2010-06-23

Conversa com Mia Couto na Biblioteca 18 de Junho de 2010




Mia Couto esteve, na noite de 18 de Junho, na Biblioteca Municipal de Vila Nova de Famalicão dentro do itinerário que fazia pelas várias cidades do Norte do País, aproveitando a visita periódica que costuma fazer à família, a viver para os lados de Rio Tinto.

Após a abertura da sessão pelo Vereador da Cultura, Dr. Paulo Cunha, o início da intervenção de Mia Couto foi marcada pelo tributo a José Saramago, recordando o lançamento de um dos seus primeiros livros – Cada Homem é uma Raça – apresentado pelo Nobel português em 1999, um ano depois da atribuição do referido Prémio. Mia Couto recordava que, então, ninguém estava realmente interessado em si póprio: “Todos queriam era o autógrafo de Saramago”. Ao que este frisou, com a generosidade que lhe era característica, que “aquela era a ocasião para Mia Couto brilhar”. Cerca de dez anos mais tarde, já muito doente, José Saramago insistia em sair da cama para apresentar o penúltimo livro de Mia, lançado em Portugal: “Venenos de Deus, Remédios do Diabo” para, então, “fechar um ciclo”.

Comovido e com a voz ligeiramente embargada, Mia Couto fez notar que “As personagens não morrem” e que “Saramago deixou-nos um legado: o dever de intervenção. Para mim, o escritor quando escreve e se esquece que é cidadão … penso que há aqui algo que fica por fazer”.

Mia Couto lançará, brevemente, o livro de crónicas de viagens intitulado Pensageiro Frequente:

São textos leves para quem está de viagem. São pequenas viagens dentro de uma viagem maior.

Em resposta à pergunta de Sérgio Sousa, professor na Universidade do Minho presente na mesa, a respeito da diferença entre textos ditos “leves” e “textos mais pesados”, Mia Couto afirma que quando escreve textos para uma revista “de bordo”, como é o caso das crónicas de Pensageiro Frequente, tem a consciência de que, naquele caso, não está perante um público em relação ao qual tenha uma pretensão literária.

“E também não posso ter uma intenção crítica, neste tipo de trabalho, uma vez que estamos a falar de sítios onde se vai com intuito de desfrutar de lazer. Neste caso tenho de fazer uma selecção da informação. Normalmente não escrevo para ninguém, escrevo para mim. Vou construindo personagens que pedem uma história, um percurso, o leito de um rio. É muito prazeroso deixar-me ser invadido por vozes; quando as personagens me “batem à porta” tenho de as deixar entrar; a certa altura tenho tantas que sinto necessidade de “matar” algumas! (risos) Tenho uma visão quase acientífica de como este processo decorre; é como que um estado de embriaguez, de euforia. São, muitas vezes, desejos não concretizados na infância. E, quanto mais estou cansado – logo, menos sujeito a filtros, que são as ferramentas da razão – é quando esses desejos estão mais activos.”

Em relação à literatura infantil, afirma ter escrito dois livros para crianças, quase que por acidente:

Irrita-me um certo paternalismo de alguns que escrevem para crianças. Eu quando escrevo para crianças faço-o como se regressasse à infância”.

Questionado em relação a personagens modelo e à recorrência a certo tipo/estereótipo de personagens, Mia Couto diz estar, normalmente, mais dentro da história em si mesma do que dentro das personagens:

Eu até não precisava de tanta gente para fazer a festa...Isto não é uma virtude; mas eu não sei fazer algo com poucas personagens. Não sou capaz de proceder de outra maneira, mais pensada, com uma certa engenharia…poderia fazê-lo mas seria uma espécie de violentação…”

Quanto aos neologismos, o Autor mostra uma humildade surpreendente ao revelar-se convencido que de as palavras que “inventa” já estão “lá”: “é mais o espanar-lhes o pó, sei que algumas fui eu que de facto as descobri, mas elas já estavam Lá…”

Ao perguntar-lhe se retrata apenas a realidade moçambicana Mia Couto explica:

É um jogo a duas mãos. Porque eu fui feito por Moçambique, também. Mas nunca faria isso se não fosse a relação que existe entre Moçambique e a língua portuguesa. Actualmente, os Moçambicanos falam mais o português do que em 1975 ou do que há dez anos atrás. Há uma fusão, entre a língua Portuguesa e a língua e a cultura bantu. Os Moçambicanos fazem isso com grande habilidade e liberdade, o que não acontece com países de expressão oficial inglesa que são muito mais rígidos. Eu vou buscar a forma das pessoas construírem/desconstruírem a língua em Moçambique. Por exemplo, quando se diz ‘O seu carro dormiu fora?’, querendo dizer que não ficou na garagem. Há aqui uma animação de um objecto que, lá, faz parte do uso corrente

Relativamente às temáticas acerca da condição feminina, os segredos do passado e o simbolismo do “escuro” Mia Couto refere que as suas histórias têm a ver com mitos e construções que, a partir deles, se operam.


Têm a ver com a maneira como tudo começou, com a minha relação com o mundo ficcional. Comecei a ser escritor na cozinha, com a mesa no centro e à volta da qual as mulheres circulavam. Naquela época, o medo não existia e havia a tentação para ir ao lado solar trocar infâncias com os amigos; na cozinha, havia um “escuro”, era uma espécie de regresso ao ventre materno; o roçagar das saias escondia segredos com que elas manipulavam os homens! Quando escrevo, estou sempre na cozinha da minha infância, num lugar onde não é escuro mas penumbra.”

É ao colocar-se na penumbra que Mia Couto observa a dualidade do real, onde não cabe a estrita compartimentação estereotípica:

“A minha escrita, não a classifico, desclassifico-a. O livro Jesusalém é puramente ficcional. Não há ali pontes com o real; têm é que se entrelaçar com a realidade; transportar para a luz. Amos Oz diz que ‘ prefere viver numa casa escondido, com uma família. Porque a família é sempre um tesouro de histórias. Havia sempre o apetite de sermos outros. Os meus netos, com três anos, já fazem teatro. As pessoas fazem teses sobre o nascimento do teatro, mas o teatro nasce com o Homem, uma vez que está presente na infância.”

À pergunta sobre se a escrita flui naturalmente ou se resulta de um trabalho de depuração, Mia apressa-se a desmistificar:

Não sei se existe o ‘fluir naturalmente’ em cada escrita. Normalmente é desordenada, caótica. Mas depois regresso à escrita. E, nesse regresso, é muito trabalhada. Todo o escritor é sempre um reescritor.”

A Biologia desempenha, também, um papel importante na escrita de Mia Couto. A ponto de responder a um espectador que o questionava se olharia para a vida com as mesmas lentes, se não tivesse a formação académica naquela área:

Não. A escrita é sempre um retorno à infância. Inicialmente tinha a ideia de ser psiquiatra e cheguei a matricular-me em Medicina. Mas o estudo da Anatomia é um inferno. Então abandonei Medicina. Ou a medicina abandonou-me a mim. Sempre gostei de biologia, de ter a possibilidade de trabalhar entre os grandes mamíferos, o que para mim é sinónimo de felicidade. Mas hoje, ao olhar para as plantas, percebo que cada ser que vive connosco é portador de uma história. Ser decifrador das linguagens de outros seres, de outros códigos, perceber o que está para lá da fronteira da linguagem humana. Tive de fazer o curso de Ecologia Vegetal e as árvores começaram a amolecer-me o coração … As árvores são um manancial de Histórias. Se não entendesse isso, não seria feliz hoje. Para mim escrever é uma estratégia para ser feliz. E de produzir felicidade. É algo que aprendi com África. Os Africanos, nas circunstâncias mais duras, são produtores de alegria. Em Portugal há a forma de exorcizar a dor, nomeando-a. É uma forma de alívio. Em África é impossível. Não se nomeia. Não se fala. Assim os “maus espíritos”são afastados. Mas tudo isto está relacionado com o peso da religião.
Mas a biologia, sozinha, não explica tudo. Tenho a sensibilidade para ouvir outras lógicas e deixar-me possuir por elas. Creio que há “momentos divinos” em que me sinto religado. Por exemplo, quando assisto a um poente na minha terra, sinto que faço parte de uma coisa maior
.”

A relação com os tradutores é outra questão que também preocupa o Autor:

Há várias expressões que não têm tradução noutra língua – Os Cus de Judas, por exemplo – muitas vezes não há correspondência cultural. E há também a carga poética, é preciso que o tradutor seja também um poeta. Em muitos casos, o escritor não tem possibilidade de escolher o tradutor, o que é terrível.”

Perto do final, a escritora Manuela Monteiro comentou:

Mia Couto não escreve só para ser feliz. Escreve para fazer felizes os seus leitores. Para lhes dar a sua alma…”

Questionado sobre se o mundo pode se mudado pela linguagem, Mia Couto reponde que sente que não terá outras vidas para viver neste “formato”:

“Mas foi-me dada a possibilidade de ter muitas vidas. Somos o que somos por também sermos os outros (…), ser muitas pessoas ao mesmo tempo. Mas voltando à Manuela, aqui no norte acontece-me sempre um regresso, através deste português e da forma de ligação das vogais…faz-me regressar à infância…”


O final foi marcado pela leitura de dois poemas de Mia Couto por Ivo Machado.

Uma noite memorável.



Cláudia de Sousa Dias para Jornal Cidade Hoje

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2 Comments:

Blogger M. said...

É por essas, mas também por outras, que não faço tradução literária ;)
Bjs e bom domingo!
Madalena

27/6/10 8:50 da manhã  
Blogger Claudia Sousa Dias said...

´não é fácil... tem de se dominar os meandrose as ratoeiras da outra língua...e da nossa!


beijos


adorei o teu gato!



csd

28/6/10 9:38 da manhã  

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