes que deitam raízes, sobem, florescem, rebentam, voam, se dissipam, caem.

Os olhares são sementes, olhar é semear, Miró trabalha como um jardineiro
e com as suas mãos traça incansável — círculo
e cauda, oh! e ah! —
a grande exclamação com que todos os dias começa o mundo.

Octavio Paz, in Antologia Poética [1935-1987], trad. Luís Pignatelli, Círculo de Leitores, Março de 1991, pp. 116-119.

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