2012-04-12

POEMA SEPTUAGÉSIMO QUARTO






© Foto de Kevin Carter. Abutre espreita e espera o momento preciso da morte de um bebé desnutrido. Sudão, 1993.
Em fevereiro de 2011, o jornal espanhol El Mundo reconstituiu a história da imagem que entristeceu o mundo e que acabou levando o autor a cometer suicídio. Em 1993, o fotógrafo sul-africano Kevin Carter retratou a figura esquelética de um bebé, totalmente desnutrido, recostando-se sobre a terra, esgotado pela fome e a ponto de morrer, enquanto num segundo plano, um abutre espreita e espera o momento preciso da morte do bebé. Kevin Carter achou que não devia interferir, e a opinião pública mundial que deu o bebé como morto, o criticou duramente. Carter acabou vencendo o prêmio Pulitzer com esta imagem que o perseguiu e o levou ao suicídio aos 33 anos. O diário espanhol El Mundo foi procurar a criança sudanesa fotografada em 1993 e descobriu que a criança só acabou morrendo quatro anos atrás de “febre”, contou o pai da criança. Conforme o jornal espanhol, o bebé chamava-se Kong Nyong e sobreviveu ao abutre. Segundo a enfermeira Florence Mourin, que coordenava os trabalhos do programa das Nações Unidas para o combate à fome no Sudão em Ayod, o local onde tudo aconteceu, o menino estava sendo acompanhado, como prova a pulseira branca na mão direita, que se podia ver na fotografia premiada. Uns tinham a letra T nas pulseiras, para casos de subnutrição grave. Outros tinham a letra S, quando precisavam de suplementos alimentares. Kong, que tinha marcada na pulseira a inscrição T3, sofria de subnutrição grave, foi o terceiro a chegar ao centro das Nações Unidas. E sobreviveu, contou Florence ao El Mundo, que foi até Ayod para reconstituir, 18 anos depois, a história daquela imagem.







Longe do meu país de espantos
trago agarrados à pele os instantes vazios,
esses que foram espoliados do azul e são agora
alimento da sombra. Não me contento
com a mitificação da verdade, como nunca
me contentaria com a beleza do mar, enquanto as bocas
são cidades que começam a ficar desertas e a morrer,
o desencanto vai destruindo sonhos dentro de um homem
e construindo cercas para que o corpo não
se devore a si mesmo.

Surpreende-me a notícia de que
um poeta se matou com uma dose letal de versos
que há muito tinham ultrapassado o prazo de validade.
O meu país não é já o meu país futuro,
e se alguma vez o meu país foi o país futuro,
hoje o meu país é o país memória
da memória desse país futuro.

Já ninguém se contenta com
a astrologia barata dos jornais e dos
telejornais,
apesar da insistência, apesar do esforço. E aqui,
longe do meu país de espantos,
sinto morrer o fogo que os teus olhos acenderam
nos meus olhos e esse perfume que
nas ruas sempre nos lembrava
como estávamos vivos.

O meu país, o nosso país,
não passa de um país escuro
a soluçar sob a luz dos astros mais brilhantes,
a pedir, a mendigar um pouco da claridade
que necessita para a reconstrução do tal país
futuro,
quando começa a esquecer-se já
a alegria de cantar.

O meu coração é agora uma sala vazia,
tão estéril e frio que nada agarra nem sonha
que possa distribuir um pouco por ti. O meu coração
doente, quer levantar-se para olhar pelo teu corpo
mas assemelha-se a um sábio
que já não sabe pensar.

O meu ex-país futuro
é um moribundo que morre sem herdeiros
legítimos. Depois, alguém virá reclamar os ossos
daquele que foi um corpo jovem durante tantos séculos,
uma vontade imensa onde os sentidos se moviam
mais depressa que o vento, mais certos que as marés,
onde os olhares se fundiam com o dia
e o dia se fundia com a mais
profunda claridade.

JOAQUIM PESSOA
(Do livro a publicar, GUARDAR O FOGO)

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